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Capítulo 2

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Capítulo 5

Capítulo 5

2

Portugal, 1330 (vinte e cinco anos antes)

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Sem pressa, Pedro saboreava uma pera, colhida de uma das árvores próximas ao rio Mondego. Estava imundo da cabeça aos pés de tanto brincar no lamaçal que se formara às margens do rio após uma noite de chuva torrencial.

Naquela tarde gostosa de primavera, tudo o que o menino de dez anos queria era fugir dos estudos. Não que fosse mau aluno; até gostava de estudar. Mas a fuga atrás de brincadeiras fazia parte de sua natureza inquieta.

Além do Mondego, a paisagem de campos arados, protegida na retaguarda pela floresta, enchia seus olhos. Daquele lado ficavam o Mosteiro de Santa Clara e a residência de sua avó paterna, Isabel, uma mulher bondosa que o povo considerava santa por ajudar os pobres e desamparados.

Nem sempre o garoto conseguia visitá-la, atrás das histórias que somente ela sabia contar tão bem. O avô, o falecido rei Dinis, fora um ótimo governante e um trovador talentoso. Reinara preocupado em povoar de fato o reino de Portugal, incentivando a ocupação das terras mais distantes e próximas ao litoral.

O garoto conhecera-o aos quatro anos de idade, quando finalmente Dinis fizera as pazes com o filho legítimo Afonso, pai de Pedro, ao reconhecê-lo como herdeiro ao trono. Isso depois de travar com Afonso uma guerra civil e desistir de apoiar outro filho, um de seus bastardos.

Um dia que ficara marcado para sempre no menino como a primeira vez em que envergonhara o pai. Diante do avô poderoso e intimidante, Pedro gaguejara. Algo, aliás, que nunca mais deixaria de fazer. Jamais esqueceria o olhar de decepção que Afonso lhe dirigira e o tédio no rosto de Dinis, possivelmente por comparar o neto legítimo aos netos mais espertos que seus bastardos já tinham lhe dado.

Naquele mesmo dia, Afonso decidira tirar o filho da proteção materna e entregá-lo para ser criado por um conselheiro seu, Lopo Pacheco. Era um hábito bastante difundido entre a nobreza, que vivia mandando seus filhos para serem criados por aliados e, em troca, recebiam deles suas crianças para cuidar. De qualquer forma, a decisão soara como um castigo doloroso para Pedro. Não tivera outra oportunidade para tentar impressionar o avô exigente, que morrera um ano depois.

Com o pulso, o garoto retirou parte do sumo da pera, o qual lhe escorreu até o queixo. Estava de costas para a colina, onde se localizavam as muralhas da cidade de Coimbra, com suas torres imponentes. Sob essa proteção ficava também o castelo, chamado de paço, uma das residências do rei português. – Melhor voltarmos, senhor – disse seu criado, Estêvão Lobato, que acabara de sair do rio após um mergulho.

Apesar de encharcado, Estêvão parecia mais limpo do que o infante, que conhecia desde os cinco anos. Tinham a mesma idade, estudavam com o mesmo preceptor e compartilhavam o gosto pela vida ao ar livre, com suas caçadas, cavalgadas, a falcoaria, os jogos de destreza guerreira e, claro, as armas. Jogavam pião, giravam os

arcos de madeira para depois correr atrás deles, escalavam paredes, pulavam muros, atiravam pedras, nadavam no Mondego e já nem sabiam mais a quem pertenciam os cavalinhos de madeira e os moinhos de vento com que brincavam quando eram mais novos.

Lobato era outra das crianças que Lopo Pacheco educava, um dos seus filhos de criação. Vinha de uma família nobre inferior, conhecida por ocupar cargos de criadagem para os fidalgos mais ricos e influentes. Não tinha as bochechas fofas, a tendência para engordar e o jeito desengonçado de Pedro. Bonito, dono de modos elegantes e sempre preocupado em causar uma boa impressão, curiosamente era Lobato quem correspondia à imagem ideal que se esperava de um herdeiro ao trono. – Ainda é cedo – disse o verdadeiro infante.

O outro deu de ombros ao ter descartado mais um de seus sábios conselhos. Não demorou para Diogo, o filho legítimo de Lopo Pacheco, surgir em pessoa para buscá-los. Apenas alguns anos mais velho do que Pedro, o rapaz vinha a cavalo e estava furioso por ser obrigado a procurá-lo quando o que mais queria era descansar após uma longa e desgastante viagem. – Por que nunca estás onde deverias?! – gritou ele para o infante. – Acabamos de chegar, trazendo a comitiva de D. Branca!

Pedro e Lobato não titubearam. Dispararam numa corrida veloz de volta à cidade muralhada. Nem um pouco interessado em retornar a pé, Diogo não se dispôs a lhes oferecer o cavalo. Partiu na frente, talvez pensando em ganhar tempo para o atraso do infante.

Os garotos logo alcançaram a colina. Cruzaram um dos portões da cidade, passando por baixo da torre de Almedina pelo seu arco – o reforçado portão construído na época em que os mouros dominavam a maior parte do reino –, e continuaram subindo. As ruas eram estreitas, ladeadas por casas de um ou dois andares, construções simples e apertadas que iam ganhando mais sofisticação e espaço conforme se aproximavam do paço real. Graças à vinda da

comitiva, havia uma circulação maior de pessoas, um movimento que lembrava o cotidiano da Judiaria, o bairro dos judeus que, como os mouros e sua Mouraria, tinham um espaço próprio e limitado para morar e fazer seu comércio.

Estabanado, Pedro trombou com uma mulher. Ela vendia retalhos na porta de uma loja que, no andar superior, funcionava como residência da família. O garoto caiu, rolou no chão e, sem demora, pôs-se novamente em pé. Ouviu a mulher xingá-lo em voz alta, sem reconhecê-lo, enquanto voltava a correr feito doido.

A tal Branca tinha de chegar justo quando estava tão longe do paço? Para falar a verdade, ela nem precisava se dar ao trabalho de chegar. Podia ficar em Castela, de onde viera especialmente para se casar com o garoto. Um casamento, na verdade, que demorara anos para ser acertado e que envolvia dotes, terras e vários acordos políticos, inclusive um que casara a irmã mais velha de Pedro com o rei de Castela.

Um ano mais velha do que o infante português, Branca – filha de uma princesa aragonesa e de um falecido príncipe castelhano – era uma peça fundamental no intenso jogo de tabuleiro que movia a política na Península Ibérica.

Casamentos entre a realeza e, como consequência, entre os nobres não passavam de lucrativos negócios de família. Com eles, ganhava-se poder, influência e heranças polpudas. Os acordos matrimoniais eram tratados pelos pais, obrigando os filhos a se casarem ainda na infância. A partir dos doze anos, as meninas podiam consumar a união. Já os meninos conquistavam a maioridade aos catorze.

Branca, como ocorrera com várias infantas antes dela, terminaria de ser criada na terra em que iria viver e ser rainha. Era o costume. Acontecera o mesmo com Beatriz, mãe de Pedro, que viera criança para Portugal e fora criada pela sogra. Beatriz, aliás, também era castelhana e irmã do pai de Branca. Havia outros

parentescos envolvendo as famílias reais portuguesa, castelhana e aragonesa, que costumavam casar seus filhos entre si. Para casar Pedro, que era primo de Branca, Afonso IV precisara obter uma autorização do Papa, pois a Igreja proibia a união tão próxima entre membros da mesma família.

Pedro, que não tinha a menor vontade de se casar, pensava nos jogos e nas brincadeiras que seria obrigado a abandonar para tomar conta da esposa. Foi diminuindo o ritmo da corrida, desejando retornar ao rio. Poderia ficar pescando até o anoitecer, daria um mergulho e…

Ao perceber suas intenções, Lobato retrocedeu para puxá-lo pela camisa. – Senhor, não provoques teu pai – aconselhou ele.

Pedro teve de ceder. Mais uma entre tantas outras vezes que faria a vontade do pai.

No paço, o pátio externo estava tomado pelas comitivas de Branca e dos Pacheco, um caos de cavalos, carroças, arcas e pessoas. Diogo, que voltara bem antes dos garotos, já avisara seus criados. Eles estavam a postos para receber o infante, levá-lo ao primeiro aposento do caminho, limpá-lo e trocar sua roupa na maior rapidez possível. No mesmo local, Lobato vestiu roupas secas, ajeitou os cabelos escuros e mandou uma das criadas fazer o mesmo com os cabelos de Pedro, empapados com a lama que começava a secar. Não daria tempo de lavá-los. Apesar do pente, a mulher não teve sucesso. – Deixa comigo! – ofereceu uma serva idosa que estava com a família Pacheco havia anos. Prática, ela encheu a mão de cuspe e, após esfregá-lo nos cabelos do infante, resolveu a questão à sua maneira.

