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Capítulo 6

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Capítulo 7

Capítulo 7

6

Portugal, 1340 (dezessete anos antes)

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Semanas após a Batalha do Salado e mais uma vez cobrado pelo pai, Pedro teve de resolver sua pendência com Constança. Para ele, foi como cumprir uma obrigação, sem qualquer troca de carinho com uma mulher que não conseguia disfarçar o quanto o desprezava. Uma obrigação que precisaria levar adiante, pelo menos periodicamente, para que ela lhe desse filhos e, assim, cumprisse seu esperado papel de esposa.

Evitar Constança ao máximo tornou-se mais um motivo para o temperamento irrequieto de Pedro justificar sua eterna vontade de viver para cima e para baixo no reino. Mal parava muito tempo em um mesmo lugar.

Foi por culpa dessa movimentação incessante que só descobriu a presença da nova donzela na “casa” da esposa no final do ano, quando a família real se reuniu em Coimbra para as comemorações natalinas.

Inês de Castro estava de volta à corte portuguesa.

Inês saía da missa na catedral da Sé quando, sem qualquer sutileza, foi arrastada pelo cotovelo para detrás da primeira árvore do caminho. – És louca? – disse, aflito, o homem que a capturara. – E se D. Diogo ainda quiser se vingar de ti? Não posso te proteger o tempo todo! – Creio que não corro nenhum risco, senhor. Cheguei ao reino na primavera e, desde então, D. Diogo já me viu e me cumprimentou várias vezes. Se realmente quisesse se vingar, já teria feito.

As palavras não o convenceram. Pedro resmungou algo ininteligível, ainda preocupado. A jovem sorriu. Ele não mudara muito desde que o conhecera. Transformara-se em um adulto, é verdade, porém jamais deixaria de ser também um pouco criança. E daquelas bem arteiras.

Inês corou, lembrando que se esquecera de lhe fazer uma reverência. Num movimento que julgou elegante, inclinou a cabeça e dobrou pausadamente os joelhos. Ao se endireitar, viu, frustrada, que o rapaz não reparara no cumprimento, mais ocupado com os próprios pensamentos. – Por que vieste para cá? – ele perguntou. – D. Juan Alfonso acha que aqui terei mais oportunidades. – Por quê? Não há mais bons pretendentes para ti em Castela? – Achas mesmo que é só isso que uma mulher ambiciona? – Não sei. O que ambicionas, D. Inês?

Ela procurou caprichar na voz suave, erguendo os olhos e fixando-os nos dele, valorizando-o como o único que lhe interessava na face da Terra. Sempre funcionava para impressionar os homens caso sua beleza não fosse suficiente. – Ainda não descobri, senhor.

Ele contraiu os lábios. Não registrara a tentativa de sedução. – Então trata de descobrir logo. D. Diogo é perigoso e não quero tua morte na minha consciência.

Inês ia convidá-lo para um passeio desejando prolongar a conversa, mas o infante acrescentou que tomasse cuidado e sumiu atrás dos seus compromissos do dia.

Insegura, a jovem permaneceu no lugar. Como seduzir alguém que ainda a enxergava como uma menina de nove anos?

Tão logo Constança engravidou, Pedro viu-se livre por meses do compromisso de procurá-la. Só apareceu em Évora, para onde ela viajara, na época em que a criança viria ao mundo. Estava ansioso demais para conhecê-la.

Maria, sua menina, nasceu em 6 de abril de 1342, dois dias antes de o pai completar 22 anos. Quando finalmente pôde tê-la em seus braços, Pedro a muito custo segurou a emoção.

Deitada no leito em seu aposento, Constança espiou o bebê com raiva. A maioria das mulheres de sua “casa”, inclusive Inês, estava ao redor para paparicá-la. – Não é o menino que eu deveria ter gerado – disse Constança, azeda. Pedro compreendeu as entrelinhas. Para gerar outra criança, novamente ela teria de suportar a presença periódica do marido em seu leito. E essa certeza provocava-lhe nojo. – Maria será uma menina feia e gorda. A infeliz se parece contigo, senhor.

O comentário não gerou nenhum mal-estar entre as castelhanas, muito acostumadas a ouvir sua futura rainha reclamar dos modos rústicos do marido, da sua feiura e do excesso de peso, da falta de elegância e da mania de se enfiar no meio do povo como se fosse um qualquer. Pedro sentiu o olhar triste de Inês para o bebê e depois para ele. Era a única ali que ainda tinha bondade no coração. – D. Constança, se ousares desprezar minha filha – rosnou Pedro –, juro que te envio de presente ao meu primo Alfonso, teu

primeiro e inesquecível marido, para que ele a trancafie de novo em Toro. E, desta vez, que seja pela eternidade!

A esposa perdeu a cor do rosto. O infante nunca a ameaçara antes. E, até onde sabia, ele sempre cumpria suas promessas. Um silêncio profundo instalou-se no local.

