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Capítulo 5

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Capítulo 1

Capítulo 1

5

galíCia, 1356

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Pedro pensava em Zaynab. Quantos anos a princesa nasrida teria agora? Uns 23, provavelmente. Talvez estivesse casada, com filhos. O talento para as artes, sem dúvida, não teria sido desperdiçado. Ele apenas imaginou os mesmos desenhos do caderno, que guardava com carinho havia dezesseis anos, em versões mais adultas e aprimoradas.

Às vezes, tinha vontade de enviar alguma correspondência secreta para ela por meio de seus amigos muçulmanos, mas sempre adiava a decisão. E se Zaynab não se lembrasse mais dele? O resgate acontecera havia tanto tempo e ela era tão pequena na época…

Na Galícia, Pedro, Lobato e a arisca Peres não demoraram a entrar nas terras de Fernando de Castro, o filho legítimo do Senhor da Guerra. Álvaro chegara dias antes ao castelo do meio-irmão. Os dois não eram exatamente os melhores amigos, mas costumavam ter interesses em comum. E Fernando era um dos melhores aliados de Pedro. Quanto a Telo, ele permanecera em Portugal para agilizar o projeto político do infante.

À tarde, a poucas horas de distância do castelo de Fernando, Pedro decidiu parar em um vilarejo. Uma grande festa de casamento ocorria no local e, como havia muito não participava de

alguma comemoração, não resistiu à vontade de ficar observando as danças, as cantorias, o menestrel que não parava de tocar seu alaúde, as músicas que dominavam o ar e a felicidade das pessoas à sua volta.

Na única rua do lugar, tomada por dezenas de convidados, Lobato arrumou três canecas de vinho. Peres tomou a dela quase de um gole só, a cara amarrada como sempre. Aguentou o excesso de alegria por poucos minutos antes de desaparecer entre os convidados. Lobato também engoliu todo o conteúdo da caneca e, comportando-se como o cão de guarda que sempre fareja algum perigo, resolveu segui-la. Pedro bebericou um pouco do vinho, a mente desejando apenas um pouco de paz. Fez amizade com um parente do noivo, que lhe contou várias piadas, ganhou a companhia de uma mulher ansiosa para distraí-lo e nada de Lobato e Peres retornarem.

Era melhor ver o que estava acontecendo.

Peres afastou-se o quanto pôde daquela festa, da barulheira que a perturbava, das risadas que martelavam em seus ouvidos. Nada poderia amenizar a dor, o ódio e a tristeza que a consumiam.

Nos limites do vilarejo, refugiou-se no quintal de uma das casas. Retornaria apenas quando os últimos bêbados fossem dormir.

A jovem fechou os olhos, a mente desejando apenas um pouco de paz. Foi quando mãos grosseiras arrancaram-na do esconderijo, alguém que a seguira até ali. Ela abriu os olhos, tentou se defender, gritou, recebeu um murro no rosto. O sujeito bebera demais e viera com dois amigos que também cheiravam a bebida. Um a segurou enquanto os outros prendiam suas pernas. Pretendiam despi-la da cintura para baixo.

Todo o horror de uma violência semelhante imobilizou a jovem. Ela não conseguia mais reagir.

De modo brusco, o ato foi interrompido antes mesmo de começar. Os homens largaram-na, ela voltou a cerrar as pálpebras e se encolheu. Não ouviu nada, não quis entender o que acontecia em minutos que pareceram durar horas. – Peres… – chamou uma voz que soou conhecida.

A garota não se mexeu. O dono da voz tentou ajudá-la a se levantar. Ela gritou, arranhou-o, debateu-se em desespero. – Sou eu. Estêvão Lobato. Estás segura agora.

A voz transmitia confiança. Peres agarrou os próprios cotovelos e forçou-se a abrir os olhos. O criado de Pedro estava ajoelhado à sua esquerda. Atrás dele, os três homens estavam esparramados no chão, inconscientes, vítimas de seus socos certeiros. Nem precisara tirar a espada da bainha.

A jovem sentou-se e permitiu que ele a amparasse. Tinham de sair dali.