Lobato espiou-o com um olhar reprovador, porém não disse nada. Voltou a prender o infante pela roupa e seguiu arrastando-o até a porta da sala térrea e ampla, local de festas, cerimônias e recepções, como a que estava acontecendo naquele momento. Pedro estacou. Não queria entrar. Lobato suspirou e, ainda puxando-o, abriu seu melhor sorriso para todos. O infante baixou a cabeça para contemplar o piso de pedras, resignando-se a cumprir seu papel.

O amigo largou-o apenas quando pararam diante do rei, da rainha, de Lopo Pacheco, de Diogo e dos castelhanos. Ao seu redor, estavam todos os nobres que ocupavam funções reais em Coimbra, além de outros convidados do clero e da nobreza, comerciantes e ainda gente do povo que apareceu apenas para conhecer a futura rainha de Portugal.

Pedro sentiu que o pai o analisava de cima a baixo, criticando sua aparência. Para completar, o rosto do menino estava vermelho devido à correria e o suor escorria da testa, do pescoço e das axilas. E tudo ficaria ainda pior quando tivesse de dizer algumas palavras de boas-vindas aos recém-chegados. Iria gaguejar, com certeza. Novamente Afonso passaria vergonha por culpa do filho.

O silêncio tornava-se embaraçoso. A princesa aragonesa, mãe de Branca, tomou a iniciativa de quebrá-lo. – Tens um filho muito bonito, senhor – elogiou. Seu olhar estava em Lobato, o único que, com sua postura altiva, se comportava como esperavam que o filho de Afonso se comportasse.

Ao perceber a confusão, o garoto deu alguns passos para trás e sutilmente misturou-se à multidão. A princesa fitou o rei, sem entender nada. Ele precisou indicar seu herdeiro. – Este é Pedro, senhora – explicou, numa voz cansada.

Ela mal disfarçou a decepção. O garoto desistiu de cumprimentá-la, fechando-se num mutismo desesperado. Para amenizar o constrangimento, Beatriz encheu a princesa de perguntas sobre

Branca, seus hábitos, seu temperamento, os alimentos preferidos, enfim, tudo o que deveria saber sobre a filha que ganhava a partir daquele dia.

Pedro reuniu coragem de conhecer sua futura esposa. Espiou-a. Para sua surpresa, ela também o espiava, curiosa e amedrontada. Era uma menina frágil e miúda com um rosto comum, nada que a destacasse entre as outras mulheres. Os olhos estavam vermelhos por tentar bloquear o choro. Devia ser difícil para ela ganhar uma família desconhecida de uma hora para outra, mudar de reino, ser separada da mãe e, pior, acabar prisioneira de um casamento com um menino que nunca vira antes.

Tímido, Pedro sorriu para ela, apenas para ela. Ele a entendia. Branca retribuiu o sorriso, automaticamente ganhando uma aura de beleza que somente o garoto enxergou. Havia sofrimento, mas também muita bondade em seu espírito. Ele reparou em seus cabelos castanhos, no tom azul dos olhos, nas covinhas que lhe marcavam os cantos dos lábios.

Soube ali mesmo que amaria Branca até o fim de seus dias.

Uma semana mais tarde, com toda a pompa necessária para a ocasião, Pedro e Branca casaram-se na Catedral da Sé por palavras de presente, como mandava a tradição. Quando o garoto tivesse catorze anos, a idade oficial para consumar a união, as bodas seriam completadas.

Na hora do juramento, óbvio que Pedro gaguejou muito, para aflição do rei e desespero da rainha. A avó Isabel, no entanto, dirigiu-lhe um olhar de incentivo e confiança. Branca sorriu, dando-lhe total apoio. Os demais convidados, impassíveis, fizeram de conta que a gagueira não existia.

Logo o garoto esqueceu aquele suplício com as festas que se seguiram. No paço, diante da família, comportou-se como deveria,

muito sério, mas, quando conseguiu escapulir para a rua, cantou e dançou com o povo, divertindo-se bastante. Com as pessoas simples, podia ser ele mesmo. Tinha o riso fácil, alegre, de bem com a vida.

Na semana seguinte, a mãe de Branca partiu para Aguilar de Campo, em Castela, para tomar posse efetiva como senhora da vila que pertencera ao marido e que ela finalmente conseguia ter sob seu poder com o casamento da filha. Largou-a sozinha no meio de um punhado de nobres castelhanos e aragoneses que gerenciavam a “casa” da menina, o espaço que ela passara a ocupar no paço.

Beatriz também tinha a sua “casa”, assim como Isabel tivera uma antes de vestir o hábito de monja e se recolher junto ao Mosteiro de Santa Clara. Como rei, Afonso também tinha a sua. Tratava-se não somente de um espaço de proteção, mas também de poder para os nobres, pois ocupar um cargo junto à realeza dava status e podia render excelentes negócios.

O maior desafio de Pedro foi driblar a vigilância feroz de dois aragoneses responsáveis por Branca: a aia Berengária Garcia e o vedor, oficial responsável pela economia, provisão e fiscalização da “casa”. Pedro era teimoso e tanto fez que, no começo de uma tarde qualquer, no mês de maio, conseguiu se esconder atrás de uma tapeçaria, no quarto da quase esposa. Teve de esperar uma eternidade para que ela ficasse sozinha no local.

Sem fazer barulho, aproximou-se. Branca estava sentada em um banco. Costurava um tecido fino, uma das tarefas que Berengária lhe dera. O rosto, abatido desde a partida da mãe, mantinha-se inalterável. Pedro, que sempre a via tão entristecida na missa diária no início da manhã, resolvera fazer alguma coisa para ajudar. Por isso estava ali, arriscando levar uma merecida bronca do pai de criação ou até uma surra do pai de verdade. O primeiro nunca o machucara, preferindo lhe dar conselhos e orientações. Já Afonso batera-lhe com o cinturão nas pernas uma vez, depois que o menino

ateara fogo sem querer ao manto do altar da catedral, o que poderia ter provocado um incêndio de grandes proporções na cidade. – E-eu… – Pedro começou, temendo assustar a garota.

Não deu certo. Branca pulou de susto, largando a costura.

Ao reconhecê-lo, ela se acalmou. – Senhor, como entraste aqui? – perguntou.

Ele procurou falar palavra por palavra para evitar a gagueira. – Vim… te… convidar… para… um… passeio.

Branca sorriu. – Minha aia não vai permitir. – E-ela não… pre-precisa saber.

Com um sorriso travesso, ele lhe estendeu a mão, que ela aceitou sem hesitar. – Mas… como sairemos daqui? – indagou, preocupada.

Todo castelo costuma ter passagens secretas e não era diferente com o paço em Coimbra. Após escaparem do quarto sem serem vistos, os dois tomaram um corredor e, a seguir, uma das passagens que levava a um túnel longo e tortuoso. O caminho terminou numa porta de madeira, esquecida em um estábulo abandonado, na Judiaria.

Pedro, que tinha pensado em cada detalhe da aventura, tirou de um saco escondido no feno um vestido simples, usado pelas servas. – Não podes andar por aí com tuas roupas de infanta – disse ele, que já viera disfarçado. A camisa e a calça comprida eram muito velhas, os sapatos tinham furos. Peças comuns para quem vivia na pobreza.

Pela primeira vez, não gaguejara nem tampouco hesitara ao falar com a garota. Começava a se sentir à vontade diante dela,

talvez por estar longe das formalidades da corte. Ele lhe deu o vestido e ficou de costas para que ela pudesse se trocar. – Meu avô usava essa passagem secreta quando queria ter alguma conversa reservada com os judeus – contou Pedro. – Ao contrário do meu pai, que os obriga a andar com aquela estrela amarela colada no chapéu ou no capote para diferenciá-los dos cristãos, D. Dinis tinha os judeus como aliados. – Tens amigos aqui? – Tenho. E também na Mouraria. Amanhã te levo lá.

Então haveria outros passeios? Branca procurou não demonstrar sua empolgação. Era a primeira vez que a resgatavam da cela que sempre fora sua vida. – Pronto – disse, após ajustar o último laço do vestido. – Agora não sou mais uma infanta.

Pedro virou-se e corou ao admirá-la em seu novo visual. Ela soltara os cabelos, que viviam numa trança enrolada junto à nuca, e sua habitual palidez a abandonara para o tom cor-de-rosa trazido pela timidez a seus lábios e bochechas. – Estás mu-muito… be-be-be-bela.

Encabulada, Branca baixou o rosto. Não estava acostumada a elogios. Sempre fora a valiosa herdeira de seu pai na disputa política e territorial entre Castela e Aragão e apenas isso. O pai morrera em um acidente em Granada antes mesmo que ela nascesse. A gravidez da mãe fora vigiada de longe pelo preocupado avô materno, o rei de Aragão, que não mediu esforços para protegê-la, a mesma postura que manteve depois que a menina veio ao mundo.

