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Epílogo

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Capítulo 6

Capítulo 6

granada, 1368

Aquela vista sempre tiraria o fôlego de Peres. De sua janela no castelo vermelho, Alhambra, ela mais uma vez observou o bairro de Albaicín, com suas inúmeras casinhas brancas e, ao fundo, a Sierra Nevada.

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Alhambra era praticamente uma cidade dentro de outra cidade, cercada por um bosque e uma muralha da mesma cor de suas paredes externas, vermelha graças aos tijolos feitos com a terra daquela região. Ficava no alto de uma colina, um complexo arquitetônico que reunia as alas de seu estonteante palácio real, além de mesquitas, oficinas e escolas, entre outros setores indispensáveis para o funcionamento daquela última civilização árabe em solo ibérico.

Desde que tinham fugido de Alcobaça a Lisboa e de lá, sob a proteção dos hospitalários, enfrentado uma viagem por mar até o reino de Granada, Peres e Lobato viviam como hóspedes de Zaynab. Pereira, que os levara pessoalmente, contara à princesa que Lobato era o melhor amigo de Pedro e também participara, 28 anos antes, do grupo de resgate em Salado.

Ao reconhecer, emocionada, o caderno de desenhos de sua infância, ela jurara proteger o casal contra qualquer perigo. Uma proteção ironicamente desnecessária, pois Diogo jamais

desconfiaria da ligação de Pedro com os nasridas e, menos ainda, que Lobato e seu anjo vingador estariam escondidos em um reino que não fosse cristão, ainda mais no meio dos inimigos árabes.

Para Peres, viver entre eles era ter acesso a uma cultura extremamente refinada e ao que havia de mais avançado no campo do conhecimento humano e científico. Por contar com a proteção da princesa, tanto ela quanto Lobato podiam circular à vontade e, enquanto aprendiam o idioma, também aprendiam tudo o que podiam sobre arte islâmica. Vestiam-se como árabes, adotaram seus hábitos e sua alimentação. Muito feminina em suas novas roupas, Peres cobria a cabeça com um véu, como as mulheres daquele povo.

Seu bebê completava um ano naquele final de primavera, uma menina saudável e risonha que já descobrira como andar e mal parava quieta, bagunçando a ala reservada à pequena família no palácio. Ela recebera o nome de Catarina, o mesmo da filha que Peres tivera e também da caçula de Lobato que morrera na infância.

Para a mãe, era como se a menina tivesse voltado para ela. Já o pai, que a adorava, nunca a chamava de filha, o que era muito estranho.

Peres encontrou-os no terraço: o bebê, entre rosas, lírios e arbustos, esfarelando a terra fofa, e Lobato sentado junto dele, brincando de modelar bolinhas, quadrados e triângulos com o mesmo material. Como praticamente todas as áreas em Alhambra, o local era fresco e bastante arejado, poupando-os do calor daquela época do ano.

Mais adiante, uma fonte e seu espelho d’água refletiam o ambiente, assim como outras fontes e piscinas espalhadas pelo complexo refletiam colunas e portais esculpidos, mosaicos, padrões geométricos e azulejos pintados à mão. Exuberante e

sofisticado, simples e luxuoso ao mesmo tempo, um mundo que nem mesmo os sonhos mais ousados de Peres imaginaram existir.

Ela se acomodou numa cadeira e, à toa, não sentiu a hora passar. Possivelmente cochilou, pois só se deu por si quando descobriu Lobato de joelhos, reunindo os brinquedos espalhados pelo chão, as mãos já limpas da terra. Catarina dormia no berço, no quarto dela.

Ao vê-lo, Peres sorriu. Ele vivia arrumando o material de desenho que ela largava em qualquer lugar, não dormia antes de checar três vezes toda a segurança ao redor de mãe e filha, cuidava dos pertences delas com tanto zelo e sempre do mesmo modo que beirava a irritação. Sempre meticuloso, impecável. Perfeito. Velhas manias eram mesmo difíceis de abandonar.

Peres espreguiçou-se antes de sair da cadeira. Foi até ele, o que o obrigou a se levantar. De propósito, posicionou-se muito perto do homem que, desde a comemoração em Alcobaça, nunca mais se aproximara tanto dela, possivelmente por respeitar sua gravidez e, após o parto, para evitar que engravidasse de novo e perdesse o leite com que amamentava Catarina. Alguns beijos e um pouco de carinho, no entanto, teriam sido muito bem-vindos…

Havia algo mais naquela atitude que o impedia de torná-la novamente sua mulher, embora todos achassem, inclusive Zaynab, que os dois eram casados.

