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Maternidade, solidão e meu abismo

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Estudante

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Isabelle Maurutto Schoffen

Psicanalista. Psicóloga e Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá. Idealizadora da Roda de Psicanálise. Mãe do Cae, Lis e Ivy. Mulher-mãe em constante movimento.

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Tornar-se mãe. Está aí uma experiência que inevitavelmente afeta todos os lugares e sentidos da vida de uma mulher. Abalo sísmico, caldeirão de emoção, ambivalência, mudança, movimento, luto, solidão, abismo. Essas foram algumas palavras que me convocaram nessa vivência tão visceral da maternidade. Quando soube da minha primeira gravidez, adiei alguns planos profissionais, dentre eles o doutorado. Ouvi do meu futuro orientador uma frase que me impactou de forma afetuosa: “aproveite, será uma grande aventura” . Foi e continua sendo a maior aventura da minha vida.

Gerar, parir, amamentar, cuidar, maternar, amar é mesmo uma grande aventura. Não somente pelo desconhecido que está por vir, mas pelo alto risco. Os poetas estavam certos, na vida e no amor não há garantias. O medo passa ser um companheiro incômodo. Você se distrai, mas ele permanece, está à espreita. Medo de morrer, medo de perder quem amamos, medo de não dar conta. Tornar-se mãe é um trabalho exigente, psíquico, complexo, com altas doses de repetição dos restos das nossas vivências de dependência e desamparo. Acrescentando a isso, ainda passamos por mudanças e processos subjetivos intensos: de filha para mãe, de menina à mulher, da infância à adultez. Muito trabalho psíquico inconsciente está no palco novamente, agora com outros personagens, atualizando cenas, construindo, encenando novos papéis e elaborando-os.

Não, eu não sabia o que estava por vir desde que decidi ser mãe. A gestação logo me mostrou que o bebê e eu não éramos um, muito menos complementares. A placenta estava lá para ensinar e deixar os limites bem claros entre mãe e bebê – duas pessoas distintas mas ligadas profundamente. Fato que exigirá bastante da dupla, no jogo de presença e ausência, aprenderão a se separar e tornar-se um par e depois tornar a se separar e assim sucessivamente e por toda a vida, afinal – como diz Freud – o infantil permanece em nós.

Isso eu já tinha aprendido com a psicanálise, mas ainda não tinha vivenciado. Gestar e cuidar de um bebê é potencialmente traumático. Tanto pelo impacto das transformações corporais e pelo novo que nos assusta, quanto pelo desamparo e solidão em que somos jogadas nessa experiência que inevitavelmente coloca nossos restos a exigir mais trabalho psíquico.

Recentemente me deparei com o trabalho muito sensível da psicanalista Rachele Ferrari (2021), que traz a experiência da maternidade como um assombro, um susto, um trauma que insiste em tentar elaborar a experiência inquietante e conflituosa. A ideia do assombro foi desenvolvida pelo psicanalista Leopold Nosek (2017) – ele diz que o novo em si é traumático, aterroriza. Experiências inaugurais assombram, nos deixam atônitos, espantados ao mesmo tempo admirados.

Rachele (2021) em sua pesquisa observou que artistas impactadas pela maternidade, sentiram a necessidade de expressar os excessos dessa experiência por meio da escrita, em uma tentativa elaborativa. Uma curiosidade é que essas mulheres utilizam palavras e ideias como abismo, profundidade, perda, parto-partir, para descrever as emoções e sensações do puerpério. A autora nos convoca a pensar que a capacidade de se abismar, é potencialmente elaborativa, na medida em que provoca espanto e ao mesmo tempo fascínio e encanto.

Ao escutá-la meus restos puderam vir à luz e fez sentido em mim. Foi também pela escrita que pude me permitir afetar por essa experiência visceral, numa tentativa angustiante e urgente de dar sentido e elaborar. Para meu espanto/assombro, também fiz uso das mesmas palavras – abismo, perda, luto, profundidade – numa tentativa insana de fazer sentir e sentido. Meu abismo descrevi assim:

O mar sempre exerceu um fascínio em mim. Não só por suas ondas, areia morna e água salgada, mas pelo seu mistério. Desde pequena gostava de estar para além das ondas. Todo aquele rebuliço e agitação da arrebentação me fazia fugir para dentro do mar, para onde nascem as ondas. Gosto de ver as ondas se formar, ganhar peso e corpo. Elas passam, eu permaneço, sinto o balanço, o ritmo. Gosto ainda mais de olhar o horizonte, aquele mar sem fim. Acho que aprecio a infinitude da superfície, a profundidade do abismo, mesmo que nele experimente a onipotência e a imortalidade ao avesso. Abandono meu corpo no ritmo das ondas, flutua na imensidão do céu. Submerso. Abro os olhos. Silêncio é o som das águas profundas. Deixo meu corpo pesar, observo, não tenho vontade de voltar, o abismo tem dessas coisas. Medo, desejo, movimento, intensidade e impermanência – mistério das águas. No mar eu me perco. Num impulso, emerjo, olho para o céu, me encontro (Isabelle Maurutto, 2021).

Ao que parece a maternidade é em si um processo traumático, na medida que é inaugural, novo e impactante na vida da mulher. Meu primeiro puerpério, posso dizer que foram dores e delícias do processo de me tornar mãe, de me autorizar na posição de cuidar de um outro totalmente dependente de mim. Foi transformador, muito potente. Já o segundo puerpério foi mais intenso, mais traumático. Deparei-me com a solidão e com a incógnita de como voltar a ser mulher, uma pessoa inteira novamente. Acredito que viver essa experiência em plena pandemia me marcou de forma diferente. Ainda não sabemos os efeitos que a pandemia causou na população em geral, mas me arrisco a dizer que, para as mulheres e homens que vivenciaram a experiência da parentalidade nesse período de isolamento forçado, as consequências foram importantes. Muitas mulheres-mães diziam estar vivendo com a pandemia um duplo puerpério. A solidão e isolamento típico do período estava sendo vivido em dose dupla, principalmente porque estavam isoladas também de sua rede de apoio. O desamparo, a dependência absoluta do bebê, são também mobilizados na mulher-mãe. Restos que exigirão muito trabalho psíquico, não sem dor e angústia – emoções que a colocam em um estado de solidão ainda mais intenso.

A minha solidão foi um assombro/abismo, temido e desejado. Foi também um puerpério mais exigente por ser mãe de gêmeas – duas meninas. Sinto que deixei-me afetar e me encantei. Reencontrei minha capacidade criativa e espontaneidade na escrita, fiz desse processo um encontro com meus pedaços, fantasmas, enfim com meu abismo.

Referências

FERRARI, R. (2021, Julho, 31). Maternidade: Assombro e Elaboração. [Arquivo de vídeo]. Recuperado de https://youtu.be/ql4XJ1pL0wU.

FERRARI, R.; RIBEIRO, M. Ser mãe, ser pai. Cadernos de Psicanálise | CPRJ, v. 42, n. 42, p. 225-242, 5 ago. 2020.

MAURUTTO, I. [@isabellemaurutto]. (01 fevereiro de 2021). Puerpério. [texto]. Instagram.

NOSEK, L. A Disposição para o Assombro. 2017.

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