Mãe e filha passaram por várias peripécias, entre elas o acesso sempre negado à fortuna que lhes cabia, a consequente falta de dinheiro, a possibilidade de rapto e até assassinato da menina e as alianças fracassadas com os nobres de Castela, ora a favor e ora contra o rei daquele reino. Sempre viveram presas às artimanhas de uma perigosa teia de intrigas e conspirações. Pedro não fora o

primeiro pretendente de Branca. Quando ela estava com apenas dois anos de idade, tinham tentado casá-la com o rei castelhano, que também era seu primo.

Pedro mais uma vez estendeu-lhe a mão. – Vem comigo – convidou.

Os dois perambularam pelas ruas da Judiaria e por seu comércio efervescente. Na casa do amigo sapateiro de Pedro, a menina conheceu mais sobre o ofício de fazer e consertar calçados. Ao passarem pela loja do alfaiate Judah, ganharam bolos de mel e brincaram com as crianças da família.

A tarde divertida terminou muito rápido. Anoitecia quando o garoto, usando a passagem secreta e depois o corredor, levou a quase esposa de volta ao quarto. A aia Berengária era a única que os esperava. – Pelo que eu soube da fama de arteiro do teu marido, imaginei que estivesses mesmo com ele – disse ela, após um longo suspiro. A felicidade de sua menina, um sentimento que não via nela havia meses, impedira-a de aplicar a bronca merecida. – Primeiro achei que tinhas sido raptada. Pensei o pior, quis chamar o vedor e os guardas, mas então lembrei que estás segura aqui, em Portugal. Ainda bem que eu estava certa. Caso contrário… – Amanhã… levarei D. Branca para… para um novo passeio – disse Pedro, erguendo o queixo com a autoridade que ainda aprendia a exercer.

Berengária abriu a boca para protestar. Não conseguiu. Via o casalzinho de mãos dadas, ele ameaçando proteger a menina se fosse necessário. Lembrou os tantos casamentos reais que tinham fracassado devido à ausência de amor entre marido e mulher.

Aquelas crianças, pelo visto, eram cúmplices em algo maior do que uma simples fuga para passear pela cidade.

Estavam aprendendo a gostar um do outro. – Está bem, eu vos darei cobertura – cedeu a aia, ganhando automaticamente o lindo sorriso de Branca e o olhar desconfiado de Pedro. – Mas vou querer saber por onde andais e o que fazeis, hein?

Óbvio que nenhum dos dois contou à aia a verdade sobre seus passeios secretos. Para não levantar suspeitas, Pedro fingia que ia caçar com Lobato e, disfarçado, escapava da vigilância dos adultos na primeira oportunidade. O criado, como sempre, encobria suas travessuras.

Branca conheceu o lado bom da infância que nunca pudera experimentar. Revelou-se uma grande amiga, a conselheira que o infante aprendeu a ouvir com atenção. A experiência de vida da garota mostrou-lhe o funcionamento da complicada política ibérica, com reis e fidalgos que mudavam sua lealdade de lado a cada instante, dependendo dos interesses envolvidos, e raramente cumpriam suas promessas, trapaceando a maior parte do tempo. Sem que Pedro percebesse, ela o preparava para, no futuro, assumir o trono.

Já o garoto admirava a inteligência que jamais suspeitara existir numa mulher, confiando-lhe segredos que jamais tivera coragem de contar ao melhor amigo Lobato. Gostava de lhe dar presentes para vê-la sorrir ainda mais, coisas simples de criança, em geral pães recém-assados ou frutas maduras e suculentas. Branca não tinha o mesmo apetite de Pedro, que adorava se fartar, mas sempre aceitava um bocadinho para fazê-lo feliz. Para ela, o melhor presente, sem dúvida, foi um filhote de cachorro que

ele encontrara abandonado nas ruas. O animal passou a ser a companhia constante da menina, principalmente nos momentos solitários em seu quarto.

No momento em que a infância foi embora, cedendo espaço à adolescência, Pedro deu-se conta de que Branca se transformara numa jovem atraente e delicada. Não gostava dos olhares masculinos que ela atraía sem desejar e, ciumento, arrumou briga com um e outro rapaz mais insistente. Recebeu socos e chutes por isso, porém deixou seus rivais com o nariz quebrado e a certeza de que não deviam cobiçar a mulher do próximo.

Em um agradável final de tarde, quase três meses após Pedro completar treze anos, ele finalmente ousou beijar os lábios de sua quase esposa. Estavam à beira do rio Mondego, os últimos raios avermelhados de um sol de verão espalhando-se sobre a superfície da água. A luminosidade tornara dourados os cabelos de Branca. Tão vulnerável, ela parecia uma figura etérea, uma donzela encantada das histórias mouras.

Embora desejasse mais, Pedro controlou-se naquele e nos vários beijos que marcaram os passeios seguintes. Faltava pouco para as bodas e não seria ele a adiantar a feliz vida de casados que teriam pela frente.

Logo a ansiedade dos adolescentes foi percebida na troca de olhares entre eles, nas mãos dadas que escondiam sob a mesa nas festas da corte. Alguém reparou que os dois sumiam juntos após seu rotineiro passeio pela cidade, que deixara de ser secreto havia muito tempo. Não demorou para o burburinho chegar aos ouvidos reais. – Devemos terminar de casá-los o quanto antes – insistia a rainha Beatriz com o marido. – Incomoda-me saber que eles andam se beijando às escondidas e fazendo sabe-se lá mais o quê…

Mais uma vez Afonso preferiu não comentar o assunto. Diante das novas perspectivas de alianças políticas, o casamento com

Branca corria o risco de perder sua importância. Tudo indicava que, muito em breve, haveria uma esposa bem mais interessante para Pedro.

Alguém que atenderia melhor aos interesses do reino.

Naquele mesmo ano, 1333, nasceu Enrique, que seria senhor de Trastâmara, mais um bastardo do rei castelhano Alfonso XI com a Guzmán, como se referiam à sua amante. A esposa Maria, irmã de Pedro, vivia sendo humilhada pelo marido. Seu único menino, herdeiro legítimo de Castela, nasceria apenas no ano seguinte.

Foi nos primeiros dias de primavera de 1334 que Pedro, Lobato e mais alguns homens partiram numa caçada para o leste de Coimbra. O infante prometera à avó doar toda a carne que conseguisse ao Mosteiro de Santa Clara, que a distribuiria aos pobres. Havia alguns meses a fome transformara-se numa companhia apavorante para as camadas mais empobrecidas da população, principalmente nas cidades, um problema que também afetava outras regiões da Península Ibérica.

Após deixar um vasto campo de milho para trás, o grupo afundou na floresta atrás de javalis, gamos, cabritos monteses e até ursos, comuns nas matas mais fechadas. Se não tivessem sorte, sempre poderiam contar com lebres, coelhos, gansos-bravos e pequenos pássaros, como pardais e gralhas. Caçar era uma atividade habitual e, para Pedro, sua chance para gastar energia e ainda colaborar com o fornecimento de carne, fosse para consumo no próprio paço ou, no caso, para alimentar os mais desafortunados.

Começaram bem e no terceiro dia caçaram um furioso javali. Ele deu bastante trabalho e, se não fosse pela pontaria precisa da lança de Pedro, teria ferido Lobato com gravidade.

– Salvaste minha vida, senhor – disse o garoto, na tentativa de agradecer. – Não exageres – retrucou o infante.

Realmente não se enxergava como herói. Numa caçada, todos dependiam de todos, num tremendo exercício de confiança, pois um erro tolo poderia custar a vida de alguém. Desse modo, era rotina um sempre salvar o outro de alguma encrenca.

Continuaram a viagem, tomando como referência a grandiosa Serra da Estrela, no horizonte. Aquelas terras tão selvagens e ao mesmo tempo tão ricas sempre fascinavam Pedro. Se pudesse escolher seu destino, era o que pretendia para si: uma vida de aventuras em todos os lugares que pudesse conhecer.

No sexto dia, enquanto perseguiam um gamo com seus cavalos e cachorros, uma situação inusitada desviou-lhe a atenção. Aos pés de uma colina, três camponeses surravam uma idosa, que gritava por socorro.

Automaticamente, Pedro desviou seu cavalo e foi naquela direção. Lobato seguiu-o. Os demais não interromperam a perseguição ao animal.

A chegada dos dois cavaleiros alertou os agressores. – Covardes! Deixai essa mulher em paz! – mandou o infante, aproximando-se para atropelá-los se fosse necessário.

Diante da colisão iminente, eles fugiram. Estavam a pé e desarmados. Não seriam páreo para os cavaleiros que, apesar de muito jovens, vinham com suas espadas em punho.