Ainda com sua menina no colo, Pedro foi dar um passeio. Queria aproveitar cada segundo daquela adorável companhia.

O ano de 1343 foi triste e solitário para Inês. As cartas de Juan Alfonso, cobrando-lhe resultados junto a Pedro, pressionavam-na com uma frequência cada vez maior. Ela não sabia mais o que lhe responder. A verdade é que o infante visitava Constança apenas para ver a filha e, se por acaso encontrava Inês, limitava-se a cumprimentá-la e perguntar se ia bem de saúde.

Quanto a seu casamento, a situação piorara. Nas raras oportunidades em que, por obrigação, passava a noite com a esposa, ele simplesmente não a tocava, como ela mesma, aliviada, fazia questão de confidenciar na manhã seguinte às suas damas mais próximas que, obviamente, espalhavam para as demais exigindo segredo sobre o assunto.

Para Inês, era impossível entender por que Constança desdenhava tanto o marido. Pedro era gentil e alegre, preocupava-se com todos, vivia para cuidar do reino. Sabia ser um bom pai, muito melhor do que o próprio pai de Inês, alguém que ela, aliás, mal conhecia nem teria oportunidade de conhecer melhor. O Senhor da Guerra morreria naquele mesmo ano, vítima de uma epidemia durante um cerco contra os muçulmanos em Algeciras.

Sentindo-se imensamente sozinha em Portugal, a jovem sonhava em ir para a Galícia, onde passara os primeiros anos de vida ao lado da mãe. Lembrava-se de brincar ao ar livre, de correr

pelos campos, de ser apenas uma criança que jamais imaginaria ser a escolhida para roubar o coração de um príncipe.

Quanto mais descobria sobre Pedro, mais a missão que Juan Alfonso lhe impusera tornava-se repulsiva. Alguém tão simples e generoso como o infante não merecia ser manipulado segundo a vontade de poderosos que pensavam apenas neles mesmos.

Em janeiro do ano seguinte, o fato de Constança ainda não ter gerado um herdeiro afligia todo o reino. Bastante preocupado com o futuro de sua dinastia, Afonso promoveu semanas mais tarde, no paço que a mãe Isabel mandara construir junto ao Mosteiro de Santa Clara, uma cerimônia em que seus nobres ou representantes, vindos de todos os pontos de Portugal, juraram obediência à neta Maria no caso de Pedro morrer sem deixar um filho legítimo do sexo masculino.

Foi o mordomo-mor de Constança, Rui Garcia do Casal, quem conduziu a solenidade. Cada um dos súditos beijou a mão da criança, muito risonha no colo do avô, e, a seguir, pronunciou o juramento.

Orgulhoso da filha, Pedro não escondia a felicidade. Para Constança, aquele reconhecimento era a humilhação pública de sua suposta incapacidade de gerar filhos. Não era culpa dela, como cuspira entre-dentes pela manhã em seu aposento, quando Inês e outras damas foram auxiliá-la com a toalete. O único responsável era Pedro, que se negava a agir como marido.

Pela primeira e única vez, Inês pensara alto demais. – Se agisses como esposa, senhora, talvez teu marido apreciasse tua companhia – dissera, atraindo automaticamente a ira de Constança. – E o que entendes de casamento, galega tola? – disparara ela, as sobrancelhas unidas. – És uma solteirona que envelhecerá sozinha porque acreditas que nenhum pretendente é bom o suficiente para ti. Ou, por acaso, estarias de olho no meu marido?

Inês recuara, humilde, fitando o chão. – Perdoa-me, senhora. Eu só queria ajudar… – Dispenso teus conselhos. Agora sai daqui e não ouses aparecer tão cedo na minha frente!

Xingando a si mesma, a jovem obedecera. Durante a cerimônia, manteve-se fora do campo de visão de Constança.

Pedro, no entanto, logo a avistou. Sorriu-lhe, demonstrando sem querer a cumplicidade que os unia. Constança, que acompanhava suas reações, seguiu-lhe o olhar. Uma carranca distorceu-lhe o rosto por segundos ao descobrir Inês parcialmente escondida atrás de um grupo de damas. Enxergou nela a rival que poderia lhe tirar o marido. Não que se preocupasse com as mulheres do povo com quem Pedro se relacionava, pois elas não representavam nenhuma ameaça. Mas a galega de sangue nobre, uma Castro, era outra história.

Naquele instante, antes que Constança reassumisse sua pose de futura rainha orgulhosa e inatingível, Inês sentiu um aperto no coração. Perderia qualquer chance de se aproximar de Pedro. E isso, estranhamente, doía muito mais do que o fracasso de uma missão e o consequente desprezo que receberia de Juan Alfonso.

