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Capítulo 3

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Capítulo 2

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3

Castela, 1356

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Ele viera, como fazia pelo menos uma vez por ano desde que a descobrira vivendo no Mosteiro das Huelgas, em Burgos. Mandava-lhe em segredo um bilhete por pessoas de confiança e então a esperava em um ponto remoto não muito longe dali. Tanto um quanto outro tomavam todas as precauções para garantir o completo sigilo daqueles encontros. Era ele quem mais enfrentava riscos. Se algum inimigo o descobrisse em território castelhano, seria uma presa fácil. Na mais otimista das hipóteses, poderiam capturá-lo e pedir resgate, uma prática bastante comum.

No ano anterior, ele assinara um tratado de paz após levar o caos ao norte de Portugal. Chegara inclusive a cercar a cidade do Porto. Ficara fora de si, enlouquecido. Um período sangrento, de desvario.

Como uma pessoa que valorizava tanto a vida pudera agir daquele jeito? Claro que ele não era mais o menino que ela conhecera. Estava com 36 anos, homem feito e destemido, mas, mesmo assim…

Branca suspirou. Exatamente como previu a bruxa havia mais de vinte anos, tinham arrancado o coração de Pedro. Não literalmente,

é verdade. Ele continuava vivo, atrás da vingança que jamais lhe traria paz.

Após ajeitar seu hábito de monja, Branca estreitou os olhos para a paisagem à sua frente. Nenhum sinal de civilização, a não ser pela simplória casa térrea metros adiante, quase oculta por um punhado de árvores, visível apenas para os viajantes que, como a monja e sua pequena escolta, saíam da trilha pela floresta.

Do lado de fora da construção, dois cavalos pastavam. Lobato abriu um sorriso e veio recebê-la. – Como vais, meu querido amigo? – ela cumprimentou. – E tua esposa e filha? – Estão bem, minha senhora.

Ele a ajudou a descer do cavalo e a buscar firmeza na bengala, sua companheira pelo resto da vida. Deu-lhe o braço e, sempre gentil, conduziu-a em direção à casa. – E D. Pedro? Está se recuperando? – Muito devagar, senhora. – Diz-me, D. Estêvão, como ele pôde provocar tanta destruição?

Lobato mordeu o lábio inferior. Lançou um olhar rápido para os membros da escolta que ficaram para trás e desmontavam. Cada qual ia cuidar de sua montaria. – Eu o entendo, senhora – disse o criado. – Obrigaram-me a ser o garoto de recados e…

Ele não conseguiu completar a frase. Não precisava. Branca já entendera. – Foste tu que lhe deste a notícia? – perguntou. – Foi.

Ela apertou de leve seu braço, dando-lhe apoio. Lobato empalidecera, os pensamentos tomados pelas lembranças dolorosas. – Não foi apenas ele… – disse. – Todos enlouqueceram. De dor, de ódio, de revolta. Não pensavam, só agiam. Precisavam extravasar toda aquela loucura.

– E agora? O que restou?

O criado mirou-a com seus olhos verdes. Mínimas rugas ao redor deles amadureciam a beleza daquele homem que, como Pedro, sempre poderia ter quantas mulheres desejasse. – Restou somente o vazio, senhora. Mas a vida tem de continuar, não? – Sim, ela continua.

Chegavam à porta, que estava entreaberta. Ele se afastou, pois permaneceria do lado de fora. – Ajuda-o, senhora – sussurrou-lhe para que Pedro não o ouvisse.

Branca entrou no local. Como Lobato, o infante também usava roupas de camponês, apesar de sua aparência desleixada e um tanto sombria deixá-lo mais parecido com um dos salteadores tão habituais em solo ibérico.

Ele estava sentado em um banco, distraído, e não se levantou ao vê-la. – Engordaste – observou. – E desde quando se diz isso a uma mulher? – ela protestou, brincalhona.

Pedro sorriu. Deixou o banco, estendeu-lhe as mãos e foi até ela. Abraçou-a carinhosamente. – Senti tua falta, Branca. – Também senti a tua.

Ele lhe beijou a testa e a levou para se sentar na única cadeira disponível. A casa limitava-se a um aposento de terra batida, sem nenhum outro móvel. Havia apenas uma janela, por onde o sol entrava para espantar a penumbra.

Branca tomara o hábito de monja em 1343, dois anos após deixar Portugal e esperar uma longa negociação entre Portugal, Castela e Aragão envolvendo seu destino e a posse de suas propriedades que o rei castelhano já tinha distribuído aos filhos bastardos. No

final das contas, ele lhe dera o direito a uma renda periódica. Do lado de Portugal, a devolução de parte do dote pela não realização do casamento, cláusula prevista em contrato, jamais ocorreria.