Após confirmar que os camponeses sumiam entre a vegetação, Pedro parou o cavalo, desceu num pulo, guardou a espada na bainha e correu para ajudar a mulher. Lobato também desmontou. Manteve-se vigilante, a alguma distância. – Estás muito ferida? – perguntou Pedro ao ajudá-la a se levantar. Um corte sangrava na testa e hematomas surgiriam nos

antebraços, que as mangas de seu vestido imundo e remendado não escondiam. – Quebraste algum osso?

A mulher exibiu a gengiva desdentada num sorriso generoso para tranquilizá-lo. Graças a ele, não se ferira com gravidade. – Tenho fome – disse ela.

Pedro voltou para perto do cavalo e tirou do alforje o pão e os figos que o alimentariam naquela noite, quando parassem para acampar. Entregou-lhe tudo. Rápida, ela escondeu os alimentos nos bolsos do vestido. – Dá-me tua mão – pediu.

Como o garoto hesitasse, ela o prendeu pelo pulso direito e o obrigou a expor a palma da mão.

Lobato estremeceu, deduzindo o que o outro ainda não entendera. – Senhor… – chamou, aflito. – Ela é uma bruxa… Por isso batiam nela.

Combatida pela Igreja, a bruxaria integrava o cotidiano do povo, embora provocasse temor na maioria. Eram as mulheres, mesmo as mais ricas, que costumavam recorrer aos feitiços das bruxas para conseguir um marido, curar os filhos doentes ou se livrar de alguma gravidez indesejada.

Pedro arregalou os olhos, tentou retirar a mão.

Demonstrando força demais para sua idade tão avançada, a bruxa só iria libertá-lo quando desejasse. Ele respirou fundo, desejando que ela fosse como as bruxas das histórias que sua avó lhe contava, alguém que surgia no caminho dos príncipes e das princesas apenas para orientá-los. – Hum… – começou a bruxa, estreitando o olhar para as linhas em destaque na palma da mão. – Vitalidade… Ótima saúde… Ela só faltará no final.

O rosto dela iluminou-se.

– Serás um homem de muito poder, com amigos fiéis e inimigos perigosos. – Que-que inimigos? – interessou-se ele. – Homens de poder, como tu. Combaterás a fome, a miséria, a guerra… E a mais terrível das doenças, que ceifará inúmeras vidas.

Sentindo-se desconfortável, o garoto mudou o peso de uma perna para a outra. – Haverá várias mulheres na tua vida, mas uma delas… – prosseguiu a bruxa, ainda decifrando as linhas. – Com essa mulher viverás o amor verdadeiro, o mais intenso que existe no universo, tão poderoso que será capaz de quebrar encantamentos e atrair a inveja dos deuses. Conhecerás a felicidade suprema que todos ambicionam, mas que raros conquistam. Então…

Ela hesitou, assustada. – Então? – quis saber Pedro, àquela altura bastante impressionado. Lobato, impaciente, apertava o punho da espada. – Teu coração será arrancado. – É assim… que… que… mo-mo-morrerei? – ele quis confirmar. – Não. Continuarás vivo, mas sem teu coração, entendes? – E como isso é… po-po-possível?

Ela suspirou. – Vejo sangue, destruição, loucura. O gosto amargo da vingança.

Foi a vez de Pedro estremecer. Novamente quis se libertar, porém a bruxa ainda não terminara. – Ficarás perdido até que o anjo vingador te encontre. – Anjo vingador, é? – resmungou Lobato, sem se conter.

Ela o ignorou. Esquecera as linhas para fitar Pedro com olhos profundos, como se desnudasse seu espírito. – O anjo vingador resgatará tua justiça.

O infante não estava entendendo nada. Bufou, contrariado. Não a surravam porque era bruxa, e sim por ser louca. – Liberta-me – disse.

Não era um pedido.

Submissa, ela obedeceu e se afastou. Movido por seus bons modos, Lobato viu-se obrigado a lhe pagar pelo serviço. Jogou-lhe algumas moedas, que a bruxa capturou no ar com bastante agilidade. – Muito obrigada, moço bonito. Desejas que eu também leia teu futuro?

Ele rangeu os dentes e voltou para a sela. – Terás filhos – a bruxa disse a Pedro. – E um deles, um mestre, será tão importante que dará início a uma nova era em nosso reino.

Sem paciência para supostas previsões, o infante montou em seu cavalo e, com o amigo, saiu a galope atrás de seus homens. Ainda tinha uma caçada à sua espera.

O resultado da caçada foi bastante satisfatório. Além do javali e do gamo, conseguiram as carnes de vários animais menores. Pedro, então, despachou na frente Lobato e o restante dos homens direto para o mosteiro. Foi na retaguarda, sozinho. A bruxa dera-lhe muito para refletir. Pensou na tal mulher que amaria… Ou que já amava. Ela morreria, era isso? Branca iria morrer?

Cada vez mais preocupado, não percebeu que aumentava a distância entre ele e os homens. Quando mais de um dia já os separava, o infante escolheu um trajeto alternativo para ganhar tempo. Desembocou duas horas mais tarde, por volta do meio-dia, numa trilha usada por quem preferia passar despercebido, pois assim evitava as estradas mais movimentadas.

Despertaram-lhe o interesse algumas marcas feitas na terra pelas ferraduras de um cavalo. Eram recentes. O cavaleiro ia poucos minutos na dianteira.

Temeroso, o garoto apertou o punho da espada. Ainda estava longe de Coimbra e sabia muito bem que era perigoso viajar sozinho. Não havia segurança nas fronteiras do reino e muito menos em seu território, sempre ameaçado por vagabundos, ladrões e soldados sem liderança atrás de roubos e saques.

Em certo ponto, o tal cavaleiro abandonou a trilha. Mais para a frente, novos rastros revelavam que ele encontrara alguém vindo da direção oposta. Tinham descido juntos até um riacho próximo.

Talvez não devesse dar importância ao fato, mas, enfim, a curiosidade de Pedro levou a melhor. Ele desmontou, escondeu seu cavalo na vegetação e, sem fazer barulho, seguiu os dois.

Avistou-os em pé, junto à margem do riacho. Uma das montarias pastava a alguns metros. A outra não era visível. Cobertos por longas capas de viagem, os dois homens conversavam em voz baixa, o que obrigou Pedro, escondido atrás de uma árvore, a apurar os ouvidos. O barulho da correnteza, no entanto, atrapalhava seus planos. Precisou se aproximar ainda mais.

Arriscando-se a ser descoberto, rastejou até um punhado de arbustos que mal o ocultava. Dessa vez, o vento decidiu cooperar e trouxe-lhe algumas palavras. – Estamos acertados – dizia um dos homens, enquanto entregava ao outro uma pequena caixa de madeira. – A infanta deve morrer antes do final deste mês.

Pedro gelou. De que infanta falavam?

Branca?

O outro fez uma pergunta que não pôde ser ouvida. Estava de costas para o infante, sob a sombra da copa robusta de uma árvore. O garoto enxergava apenas seu vulto. – Não duvides – respondeu o primeiro. – D. Juan Manuel sabe recompensar seus aliados.

Referia-se a um dos mais poderosos nobres castelhanos, neto de reis e dono de terras de importância estratégica para seu reino.

No momento, era um inimigo não declarado do rei castelhano por ele ter repudiado anos antes Constança, a filha preferida de Juan Manuel, humilhando-o diante de todos.

Na realidade, tudo não passara de uma estratégia do rei castelhano para enganá-lo e, principalmente, quebrar a aliança dele com outros nobres que cobiçavam o trono. Atraíra-o para o seu lado, enchendo-o de promessas e casando-se por palavras de presente com Constança, na época ainda uma criança, ao mesmo tempo em que o afastara dos aliados.

Por fim, mandara assassinar o mais importante desses aliados antes de desfazer o casamento e trancafiar Constança no castelo de Toro, garantindo assim um aparente controle sobre as ações de Juan Manuel. Satisfeito com a própria esperteza, o rei castelhano partira para um acordo mais vantajoso: tomara a infanta portuguesa Maria como esposa e unira Branca a Pedro, o que lhe permitira se apropriar de parte da herança paterna da prima.

Juan Manuel, entretanto, rebelara-se, atacando povoados e destruindo plantações. Dois anos mais tarde, o rei castelhano devolvia-lhe a filha. Um acordo de paz fora firmado. Mas será que, após tanto tempo, o ressentido Juan Manuel tramava algum tipo de vingança que, na certa, iria lhe devolver o poder e ajudá-lo a acumular mais riquezas?

Pedro apertou os olhos, tentando acompanhar os movimentos do segundo homem. Ele já se deslocava numa rota que o colocaria fora do alcance do infante.

Ainda restava o primeiro homem, aquele de quem Pedro arrancaria toda a verdade.

Tomando o máximo cuidado para não ser visto, o garoto subiu numa árvore e aguardou. O sujeito teria de passar por ali, após retomar o cavalo, se quisesse ir para a trilha. Foi o que aconteceu.