Na festa que se seguiu à cerimônia, Pedro estranhou a atitude da esposa. Ela fez questão de ficar o tempo todo ao seu lado com a filha. Ao final da noite, quando ele pretendia escapulir para continuar comemorando em alguma taberna, Constança pediu-lhe que o ajudasse a colocar a menina para dormir.

Que mudança de atitude, afinal, era aquela? Apenas encenação diante dos sogros que a adoravam? Desconfiado, Pedro fez-lhe a vontade.

Quando Maria pegou no sono, eles a deixaram no quarto sob a vigilância da aia e, no corredor, foram conversando sobre a criança

enquanto caminhavam sem um destino específico. Constança confidenciou-lhe que, na opinião dela, a filha deveria se casar com o herdeiro da coroa inglesa, mas estava pensando em outras possibilidades, pois Afonso sonhava realizar aquela aliança com outra noiva, sua filha caçula Leonor. – Maria ainda é uma criança! – rebateu o rapaz. – Sê realista, senhor – disse a esposa, compreensiva. – Nossa menina terá de cumprir o papel dela como infanta e realizar um casamento vantajoso para o reino.

Sem perceber, ele sorriu ao ouvir o pronome possessivo. Constança nunca se referira a Maria como “nossa”. Ela retribuiu o sorriso. Era uma jovem linda, que conhecia com exatidão o efeito de sua beleza sobre os homens.

Ela interrompeu o passo e se virou para ele, obrigando-o a parar. Pedro admirou-lhe os olhos escuros, os cabelos que ela soltara após deixar a filha no berço. Eram ondulados, castanho-escuros, e caíam rebeldes até a cintura. – Nosso casamento não começou bem e… – ela murmurou, insegura. – Fui imatura, tola. O que quero dizer, meu senhor, é que temos uma filha e que, por ela, precisamos nos entender.

O que a movia naquele momento? Alguma vontade repentina de torná-lo um aliado? Ou, talvez, um amigo…

O rapaz sempre imaginava se Constança tinha conhecimento dos planos do pai para se livrar de Branca. Provavelmente não. Também fora mais uma peça do jogo de Juan Manuel. – Po-podemos tentar, senhora.

Numa ousadia incomum para uma esposa tão formal, ela se aproximou do marido e se pôs na ponta dos pés para lhe alcançar os lábios. Beijou-os com suavidade. Atônito, Pedro não reagiu, duvidando que aquela fosse a mesma Constança com quem tivera de se casar. – Vem para o meu quarto – ela convidou, carinhosa.

Para a alegria de Afonso e de Portugal inteiro, o herdeiro de Pedro, Fernando, nasceu em 31 de outubro de 1345, em Lisboa. Tinha os traços da mãe e cativara-a de imediato. Aquela, sim, era a criança perfeita, digna de ter sido gerada por Constança Manuel.

Pedro ressentiu-se de sua postura, mas preferiu não arrumar confusão. Estavam se entendendo na medida do possível, uma amizade ainda muito tênue. Num grande esforço para que o casamento desse certo, ele se afastara de suas mulheres, Sancha e Violante, e procurava passar mais tempo com a esposa e os filhos legítimos.

Cinco meses após o nascimento de Fernando, Pedro teve de largar tudo e, com Lobato, correr em segredo para Castela, levando com eles um médico judeu de extrema confiança. Branca estava gravemente doente e levou semanas para recuperar a saúde.

Culpando-se por não tê-la visitado no ano anterior, o infante prometeu a si mesmo que a veria todos os anos. Arrumaria uma casa na floresta, algum lugar seguro em que pudessem conversar à vontade. Para que ninguém desconfiasse de suas viagens, usaria a desculpa de sempre: longas caçadas em lugares remotos.

De volta a Coimbra, levou uma bronca homérica do pai por demorar tanto numa caçada e se esquecer da esposa e dos filhos. Disposto a passar um mês inteiro com Constança para compensar a ausência, o rapaz cancelou uma reunião em Lisboa na semana seguinte. Lobato, exausto da viagem a Castela, agradeceu aos céus pela oportunidade de descanso. Como a rainha Beatriz também estava em Coimbra, ele aproveitaria a companhia da esposa e de suas duas meninas, com quem mal convivera nos últimos meses.

Constança não se mostrou nada feliz com a proximidade do marido, que a engravidara antes da viagem. Talvez estivesse com

raiva por quase emendar uma gestação na outra, mas de qualquer forma isso não fez muita diferença. Pedro preferia investir seu tempo livre em Maria e Fernando a se esforçar para entender a esposa.

Inês, por outro lado, estava sempre por perto. Parecia viver em um mundo à parte, isolada na medida do possível da rotina na “casa” de Constança. Não gostavam dela, e a jovem, como Pedro, também não gostava deles.

Numa tarde quente, o rapaz resolveu passar pela cozinha, atraído pelo aroma irresistível de pães assando no forno. Chegou logo atrás de Inês, igualmente interessada na primeira remessa que a cozinheira acabava de depositar numa mesa.