Pedro encontrara Branca meses mais tarde. Aparecera com Lobato no mosteiro, ambos fingindo-se de galegos e disfarçados de frades.

Em março de 1346, o infante viera correndo ao descobrir que ela estava gravemente doente. Trouxera com ele um médico judeu, que também tivera de se disfarçar de frade.

Após uma dura batalha contra a doença, a monja recuperara-se. Pedro partira e, um ano depois, providenciara a casa na floresta. Também passara a ajudá-la com seu sustento ao descobrir que nem sempre ela recebia a renda que lhe fora prometida.

Apesar de tudo o que lhe acontecera, Branca estava feliz com sua vida no mosteiro. Deixara havia muito de integrar o circuito matrimonial e não tivera de conviver com o maior medo de esposas e amantes: uma gestação malsucedida e, na maioria das vezes, mortal para a mãe e o bebê. Jamais conheceria a intimidade do leito nupcial, mas a experiência não lhe fazia falta. Não se sentia menos mulher por esse motivo.

A monja espiou Pedro, que estalava os dedos das mãos como se desejasse ganhar tempo. Ela teria de tomar a iniciativa. – Conta-me o que houve – pediu, compreensiva.

O infante demorou a escolher as primeiras palavras, gaguejou muito e, então, o desabafo e o desespero vieram torrenciais. Quando o choro o subjugou, Branca foi até ele e aninhou-o junto a si. Para Pedro, ela era a única em quem confiava para se permitir ficar tão vulnerável. Fora seu primeiro amor. Para Branca, ele sempre seria o primeiro e único homem que amaria.

Em algum momento, Pedro recuperou o autocontrole. Ela retornou para a cadeira e ele, grato pelo carinho, esperou seu veredicto. Branca, porém, não pretendia julgar seus atos. Precisava, com a máxima urgência, dar-lhe um rumo.

– Deves transformá-la numa rainha – sugeriu.

Pedro endireitou-se no banco. O raciocínio juntou possibilidades, mostrou-lhe escolhas. Seus olhos brilharam. – Sim, ela receberá as honras de uma rainha – disse. – Há algo que quero que vejas.

Do bolso do hábito, a monja tirou uma pequena obra de arte, um cenário esculpido em madeira que retratava um menino Jesus recém-nascido na manjedoura, ladeado pela mãe e pelo marido dela. As figuras humanas eram bem-feitas e traduziam o talento do escultor. Pedro examinou a peça com gosto e admiração. – Um artista como esse poderia fazer o túmulo – indicou Branca. – Ou então os desenhos. – Quem fez esta peça? – A moura.

Incrédulo, o infante arregalou os olhos, fazendo uma curiosa associação de ideias. Pensava em Zaynab. Branca não pôde deixar de rir. – Não me refiro à princesa nasrida – esclareceu.

Ele fez uma careta. – Sou assim tão transparente para ti? – resmungou. – Lês até meus pensamentos! – Só os mais importantes. – Quem é essa moura? – Ela não é moura, mas é tão morena que se parece com uma.

Possivelmente tinha sangue muçulmano misturado ao cristão, herança de algum antepassado, como ocorria com boa parte da população da Península Ibérica. Efeitos de uma época em que os dois grupos conviviam em paz no mesmo espaço, antes da retomada cristã que gerava tanto ódio entre eles. – Quem esculpiu esta peça foi a jovem que me enviaste no ano passado – Branca explicou. – Ela nunca quis dizer seu nome, por isso eu a chamo de moura.

– Ela ainda me odeia? – Muito. É uma pessoa atrevida, de temperamento difícil, e muito mal-educada. Mas também é uma artista capaz de produzir obras belíssimas. – Tu a trouxeste, como pedi? – Ela está lá fora, com a comitiva. Pedro, estás me devendo essa história. Quem é a jovem?

Ele cruzou os braços. Uma expressão resignada tomou-lhe a face. – Acho que… Ela é o anjo vingador que a bruxa viu em sua previsão.

À noite, as mulheres dormiram na casa e os homens do lado de fora, ao redor de uma fogueira. Na comitiva, havia ainda uma monja que auxiliava Branca em sua restrita mobilidade, pois a senhora recuperara o controle sobre parte do lado esquerdo do corpo, afetado pela paralisia, mas não o suficiente para se virar sozinha. O sorriso que Pedro tanto amava permanecera torto, porém jamais perderia a doçura.

Pela manhã, o infante entrou na casa para conversar com a garota que tentara matá-lo meses antes. Ela estava sentada no chão, comendo uma fruta. Largou-a e levantou-se com agilidade ao vê-lo.

