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Capítulo 7

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Capítulo 3

Capítulo 3

7

Portugal, 1357

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– Foi Lobato, então, quem foi atrás de ti na caçada e te contou sobre a execução? – perguntou Peres. A jovem parecia não sentir mais nenhum prazer em ver Pedro naquele estado, tão vulnerável, seus tormentos ganhando palavras para se expressarem.

Ele assentiu.

Sozinho no corredor, Lobato seguia acompanhando a conversa sem que Pedro suspeitasse de sua presença. – E depois? – perguntou Peres. – Não acreditei nele. Corri para casa, precisava ver com meus próprios olhos. Já tinham lavado o sangue no pátio. Fui para a capela e mandei meus homens desenterrarem o corpo…

Ele cerrou os olhos. – Então enlouqueceste. – Eu queria destruir a obra dele. – Do teu pai? – Sim. Eu queria destruir Portugal inteiro. Queria derramar muito sangue, desejava que ele sofresse, que pagasse por ter traído minha confiança, por matar D. Inês…

– E o Telo? Ele tentou te impedir?

Pedro ergueu as pálpebras. Mirou-a com a intensidade do ódio que ainda preenchia seu espírito. – Não. Todos nós enlouquecemos. – Álvaro e Fernando também? – Sim. Eles se uniram a nós com suas tropas. – E vós devastastes o norte de Portugal. – A verdade é que perdi o controle sobre os soldados, sobre meus próprios atos. – Se pretendias destruir o reino inteiro, por que não foste adiante? – Porque apareceste.

A jovem arregalou os olhos, espantada. – Eu?! – Tu me mostraste que eu me vingava das pessoas erradas. Não atingia apenas meu pai, mas também o povo, que não tinha culpa alguma pela morte de D. Inês.

Ainda no corredor, Lobato cruzou os braços, encostando-se na parede. Peres acabava de se dar conta de seu poder sobre as decisões do novo rei. – Enfim conquistaste o respeito do teu pai? – ela quis saber.

Ele estranhou a pergunta. – Eu finalmente o enfrentei – corrigiu. – E tua mãe? – O que tem ela? – Apoiou teu pai? – Não. E ainda tomou sob seus cuidados minhas crianças com D. Inês. Sabes o que é irônico? Dias antes da execução, meu sobrinho Cruel fugiu do cativeiro e reconquistou a simpatia dos adversários, os irmãos Castro entre eles, com presentes e doações de terras. Naquele dia 7 de janeiro, não existia mais nenhum plano para me coroar rei em Castela.

– E teu pai sabia disso? – Descobriu somente depois, como eu, quando os Castro vieram para cá. Foi quando ele teve certeza de que a morte de D. Inês foi totalmente desnecessária. – Achas que ele se arrependeu do erro? – Ele a matou, Peres. Nada muda isso.

A jovem foi se sentar ao seu lado, desarmada de sua agressividade contra ele. Pedro torturava-se continuamente por ter sido tão tolo, por ter levado Inês a Coimbra, pelas atrocidades que cometera em sua loucura contra o povo que tanto amava. Culpa que carregaria até o túmulo. Não precisava de nenhum anjo vingador para lembrá-lo disso, o que automaticamente livrava Peres de sua única função. – Sentes a morte de Afonso? – ela perguntou. – Claro, ele foi meu pai. Mas fico aliviado de não tê-lo mais por perto para estragar minha vida.

Sem perceber, Peres apoiou a mão sobre o pulso dele. Aquela conversa revelara à jovem que ela também se vingava da pessoa errada. Assim como Pedro, corrigia sua rota, unindo-se a ele para cumprir o mesmo objetivo em comum. – E agora, rei, o que vai ser? – intimou.

Um calafrio dominou Lobato. Soubera horas antes que Diogo Pacheco e os dois aliados, Coelho e Gonçalves, tinham fugido para Castela, aconselhados por Afonso em seu leito de morte.

Pedro sorriu, a crueldade guiando seu passo seguinte. – Mais uma caçada, Peres – respondeu. – A vingança ainda não terminou.

Preso a seus compromissos como rei, Pedro nunca mais deixaria Portugal. No rastro dos assassinos de Inês, colocou Álvaro.

Qualquer transação política que fosse necessária para capturá-los ficou a cargo de Telo, que receberia em breve o título de conde de Barcelos e se tornaria o terceiro homem mais poderoso do reino, abaixo apenas do soberano e de seu herdeiro.

Já Branca achou um modo de continuar exercendo seu papel de conselheira. Passou a enviar cartas secretas e periódicas a Pedro, a que ele sempre respondia, pedindo-lhe para ter cautela, reinar com justiça e sem os arroubos de maldade tão comuns aos governantes e a seus nobres sedentos de poder.

Quanto a Lobato, restaram mais responsabilidades e trabalho como o homem que agora cuidava da administração da vida de um rei, ainda mais um que não parava muito tempo no mesmo lugar e enfrentava um novo surto de peste negra no reino, a fome crescente da população miserável e um sem-número de outras crises.

Os problemas pessoais também afetaram o criado. Uma doença nos rins matou sua esposa. A filha, que se casara com um nobre da desfeita “casa” de Afonso, fora repudiada por não gerar herdeiros. Graças à influência da rainha Beatriz, tomou o hábito no Mosteiro de Santa Clara.

A única motivação de Lobato era acompanhar o trabalho de Peres.

Para o túmulo de Inês, Pedro sugerira cenas da vida de Cristo, mas não pedira nenhum detalhe específico. Peres, então, perdia-se em esboços e rabiscos, sem encontrar a melhor forma de contar a história. Algo escapava de sua sensibilidade como desenhista e isso a afligia profundamente.

Numa tentativa de orientá-la, volta e meia o criado lia para ela passagens do Novo Testamento, pois a jovem era analfabeta.

Peres também acompanhava o rei nas viagens em que tinham incorporado uma nova estratégia: traçar uma linha de defesa interna e externa no território português, em especial na fronteira. Para concretizá-la, Pedro entregava fortalezas em vários pontos do

reino, que conhecia profundamente, a seus nobres de confiança. Criava, desse modo, uma malha de solidariedade necessária para proteger sua gente contra possíveis ameaças vizinhas, caso o Cruel ou qualquer outro resolvesse cobiçar terras alheias.

Como sempre, o rei castelhano aprontava das suas. Dois anos antes, mandara assassinar Martim, o amante da mãe. Ela morrera de desgosto meses mais tarde. Pedro comentara com os mais próximos que temia pela segurança da francesa Blanche de Bourbon. O Cruel apelara a todos os meios legais para anular seu casamento com a moça, que continuava a manter como sua prisioneira. Fracassara em todas as tentativas. Muito em breve daria um jeito de ficar viúvo.

Peres, que não se interessava por política, vivia com a cabeça em outro mundo e nos próprios desenhos. Uns diziam que era amante do rei; outros, de Lobato. Os comentários bem-intencionados achavam que ela não passava de uma serva; outros, maldosos, de uma prostituta. Os mais picantes chegavam a afirmar que Peres, na verdade, era um rapaz e que Pedro gostava tanto de meninas quanto de meninos. Alheia às fofocas a seu respeito, a jovem reforçou ainda mais seu visual masculino ao solicitar que Lobato a ajudasse a cortar os cabelos na altura das orelhas. – Eles me atrapalham – justificou.

Foi um auxílio que ele realmente lamentou lhe prestar. Apreciava tanto aqueles fios longos… E ainda teve de aturar as risadas de Pedro, zombando dele por medir os fios para assegurar um corte perfeito. – Quando as damas descobrirem, não farás outra coisa da vida a não ser podar suas cabeleireiras! – dizia.

Talvez tivesse um pouco de razão. Havia tempos que Lobato adotara algumas manias. Vivia arrumando o material de desenho que Peres largava em qualquer lugar, não dormia antes de checar três vezes toda a segurança ao redor do rei, cuidava dos pertences

dele com tanto zelo e sempre do mesmo modo que beirava a irritação. Sempre meticuloso, impecável. Perfeito.

Para provocar Lobato, todos os dias Peres fazia questão de espalhar o giz que ele guardava na caixa. Exausto, o criado respirava fundo e recomeçava a arrumação. Assim que terminava, ela derrubava de novo. E lá ia ele reunir tudo.

Numa manhã em que Pedro, Telo e Álvaro riam às suas custas graças às intermináveis arrumações na caixa de giz, Lobato arrancou-a das mãos de Peres, que se preparava para bagunçá-la pela vigésima vez, e arremessou-a para longe. Obteve de imediato o silêncio atônito dos três amigos. Depois, zangado, descontou nos esboços que a jovem espalhara pelo chão, rasgando-os um por um.

Estupefata, ela não tentou impedi-lo. – São medíocres! – decretou o criado. – Copias o mesmo estilo dos túmulos de reis, rainhas e tantos nobres nas igrejas que te levei para conhecer nos lugares para onde viajamos. Deves procurar teu próprio caminho, algo único, inusitado, diferente. Tens talento de sobra para isso, mas ainda não reuniste coragem para aceitar de fato o desafio. Desperta, mulher! Não estás desenhando para um túmulo qualquer. Esse precisa encantar as próximas gerações, mostrar em detalhes o grande amor de um rei por sua amada, alguém que deve se manter viva nas cantigas, lendas e histórias por séculos, até o fim do mundo. Não entendeste ainda? Estás desenhando para D. Inês de Castro!

O desabafo evocou lembranças dolorosas. Pedro empalidecera. Os semblantes melancólicos de Álvaro e Telo iam dele ao criado. Lá fora, o sol brilhava em um dia que começara com a reunião entre o rei e seus conselheiros para tratar de assuntos administrativos. Ocupavam o aposento de um dos castelos da região do Algarve hóspedes de um dos nobres daquelas terras ao sul do reino. – Muito bem, Lobato – disse Peres. – Mostra-me algum exemplo de arte que não consideres medíocre.

Ele esboçou um sorriso. Era sua vez de provocá-la. – Pode ser uma arte muito complexa para teu entendimento. – Talvez – ela disse, entre-dentes. Empinara o nariz, endireitando-se na postura feroz que pretendia estraçalhá-lo se tivesse a oportunidade. – Mas quero conhecer essa tal arte.

Ainda zangado demais para demonstrar seus modos polidos, Lobato foi até a porta e saiu, sem esperar por Peres. Sabia que ela o seguiria.