Lobato quis recuar, ela o prendeu pelos antebraços. Ia descobrir o que ele estava escondendo. – Catarina é alta para a idade, não achas? – ele tentou distraí-la. – Puxou ao pai. – É, D. Pedro era quase tão alto quanto eu. E tu também és bem alta.

Peres arregalou os olhos. Como aquele idiota podia achar que Catarina não era filha dele? Por quem a tomava? Não sabes mais fazer contas?, quase perguntou, mas Lobato a arrebatou para um

beijo inesperado, tocando-lhe os lábios com paixão. Parecia arriscar tudo.

Só que Peres estava brava demais com ele para se entregar. Empurrou-o, lutando contra a vontade de esmurrá-lo. – Tu ainda o amas – concluiu Lobato. – Sim! – ela berrou, fora de si. – Porque és um tonto que não enxerga um palmo à frente do nariz! – Não posso mesmo me comparar a ele. D. Pedro era impulsivo, aventureiro, generoso. E eu… Sei das minhas limitações. Se não fosse por ele, eu jamais teria viajado, jamais experimentaria uma vida diferente apenas para não abandonar a segurança das minhas escolhas. Talvez aqui não seja o meu lugar e… – E por que não vais embora? O que te impede?

Ela falara sem pensar, desejando magoá-lo. Não funcionou como esperava.

Lobato tomou uma direção qualquer. Deixou-a sozinha, ainda enfurecida, chutando a cadeira e depois descontando nos brinquedos, que arremessou para longe. Apesar da elegância de sua nova vida, Peres continuava a mesma pessoa de modos grosseiros e temperamento difícil.

Subitamente um detalhe interrompeu o surto. Ela lembrou que Lobato era bem capaz de sair andando de Granada e acabar em Roma, apenas para fugir de uma situação que preferisse evitar. E se fosse mesmo embora?

Desesperada, correu atrás dele. Encontrou-o no pátio externo, fora da ala que ocupavam. – O que estás fazendo? – gritou ela, parando junto à porta.

Ele interrompeu o passo. Virou-se em sua direção, mas não saiu do lugar. – Vou dar um passeio – disse, secamente. – Queres algo da rua?

E se nunca mais voltasse? – Vem aqui – ela chamou.

– Fala, estou te ouvindo muito bem daqui.

Peres xingou-o em pensamento. Algumas pessoas andavam pelo local, o que lhes tirava a privacidade. – É a Catarina – mentiu para atraí-lo.

Preocupado, ele cruzou a porta no mesmo instante. Não teve tempo de perguntar sobre a filha. Peres escondeu-o da visão pública, colocando-o atrás de uma parede. Foi a vez de ela tascar-lhe um beijo apaixonado.

Só que Lobato estava confuso demais com a iniciativa para se entregar. Afastou-a sutilmente. – O que mudou? – indagou. – Nada mudou. Eu sempre te amei, Lobato. – Impossível! Estavas destinada a D. Pedro.

Que bobagem era aquela? – Raciocina, homem! Com quem nossa Catarina se parece? – Um pouco contigo. – E muito mais contigo. – Ela… – disse o homem, aturdido. – … é minha filha? – E de quem mais seria? Nós a fizemos em Alcobaça, esqueceste? – Mas tu e D. Pedro dormistes juntos e eu pensei que… – Nós adormecemos juntos. É diferente, Lobato. E Pedro nunca me faltou com o respeito porque sempre soube do teu amor por mim. – E-ele sabia?!

O mundo inteiro sabia, pensou Peres, divertindo-se com o embaraço de Lobato, que se julgava a mais discreta das criaturas. – Então tu sempre me amaste? – ele quis confirmar. – Não exatamente. Demorou bastante, para falar a verdade. – É que sou teu oposto… – Não, és pior. Um sujeito chato, metódico, cheio de manias… – Eu sou assim, Inês. Não consigo evitar.

– Tudo bem, Estêvão. Ninguém é perfeito.

Ele sorriu antes de se entregar ao tão esperado beijo. Foram interrompidos pelo choro furioso e distante de um bebê faminto. Catarina acabava de acordar, exigindo o leite materno.

De mãos dadas, eles retornaram para a vida em comum entre desenhos, esculturas, estudos e sonhos que iriam concretizar.

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