Pedro só teria uma chance. Arriscou.

Assim que o outro passou debaixo dos galhos em que se pendurara, o garoto pulou sobre ele, surpreendendo-o. Ambos caíram da sela e rolaram declive abaixo até o riacho. Quando pararam, Pedro foi mais rápido. Sacou sua espada e, prendendo o homem ao chão com a parte de cima de seu corpo, encostou-lhe a lâmina contra a garganta, exigindo respostas. – Que infanta D. Juan Manuel quer morta? O que tinha dentro daquela caixa?

O sujeito era maior, mais velho e muito mais forte do que ele. Arreganhou os dentes num sorriso de desdém. A ameaça não surtia efeito.

Pedro teve de se esforçar mais. Provocou-lhe um talho com a arma. Sangue brotou em seguida.

De repente, uma adaga atravessou um pedaço da camisa do garoto, rasgando-lhe pele e carne de raspão na lateral de seu abdômen. Apesar de sua pouca mobilidade, o sujeito conseguira tirar a arma de algum bolso, movera a lâmina para cima e, sem muita pontaria, desferira o golpe.

O instinto de sobrevivência fez Pedro retroceder em vez de degolar seu prisioneiro, que o empurrou com violência para trás, se pôs em pé com agilidade e, trocando a adaga pela espada que tirou da bainha, avançou para retalhá-lo.

Outra vez no chão, o garoto ergueu a arma para se defender.

O golpe veio e foi rechaçado. Com as pernas, Pedro empurrou o adversário, ganhando milésimos de segundos para se levantar. Vieram novos golpes, uma ofensiva que não lhe dava oportunidade de reagir. Mal e mal conseguia se defender. Foi recuando, sentindo que se aproximava cada vez mais do riacho.

Um último ataque arrancou-lhe a espada. Indefeso, o garoto jogou-se de costas na água, ao mesmo tempo em que a lâmina adversária cortava o ar, a ponta raspando-lhe o peito de lado a lado enquanto ele caía. Conhecia bem aquele riacho. Tinha pouca

profundidade, mas o suficiente para que pudesse imergir e nadar para longe.

Minutos depois, quando teve de ir à tona para respirar, viu que o perigo se tornara muito pior. O sujeito correra até o cavalo, que parara a poucos passos da árvore, e de lá trouxera um arco e uma aljava cheia de flechas, que pendurara ao ombro. Naquele instante, mirava o garoto numa pontaria que se mostrava exata.

Disparou a flecha.

Pedro engoliu ar e afundou. A flecha bateu na superfície da água e perdeu o impacto. Vieram outras enquanto ele, aflito, nadava para fugir. O sujeito caminhava pela margem, seguindo-lhe os movimentos que, mesmo debaixo d’água, eram visíveis para ele. Em algum momento o garoto precisaria respirar.

Quando foi obrigado a emergir, Pedro arriscou tudo. Imediatamente uma flecha passou zunindo junto à sua orelha. Ele inspirou uma enorme quantidade de ar e mergulhou. Outra flecha quase o atingiu.

Continuou nadando. Além dos peixes que fugiam dele, vislumbrou um punhado de raízes submersas de uma árvore enorme que, inclinada, mantinha o restante das raízes presas com firmeza no solo da margem oposta. Pedro bateu os pés com mais intensidade, alcançou-as e, escondendo-se entre elas, pôs a cabeça para fora d’água.

O sujeito, porém, previra sua manobra. Permanecia no outro lado do riacho, mas subira numa pequena elevação. De lá, disparou novamente.

A seta de metal cravou-se numa das raízes atrás do garoto, milímetros acima de seu ombro, prendendo-o pelas roupas.

Apavorado, Pedro tentou escapulir por baixo, livrando-se delas. O pé esquerdo ficou preso em algum lugar, ele começou a se debater. Sentiu dor quando outra seta veio fazer companhia à primeira, dessa vez acertando-lhe o ombro.

A água invadiu seus ouvidos, o nariz, a boca. Ele sufocava e engolia mais água. As flechas não seriam mais úteis. Morreria afogado.

Foi quando alguém o libertou e o puxou dali. Em terra firme, Pedro vomitou e quase perdeu a consciência, lutando para se manter lúcido. – Por que sempre te metes em confusão? – censurou uma voz conhecida.

Pertencia a Diogo, o filho de Lopo Pacheco. Fora ele quem mergulhara para salvá-lo.

Com dificuldade, o garoto sentou-se. Na margem oposta, o sujeito estava estendido de bruços no chão. Diogo atravessara-lhe as costas com a espada. – Ele não… podia morrer – disse Pedro. – É desse modo que me agradeces? Criticando minhas ações? Fiz o que era necessário: matei teu futuro assassino e ainda tive de entrar na água para te salvar!

As roupas elegantes de Diogo estavam imprestáveis. Os cabelos, sempre penteados e na altura dos ombros, exibiam-se escorridos e sem graça, assim como a barba. Lembrava um bode que apanhara chuva.

Pedro teria caído na gargalhada se a situação não fosse tão grave. – Obri-bri-gado. Como… me achaste… aqui? – Meu pai enviou-me para cuidar de um assunto no norte. Vim pela trilha, então descobri teu cavalo e fiquei preocupado. Segui teus rastros.

O garoto tivera mesmo muita sorte. – Vão… ma-matar a infanta. – Tua irmã mais nova, D. Leonor? – preocupou-se o rapaz. – Talvez… Mas acho… acho que é D. Branca.

Pedro contou-lhe o que ouvira da conversa entre os dois homens. Diogo coçou a barba, pensativo.

– Deves contar a teu pai – aconselhou. – Achas mesmo?

Afonso não era exatamente um pai que o apoiaria… – É o mais acertado. Bom, vou te levar de volta a Coimbra. Mas antes vamos cuidar destes teus ferimentos. Estás sangrando.

Afonso não acreditou numa só palavra do filho. Reuniões secretas junto a riachos, caixinhas misteriosas, Juan Manuel como mandante de um assassinato contra uma infanta… Pedro realmente tinha muita imaginação para explicar por que quase fora morto por um ladrão qualquer. Um perigo que ele mesmo provocara ao arriscar a própria vida após dispensar a escolta. Mais uma vez desobedecia ao pai e ao tutor só para andar sozinho por aí.

Porém, se o filho estivesse falando a verdade… Afonso franziu a testa. Se fosse isso, estavam agindo sem a sua autorização. De qualquer forma, não pretendia interromper uma iniciativa que só lhe traria benefícios. Para ele, os fins sempre justificavam os meios. E Pedro, como futuro rei, tinha de aprender essa lição de um jeito ou de outro.

Para ensiná-lo, Afonso aplicou-lhe uma sova de cinturão, que bateu sem piedade várias vezes em suas pernas. Rebelde e cabeça-dura, o garoto não derramou nem uma lágrima sequer. Foi Beatriz quem desatou a chorar por ele, o que obrigou Afonso a interromper o castigo. – O que achas que aconteceria ao reino se eu perdesse meu único herdeiro? – o pai esbravejou por fim. – Sempre me decepcionas. Por quê?

Pedro não respondeu, sua raiva e humilhação juntas no único olhar que fitava o vazio à sua frente.

Aborrecido, Afonso partiu horas depois para o castelo de Montemor. Beatriz recusou-se a acompanhá-lo. Preferiu ficar com Pedro que, após tomar os remédios ministrados pelo médico da “casa” da rainha, mestre Martinho do Rosmanial, estava tão sonolento que não conseguia sair da cama.

Inês apaixonou-se pela cidade de Lisboa. Perdera o fôlego ao contemplar o majestoso Tejo, o rio que parecia convidar para viagens em mares cheios de mistérios e perigos. Subira em morros para ver a cidade do alto, conhecera as ruínas romanas, quase se perdera em Alfama, o bairro mouro, e no castelo de São Jorge. Nos arredores da cidade em que estava desde o outono, descobrira bosques encantadores, praias e aldeias à beira-mar. – Espera até conhecer Coimbra – dissera-lhe Teresa, senhora de Albuquerque e sua mãe de criação.

Filha bastarda do nobre Pedro de Castro, conhecido como Senhor da Guerra, e de uma dama de Teresa, a menina de nove anos saía pela primeira vez em muito tempo do castelo de Albuquerque, em Castela. Nascida na Galícia, fora muito criança viver com a nova família, junto com o irmão Álvaro. Nunca estivera antes em Portugal, o que aumentava seu entusiasmo.

Viúva de Afonso Sanches, o irmão bastardo que tentara roubar o trono de Afonso IV, Teresa tinha propriedades e livre trânsito por terras lusas, para onde viera para resolver alguns negócios. Graças à influência da mãe de Afonso, Isabel, que a tinha em grande estima, obtivera o perdão real pelas afrontas do falecido marido.