Agindo em conjunto, os dois jovens apoderaram-se dos mais crocantes e escapuliram para o horto, nos fundos do paço. Ainda riam quando se sentaram sob a sombra de uma árvore para lanchar. Pedro descobria alguém tão guloso e tão interessado em pratos saborosos quanto ele. – Ah, eu me esqueci de pegar um queijo! – disse, com uma careta. – Vou buscar. – Não é necessário, senhor – garantiu a garota. Sorrindo, tirou do bolso do vestido exatamente o que precisavam. – E ainda peguei uma faca! – Sempre pensas em tudo? – Eu diria que já me esqueci antes do queijo. E da faca também…

Voltaram a rir. – Sempre assaltas a cozinha, D. Inês? – Sempre que não consigo resistir a algum aroma delicioso. As cozinheiras já me conhecem e fazem de conta que não estou ali. – Elas sempre enchem meus bolsos de comida. – És o infante. E elas só querem te ver feliz.

Olharam um para o outro. Ela estremeceu de leve, ele continuou a enxergá-la como uma criança vulnerável.

– Vamos abrir esses pães e recheá-los com o queijo antes que esfriem – sugeriu a jovem. – O calor derrete o queijo e… – O sabor fica ainda melhor. É o que sempre faço.

Deliciaram-se com os pães, lembraram receitas que adoravam ou detestavam, ela lhe passou alguns segredos de culinária que aprendera na cozinha em Albuquerque, ele lhe contou sobre o preparo de peixes e o melhor tempero para acompanhá-los. – Sabes cozinhar, senhora? – Um pouco. Prefiro cozinhar a costurar ou bordar. Cá entre nós, meus bordados são horríveis…

Riram, mudaram de assunto, falaram sobre crianças, Inês lembrou sua infância, Pedro, a dele. O rapaz reparou que ela sempre usava uma luva só. Perguntou o motivo, ela riu e confessou que adorava o acessório, mas que vivia se esquecendo de colocar a segunda luva e sempre a largava sem perceber em algum lugar.

Quando deram por si, estavam juntos havia mais de duas horas. Encabulado, ele pediu desculpas por lhe tomar tanto tempo. Ela, adorável, agradeceu a conversa animada e, após uma rápida reverência, tomou a direção da cozinha. Ia devolver a faca.

Pedro permaneceu no lugar, tentando entender por que se sentia tão à vontade com Inês.

No final daquela mesma tarde, Constança finalmente encontrou quem procurava em um dos corredores próximos a seu quarto. Eram tão raras as ocasiões em que o via… Ela ajeitou o vestido, deu atenção especial ao decote, que desejou ser mais ousado, confirmou a silhueta ainda esbelta, arrumou os fios de seus cabelos presos em um coque e foi à luta. Aquele rapaz maravilhoso não poderia lhe escapar por muito mais tempo. – D. Estêvão? – chamou.

Ao ouvi-la, Lobato interrompeu seu ritmo sempre apressado, girou nos calcanhares e virou-se para ela. Fez-lhe uma reverência. – Sim, minha senhora?

Constança aproximou-se, o coração batendo forte, mais perto do que seria aconselhável para uma mulher casada. Instintivamente ele recuou. Ela imaginou a sensação de se deixar envolver por aquele corpo grande e flexível, de músculos bem definidos, o prazer de ser tocada por alguém que a atraía. Respirou fundo, ansiosa por esquecer o asco que Pedro ainda lhe inspirava e experimentar a paixão que nunca pudera conhecer. – Eu soube que desenhas muito bem. – Acho que não lhe contaram a verdade, senhora – disse ele, envergonhado. – Meus desenhos são muito ruins.

Sorria, o que o deixava ainda mais charmoso. Seria tudo tão perfeito se ele fosse seu marido e não um estúpido que ela precisava suportar com um sorriso, como se gostasse dele. Todo aquele fingimento esgotava Constança.

Para piorar, vieram a nova gravidez e seus riscos. O lado positivo é que assegurava uma reputação de esposa fértil. Além disso, se Lobato cedesse, não haveria nenhum risco de gerar uma criança bastarda. E o rapaz ia ceder, tinha certeza, apesar de sua fama de marido fiel, algo muito difícil de se ver entre os nobres casados. Afinal, ele era homem e ela aprendera a usar seu poder de sedução. – É que deixei há pouco D. Fernando dormindo no berço – disse Constança. – E ele está tão meigo, o rostinho sereno, os olhos cerrados… Eu gostaria tanto de registrar esse momento! – Não sei se o desenho teria qualidade e… – Oh, por favor, D. Estêvão! Serias capaz de recusar o pedido de uma mãe? – Eu… ahn… – Será um presente nosso para D. Pedro. O que achas?