– D. Estêvão não consegue esconder quanto se sente atraído por ela – disse Álvaro assim que o criado e a desenhista abandonaram o aposento. – É mais profundo – definiu Telo. – Ele a ama.

Sorrindo, Pedro recostou-se na cadeira. Lobato, enfim, teria de enfrentar a paixão avassaladora em seu destino.

Havia uma capela em um vilarejo a menos de duas horas de cavalgada. Após chegar, os dois amarraram as rédeas dos animais numa árvore a alguns metros do local e foram andando até lá.

Peres não encontrou nenhuma novidade na arquitetura católica e em seus afrescos. Lobato, zombeteiro, indicou-lhe uma parede em um canto apagado e quase oculto. Próximo ao chão, havia um único pedaço do que sobrara de um mosaico composto por uma elaborada combinação de formas geométricas, semelhantes a plantas. A jovem nunca vira nada igual. – O que é? – perguntou, agachando-se para tocar o mosaico e examiná-lo melhor.

– Arte islâmica. Na época que os muçulmanos dominavam esta região, aqui era uma mesquita.

Peres já ouvira falar de igrejas que tinham passado a ocupar construções religiosas antes pertencentes tanto a mouros quanto a judeus. Lugares que eram modificados para perder as características originais e apagar por completo sua inspiração nem um pouco cristã. – Quando visitei esta capela há uns vinte anos, o mosaico estava completo e ocupava toda a parede – contou Lobato. – O teto era de madeira, decorado com pinhas e conchas. Existiam azulejos aqui e ali… – Pena que foram destruídos. Gostaria muito de vê-los. – Eu os reproduzi em desenhos naquela época. – Desenhas? Eu não sabia. – Fiz outros também, reproduções do interior e do exterior de mesquitas, de arte judaica, de locais que visitei de norte a sul em Portugal e também alguns em Castela. Registrei ainda o que sobrou de algumas ruínas romanas e de povos ainda mais antigos que viveram na Península Ibérica.

Impressionada, a jovem girou o rosto para fitá-lo. O criado enrubesceu. – São desenhos ruins, mas podem te dar uma visão do que já encontrei – ele emendou, sem graça. – Estudas os vários tipos de arte… – Um pouco. Não me sobra muito tempo para isso. – Tu me ensinarias?

Ainda mais embaraçado, ele concordou. Não se sentia à vontade em lhe mostrar desenhos que raramente alguém devia ver. – Este mosaico é lindo – disse Peres, outra vez olhando para o trabalho que seus dedos percorriam com cuidado. – Acho que ele traduz o conceito do infinito, a natureza divina da criação.

A aula já tinha começado? Ela teve de reconhecer que o criado era mais do que um homem bonito de cara amarrada, todo certinho e cheio de manias, que andava para cá e para lá arrumando a bagunça dos outros. – Onde estão esses desenhos? – Em Coimbra. Quando voltarmos, eu os mostrarei para ti.

Aos poucos, Peres foi encontrando o próprio estilo. Prestava atenção nas orientações de Lobato e estudava com afinco suas reproduções, desenhos que de ruins não tinham nada. Ele era talentoso, porém inseguro demais, medroso até. Vivia à sombra de Pedro, de preferência quase invisível, muito quieto e vigiando tudo e todos para entender as motivações das pessoas, suas reações, o que pensavam. Era tão solitário quanto a jovem. Ao contrário dela, escolhera aquela vida para si.

Os desenhos para o túmulo de Inês foram surgindo naturalmente. A partir dos palpites daquele que passou a considerar seu mestre, Peres criou várias cenas a serem esculpidas em alto relevo no calcário por artesãos experientes. Elas ocupariam as quatro faces ao redor do túmulo, cada cena uma diminuta escultura a ser interligada às outras. Numa das laterais, contaria da anunciação à apresentação de Cristo no templo e depois, na outra, da última ceia ao caminho até o calvário. Na cabeceira, para arrematar a vida e a morte de Cristo, decidiu-se por uma grande composição do calvário. Na outra ponta, aos pés, uma imagem do Juízo Final. O túmulo de Inês seria sustentado por seis criaturas disformes representando seus assassinos e difamadores.

Em vez de mostrar os desenhos a Pedro, a jovem preferiu esculpi-los antes em madeira, ansiosa para experimentar o cinzel e as goivas que Lobato comprara para ela. Desse modo, testaria seu

projeto na prática, verificando o que funcionava e corrigindo o que fosse necessário.

Faltava pensar na parte de cima do túmulo. Peres descartou a inspiração fornecida pelas esculturas de mulheres sempre retratadas rezando ou tendo em mãos livros de orações. Imaginou Inês como a jovem comum que brincava com o próprio colar e usava luvas, um acessório que, segundo Pedro, ela adorava. Distraída, colocava uma e se esquecia da outra, que carregava até largá-la sem querer em algum lugar.

Anjos iriam rodeá-la… Dois deles estariam erguendo das almofadas sua cabeça, como se a despertassem para a vida após a morte.

Lobato emocionou-se com a ideia, que Peres correu para pôr no papel. Esperava de Pedro a mesma reação, mas ele não reconheceu Inês em seu desenho. – Não é ela – disse-lhe, secamente. – E falta a coroa. – Mas ela nunca foi rainha. – Ela será coroada. – Depois de morta? – estranhou a garota.

Ele não respondeu. – Desenha D. Inês para ela – disse, falando com Lobato.

E saiu de sua antecâmara no castelo em Estremoz, lugar para onde tinham se dirigido na semana anterior, em plena primavera. Viviam o ano de 1360. A rainha Beatriz morrera meses antes e, no lado de lá da fronteira, o Cruel até que andava bem comportado.

Pedro estava mais inquieto e mal-humorado do que nunca. Telo conseguira fechar um acordo de extradição com o Cruel, uma troca recíproca de prisioneiros. Da parte de Portugal, Pedro enviou um grupo de nobres castelhanos que o sobrinho considerava seus inimigos. Da parte de Castela, o Cruel despachou os mais odiados inimigos do tio.

Os assassinos de Inês.

Álvaro, que fora buscá-los, estava para chegar, porém antecipou a má notícia por um mensageiro. Apenas Coelho e Gonçalves tinham sido entregues. Diogo Pacheco escapara para o reino de Aragão ao ser avisado por um mendigo, a quem sempre dava esmolas, que os soldados do Cruel estavam à sua procura após vê-los rondando a casa do nobre.

Ao saber da novidade, na véspera, Pedro dera murros e chutes enfurecidos na porta da antecâmara, entortando-a. Peres, que nunca o vira fora de controle, mantivera-se cautelosamente à distância. Lobato apenas esperara que ele voltasse ao normal antes de chamar um carpinteiro.

Assim que o rei fechou com estrondo a porta recém-consertada atrás de si, Peres virou-se para Lobato. – Desenharás Inês para mim? – quis confirmar diante da indecisão que lia em seu rosto. – E se eu a descrevesse? – ele tentou. – Não é a mesma coisa.

Ele suspirou, resignado. E a enrolou por três dias, justificando que estava sem tempo.

No quarto dia, Álvaro chegou com os dois assassinos de Inês, que Pedro recebeu na sala principal. Chamada para participar da execução, Peres encontrou Lobato do lado de fora, desenhando freneticamente. – Não vais entrar? – ela lhe perguntou. – D. Pedro impediu-me.

Dois soldados, parados junto à porta, vigiavam-no para que não desobedecesse à ordem. Para a jovem, eles permitiram a passagem.

Instalado numa mesa, Pedro consumia uma refeição suculenta enquanto assistia a um espetáculo macabro. No centro da sala, Coelho e Gonçalves estavam de joelhos, com os pulsos amarrados, e sangravam muito. Recebiam em suas costas golpes de correntes,

aplicados à vontade por dois carrascos. Pela aparência deplorável dos assassinos, houvera antes outros castigos.

Ao vê-la, Pedro indicou-lhe um lugar entre Telo, Álvaro e mais alguns nobres, os demais espectadores. Exceto pelo rei, estavam todos em pé, atrás dele. A jovem firmou-se sobre as duas pernas, os ombros tensos, a respiração entrecortada.

Iria conhecer o gosto da vingança.

Pedro mastigou e engoliu um pedaço de carne antes de, com um gesto, interromper a tortura. Os assassinos imploravam por sua misericórdia. Não a teriam.

Ele se levantou e foi até os dois. – Agora vós sentireis o mesmo… – disse, a gagueira como sempre ameaçando-o nas situações mais formais. – Que eu senti.

Sob seu olhar atento, os carrascos agiram. Arrancaram os corações de Coelho e Gonçalves.

Um pelo peito. Outro, pelas costas.

Os corpos desabaram aos pés do rei, ainda resistindo à morte. Por fim, ficaram imóveis.

Peres pressentiu que ia desfalecer. Álvaro e Telo seguraram-na para que não caísse. Ela lutou para manter a consciência, conseguiu dispensar o apoio. Pedro voltava para a mesa, onde terminaria a refeição em silêncio.

Na sequência, deixou a sala, rumando direto para seu quarto, sem reparar em ninguém. Peres foi atrás dele.

No aposento, encontrou-o de joelhos, vomitando, devastado com o que tivera de conduzir. Tremia. A jovem ajoelhou-se e, abraçando-o pelas costas, apoiou a cabeça no corpo dele.

Todo aquele comportamento de vilão sádico diante dos assassinos e dos demais fidalgos… Apenas encenação, o único tipo de recado que seus inimigos entenderiam. Se tentassem atingir as pessoas que ele amava, agora sabiam o que os esperava.

Pedro, o Justo, o Justiceiro ou com qualquer outro apelido pelo qual ficaria conhecido, transformara-se em um rei a ser temido.

Após alguns minutos, Lobato apareceu e, ao se certificar de que o amigo não tinha mais nada para vomitar, ajudou Peres a deitá-lo na cama. A seguir foi buscar balde, água e panos de chão para limpar a sujeira. Ninguém deveria nem sequer desconfiar que Pedro passara mal com a execução dos assassinos. A imagem que ele moldava para si não podia ser arranhada.

Após auxiliar Lobato com a tarefa, a jovem voltou para perto do rei. O criado analisou-a de esguelha e, taciturno, tirou do bolso uma folha dobrada. Era o desenho que terminara e que Peres conferiu com admiração. – Esta é D. Inês – disse ele.