Estava pronta para enfrentá-lo. Os olhos faiscavam de ódio, os ombros tensos, as narinas abertas e o peito subindo e descendo numa respiração acelerada. Uma fera pronta para o bote. A ajudante de Branca fez um sinal da cruz e retirou-se. – Queres que eu saia também? – a senhora perguntou para Pedro.

Ele meneou a cabeça. Preferia tê-la por perto para não perder o bom senso.

– Qual é teu nome? – perguntou para a jovem arisca.

Ela se empertigou ainda mais. – Peres era o nome do meu marido – grunhiu. – Muito bem, Peres. Quero contratar teus serviços.

Entregou-lhe algumas moedas. Após fitá-las com repulsa, ela as jogou no chão. – É assim que esperas que eu poupe tua vida? Comprando-me? Pois não estou à venda! – Não desejo te comprar, e sim… contratar teu talento como escultora. A senhora me contou que… também desenhas muito bem.

Peres não acreditou na explicação. – Para que queres meu talento? – Para esculpir um túmulo. – Não trabalho com pedra. Só madeira. – Podes fazer os desenhos que outros esculpiriam na pedra.

Arrogante, a jovem dirigiu-lhe um sorriso de desprezo. Continuava se vestindo como homem, os cabelos negros metidos em um chapéu. Era alta, atraente, mistura de beleza e perigo. – Não podes pagar meu preço – ela esnobou. – Sou tua prisioneira? – Não. – Escrava, então? – Nem uma nem outra.

Peres mostrou-se surpresa. – Sou livre para partir? – quis confirmar. – Podes ir agora, se desejares. – Quero levar o cavalo que usei na viagem até aqui.

Pedro fitou Branca, que assentiu. A jovem ultrapassou-o para ganhar a porta e, enfim, a liberdade. Ele respirou fundo, aliviado por não gaguejar na frente dela. Não quisera lhe dar esse gostinho. – Eu me enganei – disse para Branca. – Ela não é o anjo vingador.

Branca e sua comitiva partiram antes de Pedro e Lobato. Aproveitariam a luz do dia para vencer o maior trecho do percurso até Burgos.

Minutos antes de retomar a trilha, Branca sentiu um aperto no coração e, na sela, virou-se para trás. Parado na porta, Pedro acenou-lhe, sorrindo.

Entristecida, ela teve a certeza de que nunca mais o veria.

Os dois homens dirigiram-se para a Galícia, onde Pedro pretendia se reunir com o fidalgo Fernando de Castro, meio-irmão de Inês. Agora que assumira o poder de aplicar a justiça em Portugal, uma das funções reais que lhe foram garantidas pelo acordo de paz, o infante passara a governar o reino junto com o pai. Tinha muitas responsabilidades e ações para colocar em prática.

A terceira noite da jornada foi mais uma entre tantas noites insones, intercaladas por raros cochilos. Quando conseguia engatar um sono profundo, vinham os pesadelos e ele novamente despertava. Dormia cada vez menos.

Lobato ressonava a alguma distância, mais perto da fogueira que os aquecia na floresta. Era uma bênção dormir tão bem. Sempre se revezavam na vigilância, mas ultimamente era o infante quem permanecia mais tempo acordado, atento aos sons noturnos.

Como imaginava, ela apareceu, sorrateira, acreditando que iria surpreendê-lo. Apertava uma faca entre os dedos.

No instante em que a sentiu ao seu lado, Pedro ergueu os olhos para contemplá-la. Não se enganara, afinal.

Peres era mesmo o anjo vingador.

Ele não se moveu, paciente. Não tinha mais medo da morte. Se ela o atingisse naquele minuto, finalmente poderia descansar.

A mão da jovem tremia. Seria muito fácil desarmá-la. – Cumpre tua ameaça – Pedro encorajou-a.

Sua voz despertou Lobato, que se ergueu num salto, apanhando a espada que repousava junto de si, e avançou para ameaçá-la. – Se tentares matá-lo, eu acabo contigo – prometeu.

Peres não se intimidou. Olhava nos olhos de Pedro, lendo seus tormentos, o vazio que lhe ocupava a alma e, principalmente, a culpa que esmagaria seus ombros até o fim. – Não vou abreviar teu sofrimento – decidiu. – Aceito fazer os desenhos para ti desde que eu possa te ver morrendo aos poucos, sufocado por tua própria consciência. Este é o meu preço.

Ela entregou a faca a Lobato e foi arrumar um canto para dormir. Pegou no sono quase instantaneamente.

Lobato abriu a boca, ia dizer alguma coisa, mudou de ideia, rangeu os dentes com alguma crítica que preferiu não dizer e também foi se deitar.

Pedro permaneceu acordado, outra vez prestando atenção aos sons da noite, o olhar sem vida fitando as chamas que dançavam na fogueira.

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