Lobato mordiscou os lábios.

– Melhor não mostrar para ele – disse, inseguro. – Isso significa que farás o desenho?

Ele assentiu. – Só preciso buscar o caderno e a caixa de giz de carvão. – Quanta gentileza, senhor! Vai correndo, pois tenho medo que o bebê acorde…

Enquanto o rapaz ia atrás do material, a jovem rumou com pressa para o quarto de Fernando. Dispensou a aia e conferiu o sono pesado do filho. Nem mesmo um tremor de terra, como ocorrera em Lisboa dois anos antes, seria capaz de despertá-lo.

Assim que Lobato apareceu, ela esperou que ele começasse a desenhar e, com o coração aos pulos, discretamente trancou a porta.

Era agora ou nunca.

Anexo ao aposento existia outro, menor, carregado de arcas e brinquedos. Constança dirigiu-se para lá e, após alguns segundos, chamou o rapaz. Solícito, ele foi até ela, acreditando que a ajudaria a pegar algum objeto. Ainda não se dera conta de que não havia mais nenhum adulto por perto.

A jovem empurrou-o contra uma parede, espremendo seu corpo junto ao dele. Teria lhe dado um beijo ardente se fosse possível alcançar seus lábios. Ele era ainda mais alto do que Pedro. – Beija-me… – mandou Constança.

O rapaz fechou os olhos, não ousou se mexer. – Terei de fazer tudo sozinha? – reclamou ela. – Senhora, por favor, sou casado! – Nós dois temos de suportar casamentos que nos foram impostos. Por que não podemos satisfazer nossas vontades? – Mas D. Pedro… – Ele tem outras mulheres. E eu quero ficar contigo agora, antes que meu filho acorde e eu precise voltar para meu papel de mãe e esposa exemplar.

– D. Pedro é meu melhor amigo. Não vou trair a confiança dele. – Não sou bonita para ti, é isso? Vamos, D. Estêvão, olha para mim! É uma ordem!

Ele, porém, apertou ainda mais as pálpebras. Como era teimoso!

Aflita com a demora e temendo ser descoberta, Constança acelerou o processo. Abriu a camisa do criado, percorreu com os lábios o peito em que sonhara tantas vezes se aninhar, deslizou as mãos pelo corpo masculino. Lobato não conseguia mais resistir. Estava cedendo.

Alguém pigarreou.

Constança pulou para longe, ajeitou automaticamente o vestido e viu quem os observava.

Inês.

Ela estivera o tempo todo ali, arrumando alguns brinquedos atrás de uma tapeçaria. Lobato, de olhos bem abertos, estava em pânico por ter sido descoberto naquela situação comprometedora. – Perdoa-me por interromper, senhora – disse a galega, com sua cara de sonsa. – Já arrumei os brinquedos de D. Fernando, como mandaste. – Dei essa ordem há horas – rosnou a outra jovem. – Por que só a cumpriste agora? Aliás, onde estiveste a tarde inteira?

Inês corou, mas não perdeu a vantagem. – Posso me retirar? – pediu. – Deves!

Constança ia ameaçá-la, na tentativa de impedir que revelasse a Pedro ou a qualquer um o que presenciara. A galega foi mais rápida. – A caminho daqui – disse –, encontrei D. Pedro. Ele está à procura de D. Estêvão.

Era a deixa para o criado desaparecer dali. Sem pedir licença à futura rainha, ele retornou apressado até o quarto do bebê, recolheu o material de desenho, destrancou a porta e saiu.

– Tens minha palavra de que nada do que vi e ouvi sairá daqui – disse Inês, surpreendendo Constança. – Posso ser uma solteirona que envelhecerá sozinha por não considerar nenhum pretendente bom o suficiente, mas posso imaginar como deve ser horrível para uma mulher suportar um marido que detesta e desejar o amor de outro homem que não pode ter.

Após uma reverência, a galega deixou o local. Sozinha, a esposa de Pedro caiu de joelhos, chorando, frustrada e cheia de raiva.

Como Inês esperava, Lobato estava a vários metros de distância, ainda no corredor. Parara a fuga para fechar a camisa, respirar e pôr suas roupas em ordem. – Muito obrigado, senhora – disse ao vê-la. – Se não estivesses ali, eu… E depois eu seria torturado por minha consciência, não poderia mais encarar D. Pedro e… – Contarás a ele? – Não. Nunca. Nem a ele nem a ninguém. E de agora em diante tomarei todo o cuidado para não entrar em armadilhas semelhantes. – Não creio que ela tente de novo. É só uma mulher infeliz, D. Estêvão. – E bastante egoísta também. Ela quase destruiu minha vida. – Prometi a ela que o ocorrido será um segredo.

Ele endossou a decisão com um movimento de cabeça. Depois, pediu licença e foi retomar suas tarefas.