Pedro, que os observava, avaliou a imagem. Lágrimas encheram-lhe os olhos. – Sim, é ela – endossou. – Igual à última vez em que a vi.

O criado não fez nenhum comentário. Juntou o material de limpeza e foi embora. Peres nem percebeu seus movimentos. Sorria com ternura para a bela Inês, seu rosto redondo e os quilos a mais que ela ganhara após quatro gestações e por dividir com Pedro a mesma paixão por pratos irresistíveis. Quantas vezes ela cozinhara para ele ou simplesmente convocara-o como ajudante para cortar cebolas e mexer panelas? Peres imaginou-os entre os aromas diversos de uma cozinha, alegres, ele beliscando alguma refeição durante seu preparo, ela puxando-o para um beijo. – Vai atrás de D. Estêvão – pediu-lhe o rei, a voz cansada.

Peres fez uma careta. – Ele sabe se virar sozinho – retrucou. – Não, ele não sabe. E está pior do que eu, pois só aprendeu a guardar o que sente. – Ora, rei, ele nem assistiu a essa encenação sangrenta e…

– Eu o poupei para que não sofresse ainda mais. Esqueceste que ele testemunhou a morte de D. Inês?

A jovem fitou-o. Sim, esquecera. – Eu não vi, mas ele… viu tudo – prosseguiu Pedro. – E ainda carrega uma culpa maior do que a minha. – Ele acha que Inês estaria viva se não tivesse falsificado tuas cartas… – ela deduziu. – Nem me obrigado a fazer uma escolha. – Se não fosse por ele, tu e ela não teríeis vivido juntos. Teus filhos mais novos não existiriam. Talvez ela ainda morasse em Albuquerque e… – E eu estaria casado com uma nobre aragonesa. – Tu te arrependes de ter tomado Inês como tua companheira? – Não. Foi a época mais feliz da minha vida. – Achas que… se ela soubesse o que lhe aconteceria, teria desistido de ti? – Ela enfrentaria o destino de cabeça erguida – disse Pedro. E sorriu. – Já disseste isso a Lobato? – E adiantaria?

Tinha razão. Aquele cabeça-dura era teimoso demais para aceitar qualquer teoria que não fosse a que cismasse ser a correta. – Ajuda D. Estêvão a enxergar o único culpado, a mente perversa que agiu nos bastidores para destruir D. Inês – disse o rei. – Teu pai? – Nem ele e muito menos os dois infelizes que ainda devem estar lá na minha sala. – Tu falas de… – D. Diogo Pacheco. Aquele que ainda caçamos.

Peres não teve oportunidade de tocar no assunto com Lobato que, trancado numa suposta indiferença, ergueu um muro intransponível entre eles. Com vontade de magoá-la, não compareceu ao momento em que ela apresentou as peças de madeira a Pedro, habilmente agrupadas para lhe dar a dimensão do resultado. Se ele aprovasse, poderiam passar para a próxima etapa.

Comovido, o rei elogiou seu trabalho, dando-lhe, sem perceber, a direção que Peres tanto buscava para sua existência. – Onde ficará o túmulo? – ela perguntou, disfarçando a própria emoção. – No Mosteiro de Alcobaça.

Não ficava longe de Coimbra. – E quero que lideres a equipe de artesãos – ele acrescentou.

Peres, eufórica, quase pulou de alegria. Partiu imediatamente, sem se despedir de Lobato e carregando as peças de madeira, os desenhos e todo o seu material.

Não estava em Cantanhede, em julho, quando Pedro reuniu povo, clero e nobreza para declarar oficialmente que, sete anos antes, tinha se casado com Inês por palavras de presente. Ela fora, portanto, sua esposa legítima, um reconhecimento que também legitimava os filhos do casal.

Como testemunhas, o rei chamara o bispo e médico de suas crianças, Gil da Guarda, que teria realizado em Bragança a união clandestina, além do indispensável Lobato. Como nenhum dos dois se lembrasse da data do casório, o criado jurou que acontecera no início de janeiro, uma época, entretanto, bastante incomum para esse tipo de cerimônia.

Desconfiada, Peres duvidou que o casamento tivesse mesmo ocorrido. Pedro não deixaria de mencioná-lo naquela conversa em que lhe revelara tudo sobre Inês. Além disso, sempre se referia a ela como sua companheira e nunca como esposa.

Por outro lado, Lobato, que levava muito a sério promessas e juramentos, cumprindo-os à risca, jamais juraria em falso. A não ser que acreditasse nas palavras de Pedro, que poderia muito bem ter inventado uma história qualquer para convencê-lo. Ou, então, revelado que aproveitara alguma viagem com Inês para se casar com ela sem que o melhor amigo suspeitasse.

A declaração em Cantanhede ecoou com estrondo pelo restante da Europa por mudar radicalmente o status de Inês. De amante ela passara a quase rainha. Seus assassinos não tinham mais executado uma mulher qualquer, e sim a esposa de um infante, agora rei, temido pela barbárie a que poderia chegar para vingá-la.

Aquela declaração pública do amor de Pedro por Inês, na verdade, seria apenas a primeira.

Algo ainda mais contundente estava em seus planos.

No ano seguinte, 1361, Pedro esteve comprometido com as Cortes, ocasião em que recebeu representantes de várias camadas da população para ouvir seus problemas e pensar em soluções. Por estar mergulhada no trabalho, Peres mal prestava atenção nas conversas sobre o assunto, embora se interessasse em saber o que comentavam a respeito do governo de Pedro.

Em um período marcado pela violência, ele a diluía em acordos entre as partes envolvidas, fazendo com que ambas perdessem em alguns pontos e ganhassem em outros. Era generoso com seus nobres de confiança, mas não permitia que abusassem de seu poder.

Devido à pressão dos mais conservadores, reafirmou as leis de Afonso, que privilegiavam a moral e os bons costumes. Por outro lado, não promoveu nenhuma perseguição a quem as transgredisse, apesar de alguns cronistas, no futuro, resgatarem lendas sobre

um rei louco e sádico que chicoteava pessoalmente os infratores e castrava homens que dormissem com mulheres casadas.

Ele era a favor, sim, de que todos os homens portassem armas para que pudessem se proteger dos salteadores nos diversos caminhos pelo reino. Quanto aos mouros e judeus, fez o possível para defendê-los. Cercou seus bairros, isolando-os de possíveis conflitos com a maioria cristã. Eles também foram proibidos de circular fora de seus muros após o Ângelus. Uma proibição, na prática, bastante flexível, pois a duração dos dias podia ser muito longa nos meses mais quentes.

Aquele era o Pedro que os súditos amavam, fazendo todo o possível para deixar Portugal fora dos conflitos nos reinos vizinhos ao mesmo tempo em que, internamente, procurava amenizar as graves crises sociais e econômicas daquele período.

Na esfera pessoal, era um pai atencioso, que amava os filhos legítimos e bastardos, um homem que respeitava suas mulheres, tratando-as bem e pensando no futuro delas, e um amigo sempre atento aos problemas de quem merecia sua amizade.

Peres, que nunca recebera uma visita de Pedro ou de Lobato em Alcobaça, só os encontrou novamente em 1362, após ser chamada a Coimbra.

O túmulo de Inês estava pronto.

Tempo demais longe de Peres, pensava Lobato. Lutara todos os dias contra a vontade de visitá-la em Alcobaça, firme em seu propósito de esquecê-la. Cedo ou tarde, a jovem pertenceria a Pedro. Bastava lembrar o carinho e a preocupação que ela lhe dedicara após a execução dos assassinos.

Para o criado, sobrava se conformar com o inevitável.

Bem que ele tentou substituí-la por outras mulheres, com quem eventualmente dormiu desde que terminara seu período de luto pela morte da esposa. Mas na manhã seguinte não tinha ânimo para investir no relacionamento e logo demonstrava seu lado mais metódico, entediante e cheio de manias para espantá-las. Tinha consciência de que agia de propósito porque nenhuma delas o forçava a sair de sua zona de conforto, experimentar algum desafio, esquecer seu papel de nobre prestativo e eficiente. Nenhuma delas poderia salvá-lo das próprias escolhas.

A única que desejava para seu destino apareceu em Coimbra na manhã em que ocorreria o translado dos restos mortais de Inês. Eles seriam retirados da capela no Mosteiro de Santa Clara para depois seguir em um imponente cortejo até Alcobaça.

Mas, antes que tivesse início a derradeira declaração pública do amor de Pedro, ele transformaria sua esposa em rainha.

Peres conheceria o local do assassinato de Inês, o pátio externo do paço junto ao Mosteiro de Santa Clara. Apinhados do lado externo, os nobres mais importantes do reino esperavam desde a madrugada a autorização para entrar, detidos pelo enorme portão de ferro ainda fechado. Tinham sido convocados para uma cerimônia, mas ninguém sabia direito do que se tratava. Apostavam numa missa ao ar livre para a defunta.

Mal a claridade do novo dia começou a absorver a escuridão para desvendar as cores do mundo, o portão foi aberto.

Peres acabou ficando para trás. Apreensiva, ouviu os gemidos e os gritos de horror abafados de quem caminhava à sua frente. Arrepiou-se com o medo que rapidamente se espalhou.

Quando chegou sua vez de pisar o pátio, teve a atenção desviada para o cenário montado ao centro do local. A jovem hesitou, um misto de perplexidade e adoração.

Numa atmosfera tétrica e mágica, a aurora tocava com delicadeza o cadáver de Inês e refletia-se no inacreditável trono de vidro que ele ocupava, digno da rainha de um mundo sobrenatural. Sonho e realidade ao mesmo tempo. Pesadelo irreal para a maioria de seus súditos.

O corpo, apenas ossos, dentes e unhas, fora vestido de modo magnífico. A mão direita usava uma luva e apoiava-se no braço do trono, enquanto a esquerda, nua, repousava no outro braço num gesto gracioso.

Já a cabeça… Separada do corpo pelo carrasco, não fora recolada no lugar, uma recordação a todos do crime covarde que vitimara Inês numa madrugada como aquela.

O crânio estava em seu colo, os cabelos soltos e penteados. Uma suave coroa de pedras preciosas sobre ele atribuía a Inês a legitimidade como esposa e rainha.