Em Lisboa, ficaram na casa que Teresa possuía no local. No início da primavera, chegaram a Coimbra, onde visitaram primeiro Isabel e depois se hospedaram no paço, a convite da própria rainha Beatriz. Ela e a viúva não eram exatamente amigas, mas já tinham

se unido no passado, sob o incentivo de Isabel, para influenciar seus respectivos maridos a assinarem a paz.

Inês aprendia rápido. Apesar de deslumbrada com a corte, escondeu o que sentia, adotando uma postura gentil e tranquila, como se estivesse bastante acostumada à rotina real. Sua esperteza desde cedo conquistara o respeito do irmão de criação, o jovem Juan Alfonso de Albuquerque. “Para tua sorte e azar das belas, serás a mais bela entre elas”, ele sempre elogiava. Dizia fazer grandes planos para a menina, porém nunca revelava quais eram, explicando que tudo tinha o tempo certo para acontecer. Único filho de Teresa e Afonso Sanches, ele permanecera em Albuquerque, administrando seus assuntos por lá.

Beatriz encantou-se com Inês. Também tinha duas meninas. Maria, a mais velha, que se tornara rainha de Castela, e Leonor, de seis anos, que era criada pelo casal Pacheco, responsável também pela educação do herdeiro da coroa. Segundo a rainha, Pedro estava em seu quarto, recuperando-se da luta que travara contra um ladrão.

Que corajoso!, admirou-se Inês. – Foram as mãos de Deus que guiaram D. Diogo Pacheco para ajudá-lo – disse Beatriz. – Não sei o que seria de mim se algo acontecesse ao meu Pedro…

Ocupavam uma antecâmara onde a rainha recebia os amigos mais próximos. Teresa estava acomodada numa cadeira, a anfitriã em outra, à sua frente, com a anã que sempre lhe fazia companhia, Maria Migueis, sentada no chão ao seu lado. Inês estava em pé atrás delas, assim como outras damas da “casa” e as damas que pertenciam à comitiva da visitante. Para recepcioná-las, havia frutas, bolos e vinho doce numa mesinha.

A conversa durou mais algum tempo até que Teresa e suas damas de companhia se retiraram para os aposentos destinados a hóspedes. O grupo não demoraria mais do que uma semana em

Coimbra, pois ainda teria um longo percurso pela frente até Albuquerque.

Inês só ficou decepcionada ao descobrir que talvez não houvesse tempo para conhecer o rei português. Ele partira na véspera para Montemor e ninguém sabia informar a data de seu regresso.

Após a menina cuidar de seus afazeres, Teresa a dispensou para que ela pudesse passear à vontade, mas desde que não fosse muito longe nem saísse às ruas. Feliz, Inês beijou a face de sua mãe de criação, foi calmamente até a porta e, quando se pôs longe de sua vigilância, saiu correndo como a criança que ainda era.

A muito custo, Pedro sentou-se na cama. A cabeça e as pálpebras pesavam, devido à sonolência induzida pelos remédios. Tinha alguns curativos pelo corpo, hematomas e inúmeros arranhões. O pior vinha das pernas, que latejavam de dor. O cinturão deixara várias marcas roxas e promovera cortes em alguns pontos.

Em pé ao lado da cama, Lobato parecia sofrer mais do que ele. – Eu não devia ter te deixado sozinho, senhor – culpou-se. – Tira-me daqui… – cochichou-lhe Pedro. – Agora…

A ama que o vigiava já pegara uma tigela de sopa fumegante e apressava-se para servi-lo. Uma aia apareceu na porta, sorriu e retornou ao corredor.

O infante não podia fugir pela porta. Mas havia a janela…

Lobato, indeciso, analisou o final de tarde lá fora. Depois espiou Pedro, que abria a boca para tomar a sopa dada em prestativas colheradas pela ama. Seu olhar implorava urgência. – Esta sopa vai queimar a língua do infante – disse Lobato para a ama. Ela não lhe deu ouvidos.

Ele respirou fundo, forçando-se a adotar uma atitude grosseira que jamais aprovaria. Puxou a mulher pelo braço, fazendo-a

derrubar a tigela. O líquido espalhou-se sobre a cama, por sorte longe de Pedro. – Olha o que fizeste, D. Estêvão Lobato! – reclamou ela, com razão. – Contarei tudo a D. Lopo!

Indignada, recolheu a tigela, guardou a colher no bolso do vestido e saiu. O garoto correu para trancar a porta.

Num esforço tremendo, Pedro colocava-se em pé. Rápido, Lobato pegou as roupas simples que o infante costumava usar em seus disfarces e a corda que também escondia atrás de uma pedra solta, na parede. Não era a primeira vez que ele fugia pela janela.

Ajudou-o a vestir a calça comprida, tirar o camisolão, colocar a camisa e pôr os sapatos. A seguir, amarrou uma ponta da corda no madeiramento da cama e lançou a outra ponta para fora da janela. – Vou contigo, senhor. – Não podes. Tens de recolher a corda depois que eu pular e escondê-la novamente. – Mas estás fraco. E se caíres? – Estamos no primeiro pavimento. Não será uma queda perigosa.

Lobato não teve escolha. Com um empurrão seu, Pedro subiu na janela. Ele se prendeu à corda e foi deslizando até o chão. Somente quando o viu em segurança é que o criado puxou a corda para cima.

Aquele lado do paço dava para o horto, o que proporcionava uma vista bucólica e a proteção das árvores, flores e plantas para as fugas habituais.

Pedro controlou a dor e, mancando, esgueirou-se até entrar na porta mais próxima, outra vez no interior da construção. Precisava garantir que nada aconteceria a Branca.

Lobato agiu rápido. Soltou a ponta da corda, escondeu-a no buraco na parede antes de recolocar a pedra, jogou o camisolão de Pedro por cima das próprias roupas, improvisou alguns curativos no rosto e nos braços, respirou ainda mais fundo e foi destrancar a porta. No segundo em que a ama a abriu, trazendo a tigela novamente cheia de sopa, ele a ultrapassou numa corrida desabalada. – Ai, meu Jesus, o infante fugiu! – Ouviu-a gritar antes de desaparecer no corredor.

Um aroma delicioso de sopa vinha de um dos corredores. Alguém passara um pouco antes por lá, carregando a refeição para servi-la a outra pessoa, e sem perceber deixara o aroma para trás. O estômago de Inês reclamou de fome. Para não parecer mal-educada diante da rainha, limitara-se a comer um minúsculo pedaço de bolo.

Onde será que fica a cozinha?, perguntou-se. Seguiu um palpite e distanciou-se dos principais aposentos do paço. Devido ao risco constante de incêndios, a cozinha ficava no térreo, numa área mais afastada.

O narizinho da menina logo farejou o cheiro da carne que preparavam na grelha. O estômago roncou de novo. Foi se aproximando, a rotina barulhenta da cozinha cada vez mais intensa. Parou na porta. O local era imenso, esfumaçado e um tanto sinistro. O fogo, aceso em um buraco no solo e coberto por uma fileira de pedras, aumentava bastante a temperatura daquele final de tarde. Havia tachos, potes, panelas, caldeirões, cutelos e colheres de cozinha, entre outros utensílios de cerâmica, madeira, ferro e cobre espalhados pelo chão e em poucas mesas. Cozinheiros e outros serviçais – o que incluía servos e mouros, ambos considerados escravos domésticos – iam de um lado para outro, atarefados.

Um deles, uma menina mais nova do que Inês, espetava ramos de alecrim em grossas postas de peixe já temperadas, que seriam passadas na farinha e cozinhariam com azeite na brasa. Trabalhava sob a supervisão de uma cozinheira envelhecida precocemente pelo excesso de trabalho, ocupada em também cortar alhos e cebolas.

Inês entrou, deu uma volta pelo aposento, pegou um punhado de castanhas cozidas, guardou-as no bolso e saiu de fininho. Pensava em encontrar um lugar mais tranquilo para fazer sua refeição quando uma serva, que caminhava à sua frente levando uma tigela de caldo – pelo aroma, de galinha –, escondeu-se numa reentrância na parede. Achando que ninguém a observava, ela tirou um vidrinho que guardava entre os seios, sob o decote do vestido, e lançou ao caldo o conteúdo, uma pitada do que parecia ser farinha. De modo desajeitado, mexeu o caldo com o dedo, endireitou-se e retomou o caminho. Orientada por um mau pressentimento, Inês resolveu segui-la.

A serva usava preso à cabeça um lenço largo, como preferiam muitas mulheres para esconder seus cabelos. Alguns fios ruivos, porém, escapavam da prisão. Ela era alta, jovem e tinha pressa. No pavimento superior, tomou a direção do quarto da infanta Branca, um trajeto que a menina fizera antes de sentir o aroma da sopa e rumar para a cozinha.