Inês pensou na tarde inocente que experimentara ao lado de Pedro um pouco antes, um momento em que simplesmente fora ela mesma, sem qualquer tática de sedução. Se não fosse por ele, se não o tivesse encontrado na cozinha, se não passassem mais de duas horas conversando, ela não se atrasaria para a arrumação dos

brinquedos. Terminaria antes da chegada de Constança ao quarto do filho, Lobato cairia em tentação e ninguém estaria lá para impedi-los.

No fundo, a confiança de Pedro na esposa e em seu melhor amigo não fora quebrada graças ao aroma irresistível de um punhado de pães no forno. Curioso como detalhes podiam mudar o futuro…

Nos dias que passou em Coimbra, Pedro sempre dava um jeito de conversar com Inês. Gostava cada vez mais dela, de seu coração bondoso, de sua visão sobre o mundo. Como ele, a garota também se preocupava com o povo e conseguia enxergar além dos interesses dos nobres.

Às vezes, o infante aproveitava para saber a opinião dela sobre algum assunto, da mesma forma que agia com Lobato, Álvaro e o mais novo de seus amigos, Telo. O garoto crescera e tornara-se um rapaz muito bem relacionado, o político nato que parecia conhecer todo mundo.

No verão, após visitar Branca em Castela, Pedro foi conhecer de perto o trabalho de amparo aos doentes e aos pobres, realizado pelos hospitalários. Junto com Lobato, Telo e Álvaro, foi hóspede do prior Pereira, que os levou a vários vilarejos no Alentejo.

Retornaram em setembro a Coimbra, o infante remoendo-se de saudades de Inês. Constança, na etapa final da gestação, andava insuportável. Fernando já aprendera a engatinhar, atordoando as aias com sua velocidade, e Maria, muito precoce, aprendia com a avó Beatriz as primeiras letras. Os bastardos de Pedro, filhos de Sancha e Violante, também estavam ótimos.

Tudo se encaminhava bem, sem sobressaltos ou problemas, até que, no final do mês, a filha caçula de Lobato faleceu, vítima de

uma infecção de ouvido. A esposa dele, que sofrera dois abortos espontâneos nos últimos anos, chorou a morte tão precoce, mas a aceitou com resignação. Lobato, no entanto, ficou transtornado. Não se alimentava, não conseguia dormir. Pedro quis dispensá-lo do trabalho para que se recolhesse a suas terras com a família durante o tempo necessário de luto, porém o criado se recusou a partir. Tinha de manter a mente ocupada, justificou.

Para a surpresa de Pedro, Inês era a única que Lobato parecia escutar. E ainda se forçava a engolir algum alimento quando ela lhe enviava uma serva com as refeições.

Enciumado, o infante arrastou-o para uma pescaria no rio Mondego, numa manhã de outubro quase tão negra quanto a noite. – Tu a amas? – Foi direto ao ponto antes mesmo que o criado colocasse a isca no anzol. – Quem, senhor?

Olheiras escuras afundavam o olhar esverdeado de Lobato, conferindo-lhe um aspecto doentio. – D. Inês de Castro, ora! – Ah, ela? Não, senhor. – Tens certeza? – Tenho. – Mas ela te ama. – Não ama, senhor. – Ela se preocupa contigo.

O criado contemplou o rio diante deles, as águas crispadas graças à turbulência do vento. Acima de suas cabeças, nuvens negras devoravam o céu. – A tempestade será devastadora – avisou. – Eu sei – resmungou Pedro, impaciente. – E quanto a D. Inês? – O que tem ela, senhor? – Tu a amas? – D. Telo é apaixonado por ela, D. Diogo a cobiça e eu…

– D. Diogo? – repetiu Pedro, furioso. – Aquele canalha que se atreva a tocar nela para ver só o que lhe acontece! – Ele não é o único que a cobiça. – Não?! – D. Inês é uma mulher bonita. É natural que atraia vários interessados. – Mas ela é só uma criança!

Lobato encarou-o, ameaçando sorrir. Se não estivesse tão bravo, Pedro ficaria feliz em vê-lo reagir a algum assunto pela primeira vez em dias. – D. Inês cresceu, senhor. Repara melhor nela quando a encontrar. – Tu a amas ou não? – Não amo, senhor. – Tens certeza? – Tenho. – E quem amas, então? – Minha família. – Refiro-me a uma mulher. Por quem és apaixonado? – Por ninguém. Nunca houve e nunca haverá paixões avassaladoras no meu destino, ao contrário do teu. – E por que não? – Porque não me deixo guiar pela emoção. – Serás um velho ranzinza! – Pedro deu risada. – Acho que já sou um, senhor. – Sobre D. Inês, tu… – A única pessoa que a ama de verdade está parada na minha frente. – Eu?! Não, estás enganado. – E D. Inês é louca por essa pessoa.