Em pé ao lado do trono, Pedro parecia uma estátua. Impassível, sem vida ou reações. Foi Telo quem conduziu o ritual em que todos os nobres juraram sua lealdade à nova rainha, beijando-lhe a mão enluvada.

Assim que Álvaro cumpriu sua obrigação, foi até Lobato que, à distância, assistia a tudo com uma expressão transtornada que revivia os detalhes do assassinato, dolorosamente buscando possibilidades do que poderia ter feito para impedi-lo. O galego apoiou a mão em seu ombro, disse-lhe algumas palavras de conforto e depois se dirigiu até o meio-irmão, Fernando.

Peres conhecia muito bem a opressão que esmagava o criado. Também assistira à morte de quem amava sem poder interferir, vítima da maldade, violência e degradação.

A jovem chegou mais perto de Lobato, segurou-lhe a mão e entrelaçou seus dedos aos dele. Seu mestre fitou-a, surpreso, e então se permitiu fechar os olhos para impedir a visão do trono transparente e uma Inês transformada em rainha depois de morta.

Não se sentia mais tão sozinho.

Após a cerimônia, o cadáver foi devolvido a seu caixão de madeira que, coberto por um manto fino, bordado por fios de ouro e prata, terminou em cima de uma carroça, puxada por dois vistosos garanhões brancos.

O cortejo fúnebre deixou o paço, acompanhado pelos nobres, os homens a cavalo e as mulheres em carroças, todos com suas melhores roupas e joias, Pedro liderando-os no trajeto coberto por flores e acompanhado por cânticos e muita comoção. As margens do caminho estavam tomadas por súditos vindos de todas as partes do reino para o último adeus. Portugal em peso desmanchava-se em lágrimas por Inês de Castro.

Em Alcobaça, o caixão foi transferido para o túmulo de calcário que o aguardava na igreja do mosteiro, iluminada por círios e velas menores que valorizavam o jogo de luz e sombras sobre o piso, os arcos góticos, as paredes, janelas e passagens. Uma missa foi realizada e, ao final, todos puderam se aproximar do túmulo, apreciar a beleza daquela arte inovadora e, claro, fazer sua oração pessoal a Inês.

O povo, em fila, aguardava do lado de fora. Entraria tão logo os nobres saíssem, numa visitação contínua que duraria horas, dias, semanas. Séculos, como desejava Lobato. O mito tinha enraizado sua base com firmeza e começava a crescer para conquistar a eternidade.

Pedro só deixou a igreja quando os amigos conseguiram convencê-lo de que precisava descansar. O suplício, no entanto, não terminava para Lobato, que recebeu de um mensageiro uma carta urgente enviada pela abadessa do Mosteiro de Santa Clara. A filha dele, a única família que lhe restava, falecera horas antes. Uma morte súbita, o coração que simplesmente desistira de bater.

– O que houve? – perguntou Peres, que permanecera o tempo todo perto dele.

O criado não conseguiu explicar sua dor. Entregou-lhe a carta, esquecendo que ela não sabia ler, e partiu sozinho para Coimbra.

Tinha mais um enterro à sua espera.

Foi Telo quem leu a carta para ela e depois avisou Pedro. Junto com Álvaro, eles retornaram de imediato ao Mosteiro de Santa Clara. Lobato não cuidou sozinho do enterro da filha. Recebeu ajuda e o apoio dos amigos.

Quando tudo terminou e o rei quis dispensá-lo do trabalho por alguns dias, o criado negou-se a parar, teimando que tinha responsabilidades, muitas delas, e que a vida precisava continuar.

Pedro não viu alternativa exceto aproximá-lo de Peres. – Chama-o para trabalhar contigo no novo túmulo – disse para a jovem, após puxá-la pelo cotovelo até um canto reservado. – Fazei juntos as pesquisas necessárias, os esboços, o planejamento, os desenhos, as peças em madeira, tudo! – Que novo túmulo? – ela quis entender. – O meu. Agora vós deveis eternizar na pedra meu amor por D. Inês.

Lobato, inseguro, não quis assumir nenhuma tarefa relacionada ao novo projeto. – Nem sei o que contar na pedra! – defendeu-se.

Seu argumento foi derrubado por Pedro num estalar de dedos. – Tu conheces minha vida melhor do que eu! – ele retrucou. – Pensarás em algo.

– Mas… – Vai já ajudar a Peres! Quero-te trabalhando com ela.

Lobato amarrou a cara e foi cumprir a ordem. Logo as ideias vieram e ameaçaram abalar sua insegurança crônica. Foram esperá-lo em Alcobaça, para onde ele levou sua parceira de trabalho uma semana mais tarde.

Na igreja, ele parou diante do cenário esculpido do Juízo Final no túmulo de Inês. Refletiu por minutos, virou-se para Peres, atrás dele, espiou além dela, mordeu os lábios e concentrou-se de novo na escultura.

Sem paciência, a jovem cruzou os braços, consciente de que ele era capaz de gastar horas em suas análises. Gostou de vê-lo pensativo, o olhar sonhador destoando do rosto sempre sério. Ao contrário de Pedro, que envelhecia depressa, Lobato aparentava ser mais jovem do que os 42 anos que completaria no segundo dia de setembro. Mantinha-se esguio, o corpo bem cuidado por uma alimentação sem exageros e pelos treinos constantes de esgrima que conseguia encaixar em sua correria diária. Era o sonho e o desejo de muitas mulheres. – Devemos pensar em um conjunto – disse ele. – Ahn…? – O segundo túmulo deve completar o primeiro.

Apontou para a imagem do Juízo Final e, a seguir, para o espaço vazio atrás de Peres. – Se o túmulo de D. Pedro ficasse ali… – disse. – Um ficaria de frente para o outro. – Isso. No Juízo Final, quando D. Inês e D. Pedro despertassem para a vida eterna no paraíso… – Eles se ergueriam de seus túmulos e… – A primeira coisa que veriam… – Seria um ao outro!

Lobato sorriu.

– É perfeito! – disse ela. – Não sabia que eras tão romântico.

Claro que ele corou até não se aguentar mais. – Nas laterais do túmulo, o rei quer cenas da vida de São Bartolomeu – Peres contou. – Seis de cada lado, como no túmulo de Inês. – Esse santo foi esfolado vivo… – O rei se sente como ele, não?

Lobato confirmou. – O túmulo poderia ser sustentado por seis esculturas de leões – ela propôs. – Um animal que representa sentimentos nobres e elevados. Símbolo de realeza. Sim, é um contraponto interessante para as criaturas vis que carregam nas costas o túmulo de D. Inês. – Acho que a escultura na tampa pode combinar com a de Inês. Teríamos anjos para despertar o rei, erguer sua cabeça coroada. Ele estaria usando suas vestes mais solenes, armado com sua espada… – Não esqueças que ele é também um caçador. – Cachorros são úteis numa caçada, certo? Podemos colocar um a seus pés. O que achas? – É interessante. – Só interessante? Lobato, o que estás ensaiando para me dizer? – Falta a inovação. – Já sei. Falta o que encantará gerações, vai se transformar em poesias, lendas e histórias através dos séculos e blá-blá-blá. Diz, qual é tua sugestão?

Os olhos do criado brilharam. – Uma rosácea.

Não era tão empolgante assim colocar um elemento arquitetônico comum, ainda mais que a rosácea seria de calcário e não montada como um vitral que transmitiria a luz do sol para evocar a ascensão ao divino.

– Não seria uma rosácea com temas sagrados – ele acrescentou, travesso. – Nenhum anjo, santo e…? – Exatamente. – E o quê…? – Ela teria cenas da vida de D. Pedro e D. Inês.

Um desenho geométrico que estilizava as pétalas de uma rosa partia de um ponto central e ia se expandindo de forma circular ao agregar cenas marcantes da trajetória do rei. Cenas que poderiam se opor ou se complementar, permitindo uma leitura sem começo, meio e fim definidos, um ciclo que se repetia, um círculo sem fim que poderia inspirar interpretações diferentes e contraditórias. O registro de uma história para a posteridade. A roda da vida e da morte.

A sugestão era inédita e deliciosamente audaciosa. – Gostas? – perguntou Lobato.

De novo ela, a insegurança oculta pela postura de um homem aparentemente muito seguro de si, mas que morria de medo de errar e assumir riscos. – Vou precisar que dividas comigo os desenhos – disse Peres. – Esse túmulo dará mais trabalho do que o primeiro.

Escolher as cenas para a rosácea seria um imenso desafio: elas deveriam contar momentos simbólicos no desencadeamento da história de amor entre o rei e sua rainha. Deixaram-na por último, dedicando-se primeiro às passagens vivenciadas por São Bartolomeu, a escultura de Pedro na tampa e depois à imagem na face aos pés do túmulo. Ela traria dois momentos da chamada boa morte cristã, com o soberano recebendo os sacramentos finais antes da morte e o perdão por seus erros cometidos em vida. Poderia,

enfim, ocupar seu lugar entre os eleitos no Juízo Final, representado no túmulo de Inês.

O planejamento durou meses, pois Lobato não abria mão de suas tarefas. As viagens, como de hábito, eram constantes. Para adiantar o processo, Peres aproveitava para esculpir em madeira o que já tinham desenhado.

No final de 1363, começaram a escolher as cenas da rosácea. Na primeira roda, a interna de acabamento duplamente arredondado, seis delas mostrariam o amor platônico entre Pedro e Inês antes do reencontro na cabana no Minho, a oposição de Afonso à união e, seu quadro mais impactante, um monstro alado, a ameaça sinistra prevista pela bruxa prestes a se concretizar, pairando sobre o casal enquanto se prepara para destruir o tênue equilíbrio daquele mundo.

A segunda roda, composta de doze momentos e com acabamento arredondado triplo, cercaria a primeira para apresentar situações do cotidiano do casal, a presença dos filhos, a sentença de morte, a execução de Inês, a vingança de Pedro contra um dos assassinos e, por fim, o corpo do rei em seu túmulo, o final que antecede o começo. – Aqui colocaremos uma frase – disse Lobato. – Qual? – perguntou Peres, curiosa. – “Até o fim do mundo”.

Palavras que a princípio remetiam à promessa do reencontro entre Pedro e Inês no dia do Juízo Final, quando finalmente estariam livres para reviver seu amor no reino de Deus. Mas também palavras que possuíam um significado diferente, conhecido apenas pelo rei e por seu criado.