Pedro encontrou-os no estábulo onde tinham deixado os cavalos. Com muita paciência, Lobato tentava pela milésima vez convencer Peres a permitir que ele aplicasse uma pomada no hematoma enorme em seu rosto. Estavam sentados no chão, um diante do outro. – Não preciso de remédio nenhum! – berrava a garota, com seus modos grosseiros. – Deixa-me… – Não! – Vai piorar se não for tratado. – Some daqui!

Igual a todo mundo, Lobato também tinha seus limites. – Vou passar agora este remédio e tu não darás nem um pio! – vociferou ele, vermelho.

Peres cerrou os dentes. Iam se engalfinhar. – Queres que eu a amarre? – propôs Pedro.

Os dois olharam para ele. Descobriam-no ali naquele minuto. – Não é necessário, senhor – descartou o criado, ainda nervoso. – Estamos tendo uma conversa muito civilizada. – É, percebi.

Num gesto rude, Peres arrancou da mão de Lobato o pote com o remédio. – Eu mesma faço isso.

Sem qualquer tato, ela espalhou a pomada sobre a pele. – Mais para a direita… – orientou Lobato. – Eu falei direita! Não sabes a diferença entre direita e esquerda? – A minha direita ou a tua direita? – a jovem resmungou.

Foi a vez dele tirar-lhe o pote. Com as pontas dos dedos, pegou uma quantidade generosa da pomada e, sem que Peres pudesse impedi-lo, cobriu a dimensão completa do ferimento. – Isso arde e dói! – reclamou ela. – É uma porcaria de remédio! – Paguei uma fortuna por ele. – Pois foste enganado! És mesmo um idiota. – E tu, uma ingrata! – Não pedi tua ajuda. – Eu sei, mas não me arrependo de te ajudar. E farei de novo se for preciso.

Ofegante e possessa, a jovem preparava uma enxurrada de ofensas. – Posso interromper esta conversa muito civilizada? – intrometeu-se Pedro. – Como a Peres se machucou desse jeito?

Lobato, a quem a última pergunta era dirigida, fechou o pote e foi guardá-lo no alforje pendurado na sela de seu cavalo. Não responderia nem sob tortura. – Se estás pensando em voltar para a festa, podes ir mudando de ideia – disse Peres para o infante.

– Houve uma briga e não é mais seguro ficarmos no vilarejo – contou o criado.

Nenhum dos dois revelaria detalhes sobre a tal briga. Pedro pensou na mulher que o esperava, nos momentos agradáveis de uma festa que teria de abandonar. – Sim, vamos embora – concordou. – Não há mais nada aqui para nós.

Chegaram ao castelo de Fernando no começo da manhã. Foram recebidos por ele e por Álvaro, tiveram refeições decentes, um quarto para cada um, água para a higiene pessoal e roupas limpas. Álvaro foi o único que pareceu reparar em Peres. Perguntou a Lobato quem era e ouviu uma resposta lacônica: – É a desenhista.

Nenhum nome, nenhuma informação complementar.

No quarto para onde a encaminharam, Peres tomou banho e, sem alternativa, colocou um vestido que uma serva lhe entregara. Preferia mil vezes vestir-se como homem para nunca mais se sentir uma mulher indefesa.

Descontente, ela rumou para o aposento de Lobato, que terminara de se lavar. Ele estava descalço e usava apenas uma calça comprida. – Exijo roupas masculinas – ela foi logo avisando.

Impressionado com aquela visão tão feminina, de longos cabelos negros, soltos e ainda molhados, ele demorou segundos para reencontrar o raciocínio. – Ahn… Eu… é… vou providenciar.

Ao se dar conta de que não estava convenientemente arrumado para conversar com uma mulher, correu para colocar uma camisa. – Que cicatriz é essa no teu ombro? – ela perguntou.

– Foi uma flecha, há alguns anos. – Disparada por um mouro? – Não. Castelhano. Longa história.

Ela não se interessou mais pelo assunto. Deu meia-volta e foi para seu aposento. Ainda teria de esperar mais de uma hora pelas roupas que o criado iria providenciar.

Como a porta do quarto de Peres estava entreaberta, Lobato entrou sem pedir licença. Encontrou-a adormecida na cama, respirando pausadamente, os cabelos espalhados ao seu redor. Graças à pomada, o inchaço no rosto diminuíra bastante; o hematoma ainda demoraria a sumir.