A poucos metros do aposento, a serva fez uma reverência a um jovem fidalgo. Chamou-o de D. Diogo ao cumprimentá-lo, o tom de voz trêmulo, e logo depois entregou a tigela a uma das damas da “casa” de Branca, que a aguardava. Deu meia-volta e, ao reparar em Inês, lançou um olhar preocupado para o rapaz e apressou o passo antes de desaparecer de cena.

Diogo, porém, não prestava mais atenção nela. Olhava para Inês. – Estás perdida, senhora? – ele perguntou.

A dama que recebera a tigela acabava de entrar no quarto de Branca. Inês sentiu um calafrio, seu mau pressentimento deduzindo o pior. – É veneno… – murmurou.

O rapaz fechou as sobrancelhas. – O que queres dizer? – Veneno… É o que havia no vidrinho. Eu vi quando a serva jogou o veneno no caldo.

De modo brusco, ele pegou a menina pelo antebraço e se pôs a arrastá-la para longe dali. – Estás enganada… – disse, ameaçador. – Por que não vais brincar com tuas bonecas? – Tenho de avisar D. Branca! – ela gritou, com medo. – Querem envenená-la!

O aperto começava a machucá-la. Como ela resistisse, Diogo prendeu-a pelo pescoço. Levava-a para as sombras, um trecho mais afastado e deserto naquele instante. Demorariam a encontrar o cadáver da criança intrometida. Diriam que ela escorregara, o pescoço se quebrara na queda… – Algum problema, D. Diogo? – perguntou alguém.

Rapidamente o rapaz livrou o pescoço de Inês, apesar de ainda segurá-la pelo antebraço. Fingiu um sorriso inocente. Havia um garoto nas sombras. Era gordinho, estava abatido, vestia roupas comuns e tinha curativos no rosto. Os cabelos castanho-claros eram ondulados e atingiam seus ombros. O olhar escuro mirava Diogo com frieza. – A menina está perdida e… – mentiu o rapaz. – A serva pôs veneno no caldo de D. Branca! – atropelou Inês. Se o garoto não a ajudasse, não teria outra chance de sobrevivência. – Temos de salvá-la!

O garoto puxou-a pela mão, arrancando-a de Diogo, e correu com ela até o quarto. Entraram sem bater, esbaforidos, perturbando

a tranquilidade do local. A dama, que a menina soube depois ser a aia Berengária, folheava um livro de rezas, sentada em um banco. A seus pés, um cachorro vira-lata lambia um pouco do caldo que ela lhe servira em um pote. Já a adolescente que devia ser Branca estava numa cadeira, com a tigela no colo. Levava uma colherada de caldo à boca. – Não bebas! – gritou o garoto.

Branca interrompeu o gesto, olhou para ele e não entendeu o motivo de tanto drama. – Acho, senhora, que o caldo está envenenado – explicou Inês. – Achas? – disse ela. – Significa que não tens certeza? – É que não tive a oportunidade de te contar antes sobre o plano que ouvi – disse o garoto. – D. Juan Manuel mandou assassinar uma infanta. – Eu?! – A-acho que sim. – Também não tens certeza?

Berengária fechou o livro com estrondo. – É muito feio caluniar um nobre tão importante quanto D. Juan Manuel! – ralhou. – Sabes muito bem, senhora, que ele é teu tio e… – E pai da minha prima Constança… – completou Branca. Pensativa, olhou para a porção de caldo na colher que ainda segurava, analisou-a por alguns segundos e devolveu-a à tigela. – Por que ele desejaria minha morte? – Não sei – admitiu o garoto. – A não ser… – O quê? – Que desejem para ti um casamento mais vantajoso. – Mas já sou casado contigo!

Boquiaberta, Inês espiou o garoto maltrapilho ao seu lado. Então aquele era Pedro… Discretamente retirou a mão que ele ainda segurava. – Ah, Constança – Branca limitou-se a dizer.

Ela olhava para o cachorro, que acabava de entrar em convulsão. Berengária apavorou-se e, gritando pelo médico da “casa”, voou para fora do quarto. – Pedro… – disse Branca. Lágrimas escorriam-lhe pela face. O coração do cachorro parou de bater. – Quando entraste, eu já tinha tomado uma colher do caldo…

Branca também entrou em convulsão. Desesperado, Pedro correu até ela para ampará-la. A menina loira de olhos cinzentos, que tirara do poder de Diogo, foi ajudá-lo. A infanta debatia-se, babava. A tigela caiu de seu colo e espatifou-se no tapete, que absorveria o caldo.

O médico chegou naquele minuto. Os gritos de Berengária tinham atraído uma multidão. Outras mãos tentaram acudir Branca, e logo Pedro e a loirinha foram afastados.

A infanta contorceu-se uma última vez e não se mexeu mais. – D. Branca ainda respira – disse o médico ao examiná-la.

Pedro não podia fazer mais nada por ela. Engoliu o desespero e virou-se para a loirinha. – Conta-me tudo – exigiu.

Lobato correu para valer. Despistou guardas, dois fidalgos que também resolveram persegui-lo, uma aia e até um bando de crianças que brincavam no pátio externo. Terminou a odisseia numa das torres, escondido em um buraco.

Permaneceu alguns minutos ali, esperando tudo se acalmar. Quando se sentiu seguro, deixou o esconderijo e, cuidadoso, foi

até a janela para ver a quantas andava o rebuliço causado pela fuga do suposto infante. Esquadrinhou o pátio… A rotina de sempre.

No alto da muralha, metros abaixo de onde estava, a situação também parecia tranquila. Havia apenas um casal de namorados que, aproveitando a semiescuridão trazida pelo final da tarde, beijava-se ardentemente em um canto mais discreto. Pelas roupas, ela talvez fosse uma serva. Ele lhe tirou o lenço da cabeça e pareceu se perder na vasta cabeleira ruiva da jovem antes de despi-la da cintura para cima…

Lobato não conseguia piscar. Não reparou no rapaz, que estava de costas para ele e usava um longo manto escuro. Só tinha olhos para a anatomia feminina, a pele muito branca que se destacava na penumbra…

Seu tutor, Lopo Pacheco, pretendia casá-lo com uma das jovens da “casa” de Beatriz, mas nada, por enquanto, fora acertado. Muito tímido com as mulheres, embora bastante assediado por elas, o garoto ainda não tivera a oportunidade de conhecê-las mais intimamente.

No minuto em que os sinos da catedral, seguidos pelos sinos das demais igrejas e mosteiros, tocaram para anunciar o momento da oração do Ângelus, marcando o pôr do sol e, como consequência, o fim do dia, Lobato fez o sinal da cruz e começou a rezar. No alto da muralha, o rapaz quebrava o pescoço da jovem e arremessava-a para o lado de fora da cidade, direto para a ribanceira que levaria o cadáver até escondê-lo em um matagal.

Horrorizado, o garoto interrompeu a “Ave-Maria” e acompanhou com os olhos a fuga do rapaz na direção oposta à torre até ele se perder na escuridão.

Na cozinha, o infante procurou por Brites, a única serva ruiva e jovem que conhecia. Sempre que aparecia por lá, ela lhe dava generosas porções de assados e enchia sua caneca de vinho.

Brites não estava em lugar nenhum e ninguém sabia dela. – Ela deve ter fugido – opinou a menina loira.

Pedro mordeu os lábios, inquieto, o raciocínio tirando conclusões, a memória oferecendo uma nova interpretação para o que vira e ouvira na floresta, sua luta contra o homem que trouxera a caixinha de madeira…

O que Diogo pretendia ao ameaçar uma menina indefesa? Matá-la por que ela vira demais? Ou talvez a pergunta devesse ser outra: não era coincidência demais o filho de Lopo Pacheco estar na trilha, avistar o cavalo que Pedro escondera tão bem na vegetação e aparecer para salvá-lo justo quando o garoto mais precisava de ajuda? Aliás, por que o salvara? Para evitar uma crise sucessória em Portugal? Ou apenas para manter vivo o noivo de um casamento mais vantajoso?

Pedro tinha as respostas. Diogo era o segundo homem, aquele que recebera a caixa. Por isso estava tão perto para ver o infante em perigo, voltar rapidamente para salvá-lo e, de quebra, se livrar do único que poderia denunciá-lo: o representante de Juan Manuel.

Quanto à caixa… O que havia dentro dela?

“O vidrinho com o veneno”, concluiu o garoto, sombrio. Já a serva Brites, considerada uma pessoa de confiança pela família real, executara o plano ao envenenar o caldo destinado a Branca.

Fatos terríveis que Pedro só poderia provar se encontrasse a serva. – Vamos continuar procurando – disse para a menina.

Já tinham subido para o pavimento superior quando os sinos chamando para o Ângelus se puseram a replicar. Ambos benzeram-se e rezaram.