Peres aprendera com Lobato que a observação para um artista era tão indispensável quanto respirar. E, como ele, passara a reparar melhor nas pessoas, na natureza, nos ambientes internos e externos, no mundo ao redor.

Foi numa dessas observações que descobriu que Pedro, embora amasse todos os filhos, tinha o seu preferido. Em 1364, ele entregou a João, o caçula que tivera com Teresa Lourenço, o título de Mestre de Avis, o mais importante daquela ordem religiosa e militar formada por cavaleiros. De suas crianças, João era o mais levado e o que mais sentia sua falta, ressentido da presença constante do meio-irmão Fernando e dos filhos de Inês na rotina do pai.

Sempre que os compromissos reais permitiam, Pedro mandava buscá-lo e às vezes o levava em alguma viagem. João prestava atenção em tudo e queria aprender tudo, enchendo-o de porquês. Segundo confidenciou Lobato a Peres, se a bruxa acertasse mais uma previsão, aquele menino inteligente seria o responsável por uma nova era em Portugal.

A observação do mundo, no entanto, nem sempre bastava para resolver dilemas estéticos.

Numa madrugada em que não conseguia dormir, sentindo-se incapaz de atingir a leveza que uma das montagens exigia, Peres não pensou duas vezes. Com a folha debaixo de um braço e caixa de giz numa das mãos, foi bater à porta do quarto de Lobato. Estavam em Coimbra.

Ele a abriu com uma expressão sonolenta, os cabelos e a barba amassados. Estava descalço, enrodilhado numa manta de lã e vestido apenas com uma calça comprida. – Qual é a emergência? – perguntou, a voz grogue de sono. – Não consigo resolver a estrutura da roda interna da rosácea. – Não podes deixar para amanhã? – Não! Já é amanhã!

Entrou sem ser convidada. Uma única vela ardia numa mesa.

Para iluminar o ambiente, a jovem distribuiu a chama entre outras velas ao redor da primeira. A luz revelou que o maior especialista em arrumação era também o maior especialista em bagunça. O caos imperava no local, com roupas espalhadas pelo

chão, inúmeras pilhas de papéis e livros, arcas abertas e reviradas como se um tornado tivesse acabado de passar. E, mais irônico, pedaços de giz em todos os cantos possíveis e imagináveis. – Suponho que não devas trazer para cá tuas convidadas – disse Peres. – Ninguém vem. Nunca.

Ele desabou sentado sobre a cama que mais parecia um rodamoinho de lençóis. Pelo menos, estavam limpos.

Peres agachou-se à sua frente, mostrou a folha com o desenho e exigiu uma opinião. O criado fechara os olhos. Voltava a adormecer. – Lobato! – chamou ela, beliscando-lhe o braço.

Sobressaltado, ele ergueu as pálpebras. – Vê o desenho! – mandou a garota.

Ele viu. – Está muito estreito – disse. – Onde? – À direita. – A minha direita ou a tua?

Lobato fez uma careta. Ela ainda não aprendera a diferença entre direita e esquerda? – Tanto faz… – resmungou. – Dá mais espaço para a composição, areja a área de cima.

Peres arrumou outra folha, sentou-se na cama e pôs-se a realizar as mudanças. Não gostou do efeito final. Lobato, que escorregara para o outro lado, dormia de bruços. A manta fora parar em cima de uma arca abarrotada de desenhos. Obviamente Peres foi espiá-los.

Havia desenhos antigos e recentes retratando pessoas, paisagens e momentos de Lobato com a esposa e as filhas que perdera, Pedro com a família dele, Inês, Telo, Álvaro, inimigos, aliados. E

Peres em muitas cenas, uma delas adormecida numa cama na Galícia, na última vez em que usara um vestido.

No fundo da arca, Lobato escondia seus fantasmas. Uma imagem desbotada pela ação do tempo trazia uma mulher, pelas roupas uma serva, e um homem que lhe quebrava o pescoço, no alto de uma muralha. Em outra, Inês era degolada pelo carrasco numa reconstituição tão real que Peres estremeceu. Mais desenhos exibiam as sangrentas consequências do desvario de Pedro e seus homens enquanto atacavam o norte do reino.

Peres não quis ver mais nada. Devolveu os papéis à arca e voltou-se para o sono pesado e a respiração tranquila de seu mestre.

Ao reparar na cicatriz no ombro dele, a jovem sorriu. O que tinha sido mesmo? Ah, uma flecha moura… Não, castelhana. Uma longa história que Lobato nunca lhe contara.

Como sentira falta daquele homem no período em que trabalhara em Alcobaça… Gostava de seus conselhos, embora reclamasse deles o tempo inteiro. Apreciava o som de seus passos ágeis e quase sempre abafados para não revelar sua presença quando queria ser invisível. A voz de Lobato era grave, e o sorriso, tão raro, encantador.

A jovem deitou-se à sua direita. Contemplou por alguns minutos o rosto parcialmente voltado para ela. E não resistiu em beijar os lábios entreabertos.

Timidamente Lobato retribuiu o carinho. Talvez o considerasse parte de algum sonho. Ele se reposicionou, capturou a garota para si, seus lábios ainda unidos aos dela, aumentando a intensidade do toque, desejando muito mais…

Peres sentiu medo, quis fugir das mãos que desejavam acariciar seu corpo. Debateu-se para afastá-las. – Não! – quase gritou.

Num movimento brusco, o criado sentou-se. Seus olhos demoraram a focalizá-la. O raciocínio, entorpecido, tentava entender.

Mas não havia nada para entender. A jovem ainda não estava pronta para aprofundar a relação entre eles. – Fizeste as alterações? – Lobato perguntou.

Como ela não responderia, ele encontrou o novo desenho, levou-o para a mesa, vestiu uma camisa e, após pegar um pedaço de giz, debruçou-se sobre uma folha em branco. – Queres que eu te mostre o que pensei para a estrutura da roda interna? – perguntou, comportando-se como se o beijo jamais tivesse acontecido.

Grata pela compreensão, Peres levantou-se e foi até ele. Trabalhariam juntos até o nascer do sol.

O choro nublou a visão de Pedro quando viu as cenas da rosácea. O projeto completo do túmulo, já todo esculpido em madeira, era-lhe apresentado. – De quem foi a ideia? – murmurou. – Dela – mentiu Lobato, indicando Peres. – Dele – retificou ela.

Pedro impediu as lágrimas e tratou de direcionar o assunto para outro ponto. – Esquecestes minhas bochechas gordas – disse, brincalhão, apontando para a escultura que o retratava e ocuparia a tampa. – Aliás, minha aparência ficou muito elegante, não? – Queres que eu mude? – indagou a jovem. – Ah, não, deixa como está! – dispensou ele. – Pelo menos na morte minha imagem corresponderá ao que esperam que eu seja.

Não havia ressentimento em suas palavras. Havia muito não dava a mínima importância para seu excesso de peso e a opinião dos outros sobre isso. Ele elogiou o projeto do túmulo, deixando o amigo encabulado e a jovem muito orgulhosa de si.

– E tu vais para Alcobaça com a Peres – decidiu, o dedo indicador direcionado para Lobato. – Ela precisará de um ajudante para liderar os artesãos com o calcário.

O criado ficou pálido. – Não… – gemeu, quase sufocando. – Não irás me obedecer? – Senhor, tenho minhas obrigações contigo e… – Há outros que podem realizá-las.

Lobato engoliu saliva, pronto para brigar pelo que julgava seus direitos. – Estás me dispensando? – rosnou. – Não estou te dispensando – corrigiu Pedro. – Só estou te passando mais uma tarefa, que durará até que o túmulo esteja pronto. Então reassumirás teu trabalho como meu criado.

Peres olhou para um e depois para outro. Lobato não ia ceder tão facilmente e Pedro não lhe daria opção. Para a garota, seria ótimo se pudesse também contar com seu mestre na etapa de execução do túmulo. – Senhor, não tenho a mínima ideia de como esculpir em calcário – disse Lobato. – Os artesãos te ensinam. – A verdade é que não entendo de esculturas! – Peres te ensina. – Não posso ficar em Alcobaça com ela! – E por que não? – É, por que não? – repetiu a jovem.

Os dois homens voltaram-se para ela, que novamente fez a cobrança. – Por que não, Lobato?

Ele baixou o rosto, sentindo o peso do universo em seus ombros. – Porque não – limitou-se a dizer.

– Irás por bem ou por mal, escoltado por meus soldados – disse Pedro para encerrar aquele surto de rebeldia.

A escolta não foi necessária. Mudo e emburrado, Lobato foi com Peres até Alcobaça.

Nos seus primeiros dias por lá, sentiu-se como um peixe fora d’água. Andava pelo mosteiro de um lado para o outro, perdido, sem ideia do que fazer.

A jovem chamara a mesma equipe de artesãos que executara o túmulo de Inês. Além de serem ótimos no que faziam, a muito custo tinham aprendido, anos antes, a trabalhar sob as ordens daquela mulher que, pouco a pouco, ouvindo seus conselhos e aprendendo com eles, conquistara-lhes o respeito. Não haveria problemas.

Faltava integrar Lobato à nova rotina, o que se revelou bastante fácil. Ele logo trocou suas roupas de fidalgo por outras mais simples e, numa postura humilde de aprendiz, misturou-se aos artesãos.

Os meses voaram. Peres nunca o vira tão feliz, à vontade como o desenhista que, como ela, revia constantemente o projeto para os ajustes inevitáveis. Lobato sorria mais, falava mais, era mais ele mesmo. Uma personalidade muito mais agradável do que nos seus tempos de criado sisudo. Continuava cheio de manias, obviamente, o que sempre virava motivo de piadas entre os artesãos, mas ainda assim um homem melhor, livre e com muita vontade de viver.

Os monges, lisonjeados por Pedro ter escolhido a igreja deles e não outra para os túmulos, comportavam-se como da primeira vez. Não interferiam na rotina da equipe, que começava logo após a missa matinal e ia até o Ângelus.

No começo de outubro de 1366, o túmulo foi finalizado. Para comemorar, os artesãos e seu aprendiz planejaram beber na taberna do vilarejo, um hábito que tinham adotado para relaxar um pouco e, muitas vezes, terminar a noite com alguma mulher.