Lobato gravou na memória cada detalhe daquela entrega total ao sono para que pudesse desenhá-la mais tarde. A jovem inocente que Peres fora uma vez estava ali, desarmada e confiante, antes do trauma que a lançara ao ódio e à agressividade contra qualquer um que tentasse se aproximar. Sua reação ao ataque da véspera comprovava que ela fora brutalizada no passado.

As roupas masculinas que ele lhe trazia foram deixadas sobre uma arca, assim como o par de sapatos. Lobato mais uma vez admirou a garota, as mãos jogadas ao lado do corpo, os pés descalços, o visual arrebatador destacado pelo vestido. – Ela não é para mim – murmurou, conformado. – Está destinada a ele. Só consegue enxergá-lo.

Um dia, o ódio por Pedro iria se desmanchar e ela estaria tão envolvida que seria impossível não amá-lo. Aquela certeza era tão forte que Lobato quase podia tocá-la. Imediatamente se esforçou para pensar na esposa imposta por um acordo matrimonial. Não a amava, mas gostava dela. Eram felizes daquela maneira.

Antes de sair, ele colocou sobre a cama um caderno com folhas em branco e uma caixa de madeira cheia de giz de carvão.

Desenhar ajudaria Peres a lidar com seus problemas do mesmo modo que sempre o ajudara a lidar com os dele.

Após uma longa reunião entre Pedro, Álvaro e Fernando, a noite foi animada por menestréis, trovadores e principalmente pelas damas que acompanhavam as mulheres da família. O período de luto já tinha passado para os Castro.

Pedro exagerou na bebida, riu muito, gaguejou e recebeu atenção exclusiva de uma das jovens solteiras. Em pé num canto e sem se misturar ao ambiente descontraído, Lobato entornou sua quinta caneca de vinho. Depois dela perderia a conta. No lado oposto da sala, sentada no chão, Peres desenhava sem parar no caderno que, pelo olhar desconfiado que lançara a Pedro ao encontrá-lo antes do jantar, pensou ter sido presente dele. Nunca tivera antes um material de tão boa qualidade para executar seu talento.

Pedro acabava de cair na gargalhada com a nova cantiga de escárnio apresentada por um dos trovadores. A letra maldosa fazia referências indiretas a um conhecido nobre castelhano que sempre perdoava a esposa que o traía com o primeiro a lhe bater à porta. – D. Pedro está se divertindo – comentou Álvaro ao ir até Lobato. – Enfim o período de luto terminou para ele. – Estás enganado. Ele nunca mais será o mesmo. – Nenhum de nós nunca mais será o mesmo, amigo. E quanto a ti? Não me pareces nada bem. – Estou lidando com um dia de cada vez.

O criado tomou a direção da mesa. Encheu novamente a caneca e engoliu o vinho como se estivesse sedento.

No fim da noite, Pedro foi com a jovem dama para o quarto dela, Peres sumiu com o caderno debaixo do braço e Lobato, bêbado demais para acertar qualquer trajeto, rolou escada abaixo, quase quebrou o pescoço e despertou horas mais tarde com o sol da manhã batendo-lhe no rosto e um dos cachorros de Fernando lambendo-lhe a boca. Com a cabeça estourando de dor, correu o mais rápido que pôde para seu aposento, lavou-se, vestiu roupas limpas e, exibindo sua postura impecável, foi até a cozinha.

Lá, uma das cozinheiras preparou-lhe uma caneca de chá de ervas, infalível para combater ressacas. Era para o infante.

Como previu, Pedro apareceu logo depois no quarto que ocupava no castelo. Sentou-se numa cadeira, a cabeça também latejando e, sonolento, aceitou o chá. – O gosto é horrível – irritou-se. – Bebe tudo, senhor.

Ele só conseguiu tomar a metade do líquido. Peres surgiu naquele momento e, sem qualquer sutileza, arrastou um banco para se sentar diante dele. O som que a madeira produziu no piso de pedra pareceu ensurdecedor. – Se queres que eu faça desenhos para o túmulo, deves me falar sobre a pessoa que vai ocupá-lo.