Com muita dificuldade, Pedro conteve o choro. Pedia a Deus pela vida de Branca.

Novamente no térreo, eles iam para o pátio, porém um garoto, que se refugiara atrás de uma tapeçaria, pôs a cabeça para fora e chamou-os para se juntarem a ele no esconderijo. Devia ter a idade de Pedro, vestia um camisolão por cima das roupas e, como Inês reparou, usava falsos curativos que não enganavam ninguém. – Vi algo que… – ele tentou contar.

Tremia, muito pálido. – D. Estêvão… – disse o infante. – D. Diogo envenenou D. Branca a mando de D. Juan Manuel. – Quê?!

Pedro contou tudo, em detalhes, gaguejando quando ficava mais nervoso. O amigo ouviu-o em silêncio. – Uma serva ruiva? – ele quis confirmar. – Brites… Lembra-te dela, não? – Sei quem é. Mas não a reconheci. Ela estava muito longe. – Tu a viste?

Lobato abraçou os cotovelos. Parara de tremer. Só então pareceu notar a presença de Inês. – Senhor, quem é essa? – perguntou. – A loirinha que viu demais. – Ela não tem nome?

Pedro abriu a boca. Fechou-a, pois não tinha o que informar. – Sou D. Inês de Castro – apresentou-se a menina. – Filha de criação de D. Teresa de Albuquerque.

Lobato meneou a cabeça. – Isso fica cada vez pior – lamentou. – Agora temos os Castro e a família de Afonso Sanches envolvidos nessa história. – Se D. Diogo a encontrar, ele a mata – preocupou-se Pedro.

Inês encolheu-se. Não tinha pensado na possibilidade de Diogo insistir em calá-la para sempre.

– Tu viste a Brites? – retomou o infante. O amigo assentiu. – Diz logo onde ela está! – Senhor… – Se ela contar a verdade a meu pai, nós poderemos provar que… – Alguém quebrou o pescoço dela e jogou-a da muralha, para fora da cidade.

A menina sufocou um gemido de terror. – Como podes saber? – questionou Pedro. – Eu estava na torre e vi quando aconteceu.

O infante cobriu o rosto com as mãos. – Não podes provar nada – continuou Lobato. – E depois…

Hesitava em revelar a extensão da verdade. Pedro retirou as mãos para fitá-lo. Uma expressão dura marcava-lhe os traços. – Achas que meu pai está envolvido nisso – disse. – Talvez não. De qualquer forma, ele não fará nada contra um filho dos Pacheco ou ao próprio D. Juan Manuel. Uma infanta morta é mais uma fora do caminho para o casamento com outra que trará novas alianças e mais fortunas. Quantas histórias nós já não ouvimos sobre maridos que, enquanto enterravam as falecidas esposas, já planejavam uma nova união? – Pareces D. Branca falando. – E estou errado, senhor? – É o que somos, não? Simples peões nesse jogo imundo…

Pedro permaneceu quieto por alguns minutos. Quando falou, olhava para Inês. – D. Estêvão, nós precisamos protegê-la.

O desaparecimento de uma serva não despertou a atenção da nobreza, mais interessada em saber se Branca sobreviveria ao mal súbito que a vitimara. Se Berengária acreditou em Pedro, preferiu

não dizer. Calou-se como Inês e Lobato. Testemunhas de assassinatos e envenenamentos podiam perder a vida em acidentes banais, provocados por quem desejava silenciá-los.

O cadáver de Brites demoraria anos até ser encontrado e não faria mais nenhuma diferença. Ao que tudo indicava, seu assassino era Diogo. Após descobrir que Inês a vira envenenar o caldo, ele correra para eliminar qualquer prova que o ligasse àquela conspiração. Levara a serva para a muralha, possivelmente já eram amantes. Ela confiara nele e morrera por isso.

Quanto a Pedro, naquele momento restavam-lhe duas prioridades. Uma delas era cuidar para que Inês deixasse Portugal sã e salva. O primeiro passo foi aconselhá-la a não sair de perto de Teresa e apenas comer o que fosse servido a ela e à sua comitiva. O segundo foi colocá-la sob a vigilância discreta de homens de confiança, que a seguiram à distância na viagem de regresso a Albuquerque. Lá a menina estava segura. Para garantir que Diogo ou qualquer outro Pacheco não a alcançasse, ela deveria contar tudo ao irmão de criação e primo de Pedro, o poderoso Juan Alfonso. Ele tomaria suas providências para protegê-la.

A outra prioridade era Branca. Pedro não saiu de perto dela, acompanhando a evolução de seu quadro. O veneno, por ter sido ingerido numa quantidade mínima, não a matara, mas lhe provocara um derrame. Como consequência, o lado esquerdo de seu corpo ficara paralisado. Por sorte, a fala e o raciocínio não foram afetados. – Vais melhorar – dizia-lhe o infante.

Diariamente, ajudava Berengária a exercitar a perna e o braço esquerdos de Branca, que ainda recebiam óleos e pomadas para incentivar sua movimentação. Com a ponta dos dedos, ele massageava o rosto da jovem, estimulando-lhe os músculos. Ela voltaria a sorrir, tinha certeza.

Pedro não comemorou sua maioridade, ocasião em que obteve o controle de seu dinheiro e suas terras, nem tampouco a “casa”

que passou a ter sob a sua responsabilidade. Afonso indicou Lopo Pacheco para atuar como mordomo-mor, ou seja, como o primeiro oficial responsável pela administração da nova “casa”. Pedro pensou em recusar, porém mudou de ideia. Duvidava que o tutor, o homem decente e honesto por quem nutria grande admiração, concordasse com as ações traiçoeiras de Diogo. Já esse rapaz recebeu do rei um novo título e mais propriedades, em agradecimento a serviços prestados à coroa, um deles por ter livrado o infante da morte. Afonso não disse qual era o outro serviço, mas também não precisava. O filho sabia muito bem o que o jovem ambicioso fizera para agilizar os novos negócios do reino.

Ao final daquele ano, Pedro confirmou o óbvio. Desde março, antes mesmo da caçada em que descobrira a conspiração de Juan Manuel, o abandono de Branca como esposa e o novo casamento com Constança já apareciam nas correspondências diplomáticas entre Portugal, Castela e Aragão.

Na mesma época, houve apenas uma notícia que o alegrou. Além de mover timidamente a ponta afetada da boca num sorriso torto, Branca conseguiu se sentar sozinha. Em breve, com muita dedicação e o auxílio de uma bengala, voltaria a andar.

Em 1335, as relações entre o rei castelhano Alfonso XI e a esposa Maria pioraram ainda mais. Com a política de conceder privilégios aos seus bastardos e à família da amante Guzmán, ele desagradava aos nobres castelhanos. Perdia aliados importantes, que se uniam contra ele.

Preocupado com a filha e a perda da influência em Castela, o rei português Afonso IV tornou oficial o repúdio a Branca ao enviar representantes ao reino vizinho e a Aragão para comunicar o fato a seus respectivos soberanos. A princípio, o rei aragonês não aceitou o repúdio; após enviar seus médicos a Coimbra para examinarem Branca, foi obrigado a concordar com Afonso. Diante dos médicos, a jovem assumira uma expressão vazia e idiota para que

duvidassem de sua sanidade. Afastar-se das conspirações matrimoniais era a única opção que lhe restara para se manter viva.

Pedro, arrasado, teve de aceitar o repúdio. A menina que ele amava desde os dez anos seria devolvida e outra viria ocupar seu lugar.

No começo do ano seguinte, Branca e os membros de sua “casa” foram enviados a um mosteiro nos arredores de Coimbra. Ficaram sob a vigilância do bispo de Silves, um homem intransigente que, obedecendo a ordens expressas do rei português, não permitiu que Pedro se aproximasse da infanta. Quanto mais cedo o garoto se separasse dela, Afonso acreditava, mais rápido a esqueceria.

Pedro tentou de tudo: entrar disfarçado no mosteiro, invadi-lo, subornar os religiosos, enviar secretamente cartas e recados a Branca. Nada deu certo.

Nesse meio-tempo, a tensão entre Afonso IV e o genro Alfonso XI foi se tornando insuportável. Ainda em 1336, estourou a guerra entre Portugal e Castela, o mesmo ano que Isabel, vítima de um tumor no braço, não resistiu e morreu. Foi um novo golpe para Pedro. Ele ainda teve de suportar a cerimônia de seu matrimônio por procuração com Constança, em Évora. Como a noiva ainda não saíra de Castela, foi representada por um nobre.

Somente em meados de 1341, Branca pôde seguir para território castelhano. Sua partida foi envolta em tanto mistério que Pedro só descobriu quando era tarde demais para tentar qualquer despedida.

Apenas jurou que iria encontrá-la, nem que para isso tivesse de virar o mundo do avesso.

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