Peres, claro, jamais era convidada. Não que fizesse questão, mas se enfurecia ao imaginar Lobato nos braços de outra.

Desde aquele único beijo, ele nunca mais tentara tocá-la, mantendo-se sempre a uma distância respeitosa. E isso magoava a jovem sem que pudesse impedir.

Naquela noite, ela conseguiu na cozinha uma jarra de vinho, rapidamente levada para a cela que ocupava na ala mais distante do mosteiro, reservada aos hóspedes. Faria sozinha a própria comemoração.

No instante em que ia experimentar o vinho, alguém bateu à porta.

Era Lobato.

Ele tinha caprichado na aparência, muito elegante, apesar das roupas comuns. Seus cabelos, penteados com cuidado, ainda estavam úmidos e a barba fora aparada. Lavara-se havia pouco e, como conferiu com prazer o olfato da jovem, sua pele cheirava a limpeza. – Gostarias de ir conosco à taberna? – convidou, tímido.

Peres fechou as sobrancelhas, a imagem dele com outra garota atrapalhando-lhe a objetividade. – Não! – disse, com raiva.

E bateu a porta na cara de Lobato. – Por que és sempre tão mal-educada? – reclamou ele. – Eu sou assim! Não consigo evitar. – E ainda fazes questão de ignorar as boas maneiras e todas as regras de comportamento admissíveis para uma mulher! Ages como homem, te vestes como um. És rude e malcriada! E quanto ao tratamento respeitoso que deverias utilizar com os fidalgos? Para ti, isso não existe. D. Telo é só Telo para ti e D. Álvaro, só Álvaro.

E D. Pedro, então? Nunca o chamas dessa forma. E ainda devias me chamar de D. Estêvão e não de…

Peres abriu a porta de supetão. Ele parou de gesticular, impedindo o restante da frase. – Lobato, entra logo e vem tomar uma caneca de vinho! – rosnou ela.

Lobato ia recusar o convite. Não ficava bem entrar no aposento de Peres.

Por outro lado, não havia ninguém por perto para falar mal da reputação da jovem e, além disso, seria apenas uma rápida caneca de vinho. Ele não iria perder o controle justo agora, depois de lutar bravamente, dia após dia, contra a vontade de repetir aquele beijo.

No local, manteve-se perto da porta. Tomou a bebida quase num gole só, Peres imitou-o, ambos embaraçados. Ele aceitou uma segunda dose, ela encheu de novo a própria caneca. – Voltamos amanhã para Coimbra? – perguntou Peres. – Sim. Vou reassumir minhas obrigações junto a D. Pedro. – Então este foi nosso último dia juntos? – Irás comigo na viagem, não? – Sim, irei.

Mesmo dividindo o trajeto até Coimbra, os dois sabiam que aquela noite marcava o fim de um período que não iria se repetir. Cada um acabaria seguindo um caminho diferente. Pedidos de desenhos e esculturas não faltariam a uma jovem tão talentosa.

Ele quis mais vinho. Ela também. E começou a rir, o álcool fazendo efeito muito rápido. – Estou tonta… – murmurou.

Lobato levou-a para se sentarem na cama. Continuaram bebendo, o criado para esquecer o futuro entediante à sua espera e a desenhista ainda na comemoração de mais um trabalho pronto.

De repente ele a beijou, esquecendo o bom senso e estreitando-a junto a si. Ela quis mais e começou a despi-lo.

A manhã encontrou-os dormindo, nus e abraçados. As badaladas do sino do mosteiro, o anúncio do novo dia que também convocava os monges para a missa, retumbaram dentro da cabeça de Lobato como se ela fosse oca. O criado sentou-se, confuso. Peres despertava sorrindo.

Quando as lembranças da noite anterior se tornaram claras, ele saltou da cama, vestiu-se apressadamente e voou para a porta. Aquela mulher pertencia a Pedro, a quem amava. E Lobato estragara tudo ao se aproveitar de uma noite de vinho que a deixara tão indefesa… – Perdoa-me – murmurou antes de sair.

Peres não entendeu nada. O que deu nele?, perguntou-se.

O mesmo muro intransponível de antes foi novamente erguido por Lobato. Durante a viagem até Coimbra, ele falou apenas o necessário, frio e distante ao extremo.

Na cidade, onde encontraram Pedro, o criado não teve coragem de encará-lo. Fitou o chão ou o vazio a maior parte do tempo. E, na primeira oportunidade, correu para se refugiar em suas antigas tarefas.

Bastante envolvido com os assuntos do reino, Pedro não pôde lhes dar muita atenção. Apenas pediu a Peres que ficasse por perto, desenhando o que bem entendesse. Conversariam assim que possível.

As relações entre Portugal e Castela andavam azedas. O Cruel, que nos últimos anos ordenara a morte de irmãos bastardos, inimigos e até da primeira esposa Blanche de Bourbon, resolvera se esconder em solo português, fugindo de seu perseguidor Enrique de Trastâmara. Pedro agiu rápido, recusando auxílio e, desse modo, evitando que a guerra entre os dois castelhanos invadisse seu reino.

Com o apoio do filho Fernando e dos conselheiros, enviou Telo e Álvaro para escoltarem o sobrinho até a Galícia. O plano, porém, tinha outro objetivo. No meio do caminho, Telo e Álvaro escaparam, levando a filha adolescente de Enrique de Trastâmara que o Cruel tinha sequestrado. A jovem foi devolvida ao pai, o que permitiria que um acordo entre ele e Portugal fosse assinado mais tarde. Quanto ao Cruel, ele teve de seguir sozinho com a própria escolta para a Galícia, onde provocou mais problemas.

Somente após contornar mais aquela crise, na segunda metade de novembro, é que Pedro teve um pouco de tranquilidade para conversar com Peres. Estavam a sós na antecâmara e era quase meia-noite. Ele encerrara uma reunião importante com três de seus conselheiros, que já tinham se retirado. Como de hábito, a jovem estava sentada no chão, desenhando. Pedro acomodou-se ao seu lado. – O que houve entre ti e D. Estêvão? – perguntou. – Vós brigastes? – Não. Dormimos juntos. – Finalmente! – ele comemorou, para surpresa da garota. – Aconteceu no mês passado e…

Foi a vez de ele se mostrar surpreso. – Só aconteceu no mês passado?! – espantou-se. Como a jovem não entendesse, teve de explicar o que era óbvio para ele. – D. Estêvão te ama há uns dez anos, desde aquela viagem à Galícia.

Dez anos?! Não, não podia ser. Ninguém guardaria por tanto tempo um sentimento tão intenso sem demonstrá-lo, exceto… se a pessoa fosse Lobato. Sim, seu mestre agiria daquele jeito se simplesmente resolvesse agir daquele jeito.

Numa vingança infantil contra ele, Peres largou o bloco de desenho e esparramou pelo piso todo o conteúdo da caixa de giz de carvão. – Não gostaste da companhia de D. Estêvão? – Gostei muito – ela admitiu. – Estávamos felizes e… bêbados.

Pedro começou a rir. – Ah, se eu soubesse que só o vinho vos daria coragem, já vos teria embebedado há tempos!

Mas Peres não achou graça nenhuma. Angustiada, abraçou os joelhos. – Estou grávida.

O rei ia parabenizá-la, empolgado. Preferiu se conter. – E não é uma boa notícia? – achou melhor confirmar. – Quando eu era casada, tive uma filha, minha Catarina…

O assunto relacionava-se com a vingança que ainda a movia. Pedro inspirou fundo, muito sério e tenso. – Imaginas o que lhe aconteceu, não? – disse Peres. – Meus soldados foram responsáveis pela morte dela, naquele meu período de desvario. – Cinco desses teus soldados mataram minha filha e meu marido, queimaram nossas plantações, destruíram tudo e depois me levaram para ser a prostituta deles. Mas um dia consegui fugir e jurei que mataria o único responsável por toda aquela violência. – Eu. – Foi o que pensei no começo, antes de descobrir que tua loucura era consequência de algo muito maior. E que o único responsável era outra pessoa: Diogo Pacheco.

– Mas isso não me exime da culpa pelas atitudes dos meus soldados. – Eu sei. Mas já sofreste muito e tua consciência te faz pagar todos os dias por teus crimes. – Ainda me odeias? – Difícil continuar odiando alguém que deu um novo sentido à minha vida. Ter a oportunidade de criar aqueles túmulos… Aquilo foi fascinante!

Ele sorriu, grato por receber aquelas palavras. – E quanto a D. Estêvão? – indagou. – O que tem ele? – Tu o amas?

Peres suspirou. – Infelizmente sim.

Seria tão mais fácil amar um homem menos complicado… – Sê feliz com ele, Peres. A vida é muito curta.

Ela o mirou bem nos olhos, a intuição alertando-a que um simples conselho como aquele escondia significado mais amplo. – Estás doente? – arriscou.

Pedro assentiu. – O que tens? – É o que vai me matar. – Não pode ser tão grave! – Peres negou-se a acreditar. – Tu me pareces bem saudável. Sentes dor?

Sentia, mas não quis admitir e lhe dar detalhes da doença. – Lobato já sabe? – perguntou a jovem. – Somente meu médico sabe. E não quero que ninguém descubra, por enquanto. – E Lobato não percebeu que…? – D. Estêvão só tem a ti na cabeça – garantiu Pedro. – Nem as tarefas dele anda fazendo direito. Que ele repare nos outros é exigir muito.

Peres teria tempo para se acertar com Lobato. Quanto a Pedro, se a doença fosse realmente tão séria… – Acho que muito em breve vou inaugurar o belo túmulo que vós fizestes para mim – disse ele, bem-humorado. – Não digas isso nem brincando! – retrucou Peres, lágrimas tomando-lhe o rosto sem que pudesse impedir.

Num gesto terno, o rei retirou-as com as pontas dos dedos. – Vem comigo – pediu. – Tenho um presente para ti.

Em seu quarto, de dentro de uma arca, Pedro retirou um velho caderno de desenhos, que deu à jovem. A seguir, sentou-se na cama e indicou-lhe um lugar ao seu lado. Pareceu muito cansado, como se não precisasse mais fingir diante dela a inexistência da dor e da doença. – São desenhos da tua infância? – perguntou Peres ao descobrir os traços simples e cheios de imaginação que invadiam as primeiras páginas. – Foi a Zaynab quem fez. – E quem é ela?