O comentário perturbou Pedro. Não, a jovem não podia amá-lo. E ele… Como pudera permitir que sua amizade por ela se transformasse em um sentimento mais profundo?

– Como consegues saber essas coisas? – perguntou. – Porque não sou cego, senhor. Que tal voltarmos ao paço? A tempestade está prestes a desabar.

E ela veio, alagou ruas e destruiu casas em Coimbra. Em seu rastro, trouxe manhãs cinzentas e uma decisão que custaria a Pedro muito sofrimento.

Pedro jamais aprenderia a ser alguém sutil. Mais uma vez ele surpreendeu Inês saindo da missa e puxou-a pelo cotovelo até se colocarem atrás da árvore mais próxima. – Senhora, sei que… não é da… da… da minha conta, mas… por que te… preocupas tan-tanto com… D. Estêvão?

A jovem sentiu um friozinho gostoso no estômago. Ele estava com ciúme! E também tão desconfortável em fazer aquela pergunta que gaguejava, o que raramente acontecia quando conversavam. – Porque ele é uma pessoa decente, senhor. Merece nossa atenção. – Só por isso? – E por que mais seria? – Tu o amas?

Amo a ti!, ela quis gritar. Deteve-se, com medo de quebrar a análise atenta de que era alvo. Pedro corou, finalmente enxergando-a como uma mulher adulta. Soltou-lhe o cotovelo, ergueu a mão, seus dedos contornaram os olhos de Inês, o nariz, os lábios. Pararam no queixo. – És linda… – sussurrou.

Com as pernas bambas de emoção, ela apoiou as costas contra o tronco da árvore. O rapaz ficou ainda mais próximo, sua respiração misturando-se à dela. Iria beijá-la… – D. Pedro? – disse uma terceira pessoa.

O sacerdote Gonçalo, confessor de Constança, descobrira-os. O rapaz afastou-se, sem esconder a culpa. Morta de vergonha, Inês virou-se para o recém-chegado. – Senhor, acredito que tua esposa esteja à tua espera – disse ele, lançando-lhes um olhar reprovador.

A jovem pediu licença e, o mais dignamente que pôde, foi para longe. Lágrimas embaralhavam-lhe a visão, a felicidade ocupando cada pedacinho de sua existência.

Pressentia, sentia, sabia, confirmava e reconfirmava. Pedro amava-a.

Gonçalo não disse mais nada, apostando na ação da consciência pesada de Pedro. Que o infante tivesse mulheres longe da corte, ainda era possível fazer vista grossa. Mas humilhar Constança ao assediar uma das donzelas da “casa” dela, debaixo do nariz de todos, era inadmissível.

O rapaz deu meia-volta e foi para o paço. O ciúme dava-lhe sossego. Inês não amava Lobato nem ele tampouco lhe nutria paixão. Era certo que dedicava à jovem apenas a mesma admiração que tinha por Branca, respeitando-a como sua senhora, a companheira de seu senhor. Pedro sorriu. O criado sempre estava um passo à frente, antevendo situações que ainda não eram claras para o infante.

Também não precisava se preocupar com a paixonite de Telo. Para ele, Inês era a musa, a mulher inatingível, fonte de inspiração para cantigas de amor que nunca cantava para ninguém. A jovem tratava-o como se fosse um irmãozinho caçula, com a mesma atenção maternal que dirigia a Álvaro, sempre atrás do irmão mais velho para obrigá-lo a tomar o remédio contra sua rinite crônica.

Sim, os três amavam Inês, cada um à sua maneira. E Pedro entendeu o que vinha sentindo havia tempos, desde que o aroma

de um punhado de pães no forno o levara para uma tarde inocente ao lado de Inês.

Sobrara para ele a paixão avassaladora que Lobato temia para o próprio destino. Não. Era mais do que isso. Sobrara-lhe o amor verdadeiro, o mais intenso que existe no universo, capaz de quebrar encantamentos e atrair a inveja dos deuses. Exatamente como previra a bruxa.

Mergulharia nesse sentimento de cabeça, sem pesar consequências, ávido pela vertigem de se saber amado, ardendo pelo desejo de ter Inês apenas para si, de acordar abraçado a ela todas as manhãs, de se perder em seu sorriso, nas suas palavras, em seus pensamentos. Mas… E se ela não o amasse?

Torturado pela possibilidade, não conseguiu mais disfarçar o interesse pela jovem toda vez que a via, mesmo de longe. Não escondeu que preferia ficar conversando com ela e somente com ela nas noites de festa na corte. Não notou os comentários maldosos às suas costas, os olhares furiosos de Afonso e Beatriz, o ultraje mudo que minava Constança.

No dia 11 de novembro, ela entrou em trabalho de parto. Seu menino nasceu por volta da meia-noite e recebeu o nome de Luís.