Pedro não escondeu uma careta. – Desejas conversar sobre isso justo agora? – retrucou, mal-humorado. – Não tens pressa para ver o trabalho pronto?

Ele não quis responder. Virou-se para Lobato. – Qual é mesmo o nome da jovem com quem passei a noite? – perguntou. – D. Teresa Lourenço, senhor. – Teresa, Teresa… Certo, não posso esquecer o nome. Saí sem despertá-la, o que não é muito educado. Vou voltar lá.

Ainda zonzo, ele se levantou, devolveu a caneca e foi atrás da jovem. Acabaria passando o restante da manhã, a tarde inteira e uma nova noite com ela.

Lobato sentou-se na cadeira e tomou o que sobrara do chá. Nunca mais pretendia se entupir de tanto vinho. – Fala-me tu da pessoa que ocupará o túmulo – insistiu Peres. – Como posso trabalhar se não sei nada sobre ela?

O criado fitou-a, sentindo-se tão exaurido que nem mesmo uma tempestade teria forças para arrancá-lo daquela cadeira. – Não consigo falar sobre ela – admitiu. – E ele também não consegue.

Peres meneou a cabeça, sem entender. – Quando D. Pedro estiver pronto para falar no assunto, ele te contará tudo. Sê paciente.

Eufórica por ser a nova preferida do infante, Teresa Lourenço acompanhou-o na comitiva de Álvaro no retorno a Portugal. Em Lisboa, Pedro instalou-a numa casa confortável e ia visitá-la de vez em quando. O único filho deles, João, nasceu em abril do ano seguinte.

Seguindo o costume, Pedro recompensou a jovem com terras e deu títulos a seu pai e irmãos. Depois, sem mais nem menos, desistiu dela e foi dormir com Margarida, uma tecelã em Coimbra. A mulher era viúva, estéril, mais velha do que ele e adorava preparar seus pratos favoritos. Seria sua companhia eventual durante anos e somente isso, uma simples companhia. Pedro jamais voltaria a amar de verdade.

Em maio, Beatriz mandou avisá-lo de que Afonso estava muito doente e pedia sua presença. Não viveria muito mais. O filho, que caçava ao norte do reino, não mudou seus planos. Apareceu em

Lisboa apenas quando a morte do pai foi confirmada, pronto para assumir o trono.

Preocupado com aquele excesso de indiferença, Lobato instigou Peres a retomar a pergunta sobre a pessoa que ocuparia o túmulo. – Força-o a falar sobre o assunto. – Mas não me disseste para ter paciência? – Ele não conseguirá carregar tudo sozinho. D. Branca está longe e ele tem vergonha de desabafar seus problemas comigo. – Podias tentar. – Na minha única tentativa, terminei com duas costelas quebradas. – E por que achas que ele confiará em mim? – Ele gosta de ti. – De mim? – ela duvidou. – Quase o matei duas vezes! E o que mais desejo é vê-lo morrer aos poucos, sufocado pela própria consciên… – Sei, sei. – É verdade! – Então esta será tua melhor oportunidade para assistir de perto a seu sofrimento. Agora vai!

O criado abriu a porta da antecâmara de Pedro e enxotou-a para dentro. No lado externo do paço, a noite encobria vagarosamente a cidade.

Era final de maio de 1357 e Portugal amanheceria com um novo rei, aquele que finalmente teria plenos poderes para concretizar sua aguardada vingança contra os outros três assassinos.

Ao pensar nisso, Lobato sentiu um calafrio. Perdera a noção do ponto a que o amigo seria capaz de chegar.

Escondido junto à porta, no corredor, cruzou os braços. Peres parara diante de Pedro que, em pé, contemplava a vista além de uma janela.

– Preciso que me fales sobre a pessoa que ocupará o túmulo – exigiu a garota. – Depois. – Não. Tem que ser agora.

Ele fixou nela olhos atormentados. – Ago-go-ra? – Agora.

Soava como uma cobrança impiedosa. Mesmo sabendo que aquilo era necessário, Lobato arrependeu-se de tê-la enviado.

Pedro foi se sentar na cama. Pareceu muito mais velho do que era aos 37 anos de idade.

Contaria tudo o que Peres desejasse saber.

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