Pedro contou-lhe uma aventura do passado, quando ele e seus três melhores amigos resgataram uma princesinha nasrida. Então essa é a longa história de como Lobato ganhou aquela cicatriz no ombro, pensou a jovem, certa de que jamais a conheceria se dependesse do criado. – Quando tu e D. Estêvão fordes a Granada, procura a princesa em meu nome e lhe mostra este caderno – orientou Pedro. – Diz a ela que o guardei com carinho todos esses anos. – Granada? E por que achas que Lobato e eu vamos para lá? – Porque esse é o sonho dele. E também será o teu. – Ele te disse isso? – Nem precisa dizer. Eu o conheço há mais de quarenta anos, Peres. Apesar de meses mais novo, D. Estêvão foi o irmão mais velho que não tive, o pai que D. Afonso nunca quis ser. Ele me

protegeu, cuidou de mim, sempre me apoiando, mesmo quando ninguém ainda me dava valor como ser humano. E ainda abdicou da vida dele para me seguir. – E será a pessoa que terá mais dificuldade para aceitar tua morte. – Sim. Cuida dele. – Tens minha palavra, rei. – Há uma coisa que eu gostaria de te pedir… Algo que não terei tempo de fazer. – E que eu completarei para ti.

Pedro moveu a cabeça de modo afirmativo. Deu-lhe mais orientações, entregou-lhe um frasco com um líquido viscoso, sugeriu o uso de um cálice e de um manto branco, escolheu o local. Trocaram ideias e também conversaram muito sobre passado, presente e futuro.

Pouco antes do amanhecer, ele se deitou, sonolento. Peres dormiu logo depois. Acordariam horas mais tarde, no meio de uma manhã sombria para Lobato.

Como Pedro não foi à missa matinal, Lobato deduziu que ele passara a noite com alguma mulher. O camareiro-mor confirmou a hipótese quando o criado apareceu na antecâmara do rei. Pedro ainda dormia em seu quarto. – Ele está com aquela desenhista – acrescentou o homem.

Lobato sentiu como se um raio o atingisse. – Q-quem? – murmurou. – Ora, D. Estêvão – disse o outro –, nosso rei não deixa escapar nenhuma mulher bonita… Se a querias, demoraste muito! Ou será que ele roubou o que já era teu?

Antes que o comentário abusado ficasse ainda mais maldoso, Lobato sumiu dali.

Finalmente chegara o momento que tanto temia: Peres e Pedro juntos, como previra havia tantos anos.

Mas, ao contrário do que esperava, não teria sangue frio suficiente para assistir, impassível, à felicidade do novo casal. Haveria outras noites juntos, talvez a jovem gerasse algum bastardo real…

Movido pelo ciúme e pela tristeza, Lobato tomou sua decisão.

Seguindo um conselho do rei, Peres substituiu suas roupas masculinas por um vestido. Soltou os cabelos, novamente na altura de seus cotovelos, e penteou-os com capricho. Gostou do resultado, sentindo-se feminina e sedutora.

Do seu quarto, para onde se dirigira após ser despertada por Pedro, ela foi atrás de Lobato. Encontrou-o no aposento dele, preparando-se para alguma viagem. – Para onde irás? – perguntou, apreensiva.

O criado olhou-a de esguelha. O visual que ela escolhera para impressioná-lo não surtiu o efeito esperado. Ele escondeu a mágoa e se pôs a colocar algumas roupas em um saco de viagem. Estava levando apenas o mínimo necessário. – Aconteceu algum problema, Lobato? – Nenhum. Vou para minhas terras usar aqueles dias de descanso que D. Pedro já me ofereceu e que sempre recusei. – Já o avisaste sobre isso? – Dá o recado a ele, por gentileza.

Lobato terminou de arrumar sua bagagem, colocou-a nas costas e saiu.

Sem nenhuma palavra de despedida nem um olhar sequer.

Peres ia em seu encalço, porém reparou na arca antes abarrotada de desenhos sobre as pessoas que ele conhecia e os fatos a que assistira. Lobato rasgara-os um por um e, como as cinzas comprovavam, queimara a maioria desses pedaços na chama de uma vela na mesa.

Era como se rompesse em definitivo com a vida que tivera até ali.

Alarmada, Peres correu até Pedro. Tinha certeza de que Lobato planejava ir embora de Portugal.

Pedro tranquilizou-a, dizendo que manteria Lobato sob a vigilância discreta de alguns soldados, que o seguiriam sem que soubesse. – Talvez ele precise mesmo de uns dias de descanso – disse-lhe.

Só se preocupou de verdade em dezembro, quando foi informado de que o amigo vendera todas as suas propriedades. Despachou Telo de imediato para cuidar do assunto. A seguir, teve de mandar Álvaro para ajudá-lo, pois Lobato tinha desaparecido. Acharam-no somente no primeiro dia de janeiro, cruzando a fronteira com Castela.

Àquela altura, Pedro estava em Estremoz, sob os cuidados dos franciscanos. A doença consumia-o numa rapidez assustadora, o que a tornara pública. Os filhos e praticamente toda a corte mudaram-se para o vilarejo, além dos nobres e do clero vindos de outros lugares do reino.

Após ser informado sobre a doença, Lobato reassumiu suas funções ao lado do amigo, pediu-lhe perdão pelo sumiço e, ao descobrir a gravidez de Peres, passou a ignorá-la. Uma atitude que a feriu bastante.

Preso a uma cama devido à fraqueza e a dores cada vez piores, Pedro ditou a Lobato sua última carta para Branca, despedindo-se

e agradecendo por ela ter feito parte de sua vida. Depois, mandou que todas as cartas que recebera dela fossem queimadas, o mesmo destino que a senhora deveria dar às cartas dele. A bonita amizade entre os dois não deveria correr o risco de se tornar conhecida após a morte de um rei que não teria mais como proteger Branca dos inimigos.

Ele também pensou no futuro de suas mulheres do povo e dos filhos que tivera com elas. Como não pôde incluí-los em seu testamento, deixou sob a responsabilidade de Telo entregar uma soma em dinheiro a cada um. Já Branca deveria continuar recebendo ajuda financeira até a morte, que ocorreria quatro anos mais tarde.

Nos últimos dias de Pedro, os momentos de lucidez foram raros. Ele dormia a maior parte do tempo, graças aos remédios. Mal balbuciou algumas palavras para o filho Fernando, que foi visitá-lo com a filha bastarda, a primeira neta de Pedro, com o objetivo de conseguir o perdão para um personagem que finalmente retornaria a Portugal após uma fuga de anos por vários reinos europeus: Diogo Pacheco.

Aos 21 anos e pronto para ser coroado, Fernando estava convencido de que o antigo conselheiro de Afonso deveria ter seus títulos e bens restituídos como prova de boa vontade. Diogo passara a representar os interesses de Enrique de Trastâmara, que não demoraria a destronar o Cruel. Tê-los como aliados poderia ser muito vantajoso para o reino.

Pedro acabou cedendo. Com a filha no colo, Fernando saiu feliz e Peres quis trocar um olhar com Lobato, que mais uma vez a evitou. Naquele momento, somente a jovem e o criado cuidavam do rei em seu aposento.

Pedro aproveitou a oportunidade, chamando-os com um frágil aceno para que se aproximassem da cama. – A decisão que tomei agora… – sussurrou, com dificuldade para falar. Peres precisou se inclinar sobre ele para ouvi-lo. – Não anula o que planejamos… – Sim, eu sei – disse ela.

Lobato franziu as sobrancelhas, sem entender. Ainda não conhecia o plano.

Pedro mirou a jovem, a luz de seu espírito misturando-se às brumas. – Nunca me falaste teu nome – disse, como se tirasse o assunto do nada. – É Inês.

Ele quis sorrir, todo o sentido de sua vida em um único nome, mas a sonolência o levou a cerrar os olhos. Não voltaria mais a abri-los.

Morreria horas depois, em 18 de janeiro de 1367, aos 46 anos de idade.

Em seu último suspiro, o rei estava cercado por sua família, seus nobres mais próximos e importantes, e por representantes da Igreja. Quando a morte foi confirmada pelo médico, houve choro, lamentos e, para Fernando, o novo rei, reverências e efusivos cumprimentos.

No fundo do aposento, Lobato saiu antes que Telo e Álvaro reparassem. Peres foi a única que o seguiu.

Alcançou-o numa rua movimentada, andando apressado, sem nenhum manto que o protegesse do frio rigoroso daquele dia de inverno. – Aonde pensas que vais? – ela intimou. – Embora. – Vais a pé?

Ele estacou. – É, esqueci o cavalo – disse.

Ia dar meia-volta para buscá-lo. Peres segurou-o pelos pulsos. – Não podes ir embora – argumentou. – Preciso da tua ajuda para completar a vingança.

Lobato estreitou os olhos para analisá-la. – Ainda falta Diogo Pacheco – disse a jovem, sem disfarçar o ódio que alimentava contra aquele homem. – O perdão que D. Fernando conseguiu do pai… – Não foi sincero. O rei sabia que, com sua morte, cedo ou tarde Diogo aproveitaria para retornar a Portugal. Com o perdão, será mais cedo. – E qual é o gosto da vingança, Peres? – Ahn? – Viste a execução dos aliados de D. Diogo, lembras? Ficaste satisfeita?

Ela lhe apertou os pulsos, quase afundando neles as unhas. Não notava a própria reação. – O gosto é amargo, Lobato. O rei exagerou na crueldade para ser temido, sabes disso, mas a punição precisava existir, de uma forma ou de outra. Contudo, ainda há esse Diogo, que escapou por tempo demais. Ele tem de ser punido por seus crimes. – Esperas que eu o mate para ti. – Não. Quero apenas que me ajudes a cumprir o que deve ser feito. – Queres vingança ou justiça, afinal? – Será justiça para ti. E vingança para mim e Pedro. – E o que deve ser feito?

Peres libertou-o. Ergueu a mão e tocou-lhe o rosto com carinho. – Primeiro, volta a ser meu amigo. Senti tanto a tua falta…

Lobato também sentira a falta dela. E precisava de seu apoio mais do que nunca. – Ele morreu, Peres – contou. O desespero, enfim, vinha à tona. – Perdi meu irmão…

A jovem puxou-o para si, envolveu-o em seu carinho. Foi em seu ombro que ele extravasou o choro e o sofrimento, alheio à curiosidade das pessoas que passavam por perto.

Mais uma vez Portugal tinha um novo rei. No futuro, novos assassinatos, intrigas e disputas pelo poder jogariam irmão contra irmão, alianças seriam formadas e destruídas, a guerra sangraria o reino. A mesma trama perigosa de sempre, porém com personagens novos unindo-se aos antigos.

Uma história que Peres e Lobato não iriam presenciar.

Em março daquele mesmo ano, Diogo Pacheco retornou a Portugal como convidado do novo rei, Fernando. Recuperava o prestígio e todas as honras que Pedro, em sua vingança, lhe tirara.

Instalou-se em Coimbra, por onde andava a corte naqueles dias, e na primeira oportunidade foi até o Mosteiro de Alcobaça conhecer os dois magníficos túmulos, famosos pela arte ousada e por abrigar os protagonistas de uma trágica história de amor.

Uma manhã silenciosa e repleta de luz invadia as janelas altas e os vitrais da igreja que os monges não abriam para visitação pública desde o enterro de Pedro, ocorrido em janeiro. Para Diogo, obviamente, fizeram uma exceção. Ele ainda teria total liberdade para circular no local sem ser incomodado.

Ao ver os monstros que se contorciam sob o peso do túmulo de Inês, o nobre divertiu-se imaginando qual dos seis o retratava. A seguir, admirou a beleza da escultura que reproduzia a jovem tão sedutora, o colo perfeito e o restante do corpo que ele tanto desejara. – Uma pena que não tenhas sido minha – lamentou. E sorriu, satisfeito, ao concluir que Inês pagara o preço por rejeitá-lo.

O túmulo de Pedro, em frente ao dela, foi o próximo alvo de sua curiosidade. Diogo zombou da escultura na tampa, uma aparência elegante que o defunto ali instalado jamais conseguira ter em vida.

– Espero que estejas ardendo no inferno! – esbravejou entredentes.

Sem pressa, começou a contornar o túmulo, observando cada detalhe de uma de suas laterais. Ao encontrar a rosácea, prendeu a respiração. Nunca vira um trabalho tão excepcional. Contemplou numa determinada ordem as cenas esculpidas, releu-as de outra, identificou pessoas ali registradas, tentou adivinhar quem era a criatura alada… – Como tens passado, D. Diogo? – indagou alguém.

O nobre endireitou-se e, cínico, virou-se para conversar com quem o observava havia algum tempo. Lobato não mudara muito na última década. Somente alguns fios brancos na barba e nos cabelos revelavam que já passara dos quarenta anos. – Melhor do que tu, acredito – respondeu. – Eu soube que D. Fernando não te quis como criado na “casa” dele. – Recusei o convite, na verdade. – Mesmo? Pois fiquei tão sensibilizado com tua humilhação que ia te chamar para ser mais um dos meus criados. O que achas? – De trabalhar para ti? – E por que não? Sempre posso precisar de um garoto para entregar meus recados.

Lobato não respondeu, impassível, o que irritou Diogo. Queria vê-lo perder a paciência ao menos uma vez. – Contaram-me que estes túmulos foram criados por uma mulher – disse. – Não acreditei. Uma mulher não teria capacidade para tanto. Ainda mais uma rameira que, segundo me informaram, D. Pedro dividia contigo.

Nenhuma reação. Nada.

O criado fitava-o apenas, como se assistisse a uma provocação bastante costumeira. Diogo teria de ser mais apelativo. – Também não acreditei nisso. Primeiro, D. Pedro sempre foi muito… ahn… guloso com as mulheres dele. Não iria dividi-las

nem mesmo contigo. E, depois, sempre desconfiei da real natureza da tua amizade com ele. Eras tu que o dividias com a tal rameira, não?

Lobato ergueu uma sobrancelha, entediado. – Se queres me desafiar para um duelo, diz logo – avisou. – Não preferes tomar a iniciativa? – Se é o que desejas…

Ansioso, Diogo não esperou que ele desembainhasse a espada. Pegou a própria arma e, ágil como o excelente guerreiro que ainda era, avançou contra ele. Eliminaria com facilidade a última testemunha de seus crimes numa época que deveria ser esquecida para o bem de seus planos como futuro conselheiro do novo rei.

Depois, com o tempo, construiria para si uma imagem mais positiva, a de um nobre preocupado que cansara de avisar um irresponsável Pedro sobre os riscos que sua união com uma Castro poderia representar para o reino.

O bom dos mortos é que eles não podiam se defender, principalmente diante de uma geração seguinte que não vivenciara os fatos. Caso alguém, numa possibilidade bastante remota, quisesse contestar a versão de Diogo, não encontraria provas para apresentar.

Como diriam no futuro, “agora é tarde, Inês é morta”. Palavras que o nobre considerava especialmente deliciosas.

Para sua surpresa, o criado rebateu a ameaça com precisão. Jamais fora muito hábil em esgrima, mas, Diogo teve de admitir, melhorara bastante. Lobato defendeu-se de novo, ensaiou um golpe que não completou para enganá-lo, fez com que agisse com mais ênfase, driblou-o, quase lhe acertou uma estocada, defendeu-se mais uma vez. Distanciavam-se do túmulo.

Enganado por sua noção de superioridade, Diogo não registrou que o outro o forçava a atacar sem pausas, provocando-o para cansá-lo. Apenas sentiu, em algum segundo, a velocidade da luta

ficar mais intensa, o choque de lâmina contra lâmina ecoar mais forte pelas paredes, destruindo a paz daquele local sagrado.

Após rebater um golpe e por milésimos de segundos se livrar da espada adversária, Lobato deu um encontrão em Diogo e foi parar atrás dele. O velho conselheiro de Afonso girou, a muito custo conseguiu evitar o novo ataque.

Continuaram se movendo, o criado mais uma vez desviando uma estocada para longe, a agilidade dando-lhe vantagem para acertar com a mão livre um soco em Diogo. Ele quase foi derrubado, teve de retroceder.

Sob golpes incessantes, foi recuando, o túmulo de Pedro crescendo atrás de si. Em pânico, percebeu o óbvio.

Com um preparo físico melhor do que o seu, Lobato treinara muito à espera daquele duelo.

Numa tentativa desesperada de reverter a inevitável derrota, Diogo tentou investir em um ataque pesado. Truculento, o adversário contra-atacou, arrancou-lhe a espada e atingiu-o com um murro no queixo. Diogo cambaleou, o punho de Lobato continuou a feri-lo.

Ele caiu, perdeu a coragem e se viu esparramado ao lado da rosácea, o joelho direito do criado pressionando-lhe o peito para aprisioná-lo no chão. Para garantir que não se mexesse, a ponta da arma foi posicionada na lateral de seu corpo, de modo que um único movimento poderia trespassá-lo ao encontro do coração.

Diogo não conseguiu mover a cabeça quando Lobato abriu-lhe a boca com uma adaga, prendendo-lhe a língua com a lâmina e, ao mesmo tempo, ameaçando rasgar suas bochechas de dentro para fora.

Mata-me de vez, seu miserável!, pensou o assassino de Inês. Tremia, aterrorizado diante da morte grotesca à sua espera. – Por que achas que vou te matar? – perguntou o criado, com desprezo.

Seu interesse foi, então, desviado para uma terceira pessoa. Diogo girou o olhar para a mesma direção.

A alguma distância, havia uma bela mulher coberta por um longo manto branco, com um capuz ocultando-lhe os cabelos. Ela se afastou do túmulo de Inês, naquele instante surreal delicadamente sob a luminosidade do sol que vinha das janelas.

Confuso, pareceu a Diogo que a mulher saíra do calcário, um dos anjos de Inês transformado em carne, pele, ossos e sangue.

Ela mergulhou nas sombras que a separavam dos dois homens, alcançou o túmulo de Pedro. Parecia uma moura de tão morena. E trazia um cálice em suas mãos. – Esta é Inês – apresentou Lobato.

Para sua própria vergonha, o assassino chacoalhava de pavor, o fio da adaga provocando cortes superficiais no interior de sua boca, devido aos movimentos involuntários.

A mulher ajoelhou-se ao seu lado, derramou o conteúdo do cálice na lâmina da adaga e ficou acompanhando, com um meio-sorriso, enquanto o líquido viscoso escorria goela abaixo. Diogo engasgou-se, quis cuspi-lo, não conseguiu.

Somente quando se certificou de que o líquido faria efeito é que Lobato o libertou. Acompanhado pelo anjo vingador, foi até os pés do túmulo de Pedro.

Com dificuldade, Diogo tentou se erguer. Perdeu o equilíbrio e, de quatro, forçou o vômito. Cuspiu apenas o sangue dos cortes em sua boca, que limpou com as mãos. – Vós me envenenastes! – gritou, a fúria dando-lhe um pouco de dignidade.

Novamente quis se levantar. Apoiou-se na rosácea, manchando de vermelho a minúscula escultura de uma Inês decapitada. Tombou de novo. – O veneno não vai provocar tua morte – garantiu Lobato. – Ele apenas permanecerá no teu estômago até o teu final, corroendo-o

lentamente, provocando-te uma dor tamanha que nenhum medicamento conseguirá amenizar. Assim poderás sentir em ti mesmo, dia após dia, todo o sofrimento que provocaste nos outros. Desejo-te, portanto, uma existência muito longa. – Maldito! Vou te matar, criado incompetente! Arrancarei tuas tripas, quebrarei teus ossos um a um e…

Uma crise de tosse impediu-o de berrar suas promessas. Ia perseguir Lobato, destruiria sua reputação antes de torturá-lo até a morte.

Quanto ao anjo… Descobriria quem era e…

Uma pontada cortante no estômago lembrou-lhe da ameaça muda que o veneno representava. Diogo largou o corpo no chão, gemendo, a imagem de Inês em sua mente misturando-se ao anjo vingador que também se chamava Inês.

Não era mais o centro das atenções de seus carrascos. Lobato inclinava-se numa profunda reverência à escultura de Pedro, os olhos vermelhos pelo choro. – Está feito, meu senhor – murmurou.

Depois, foi até o túmulo de Inês e repetiu o mesmo gesto respeitoso. – Adeus, minha senhora.

Sumiria nas sombras, seguindo o anjo que guiava seu futuro.

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