Assim que Pedro foi conhecê-lo no quarto da esposa, soube da novidade pela própria. Por sugestão dela, Inês e Diogo seriam os padrinhos da criança. Era uma estratégia brilhante para definitivamente afastar a jovem galega. Ao se tornar a mãe espiritual de um filho de Pedro, ela criava laços de parentesco com o rapaz diante da Igreja. Qualquer relação entre os dois, a partir daquele momento, seria considerada incestuosa.

Constança ordenou a todas as mulheres presentes em seu quarto, inclusive Inês, que se retirassem. Foi obedecida de imediato. O marido deixou o pequeno Luís no berço e, em pé, aguardou o que viria. – Devias me agradecer e não exibir esta cara zangada para mim – disse a esposa.

Estava na cama com as costas apoiadas em travesseiros junto à cabeceira, pálida e abatida devido ao esforço do parto, mas já preparada pelas aias para se exibir na melhor forma possível diante do pai de seu novo filho. Os cabelos estavam soltos e penteados, uma camisola limpa e perfumada substituíra a anterior, suja de sangue, suor e placenta. Constança fora banhada, os lençóis tinham sido trocados. Com exceção do bebê, nada parecia contar que um parto ocorrera havia pouco no local.

Constança era tão meticulosa e preocupada com aparência quanto Lobato. Mas, enquanto nele o primeiro adjetivo era um traço de sua personalidade e o segundo uma necessidade para camuflar suas origens de baixa nobreza, nela soavam como atitudes irritantes de quem desejava se mostrar superior. – Agradecer, senhora? – Estou te livrando da influência direta de D. Juan Alfonso de Albuquerque.

Pedro estreitou os olhos. Não pensara naquela possibilidade.

Consciente de que atingira uma questão delicada, Constança resolveu criar uma ferida no coração do marido e ainda se divertir cutucando-a com a unha. – Ela é uma Castro, meu querido. E foi mandada para cá pelo próprio D. Juan Alfonso para te seduzir e te manipular de acordo com a vontade daquele asqueroso inimigo do meu pai. – Não acredito. – Talvez queiras ler uma das cartas que ele periodicamente envia a Castro… Ela é tão descuidada com os pertences como és com os teus. Deve ser a única coisa que tem em comum contigo, pois o restante é tão falso… Cada atitude calculada minuciosamente com o único objetivo de te envolver. És tão ingênuo, senhor. Sempre foste e sempre serás. – Que… que… ca-ca-carta?

Sorrindo em triunfo, ela apontou para uma caixinha de madeira sobre uma mesa. De seu interior, as mãos trêmulas de Pedro

encontram as folhas dobradas, abriram-nas. Havia um texto escrito e assinado por Juan Alfonso, as cobranças por resultados sobre a missão de Inês em Portugal. E, por último, a recomendação para que a carta fosse queimada, o mesmo final que a jovem devia dar a outras semelhantes.

Com dificuldade, o rapaz segurou o ímpeto de trucidar as folhas. Dobrou-as antes de guardá-las em um dos bolsos da calça comprida. Não olhou para Constança. Saiu, passos firmes, porém ferido demais para confrontar aquela verdade com Inês.

O batismo de Luís foi realizado dias mais tarde na catedral da Sé, uma cerimônia em que Inês não conseguiu pronunciar direito suas palavras como madrinha. Pedro ignorava-a desde o nascimento da criança, fechado em ódio e mágoa. Lobato, a pessoa mais próxima a ele, não sabia o motivo e prometeu contar à jovem assim que descobrisse. Álvaro achava que havia mais naquela atitude do infante do que raiva por ganhar Inês como comadre e perdê-la como mulher. Telo, amuado, tentava se acostumar com a ideia de que era Pedro quem ela amava.

Padrinho do bebê, Diogo estava exultante pela oportunidade de dividir com Inês uma honra desejada por tantos fidalgos. Aproveitava cada instante para roçar seus dedos nas mãos da jovem e, em pé ao seu lado, contemplar de perto o famoso colo feminino. Colo de garça, como diziam. Um apelido que Inês detestava, pois não considerava exatamente um elogio ser conhecida por aquela parte do seu corpo e ainda comparada a uma ave. Tampouco gostava de sua pele tão clara, sensível a qualquer raio de sol mais potente que a castigava com vermelhidão e marcas indesejadas.

Mas nada daquilo, no momento, era importante. Pedro estava ali, porém longe dela, inacessível, desprezando-a. O amor que ela vislumbrara parecia não existir mais.

Vitoriosa, Constança apreciava seu dia de glória. Os sogros apoiavam-na, do mesmo modo que a maioria dos nobres presentes. Eles se apiedavam da triste sina da mulher casada com um homem que cometia adultério com a suposta amiga dela.

Arrasada, Inês suportou muito mal as semanas seguintes. Ouviu comentários que se referiam a ela como a Castro, a amante imoral do futuro rei que destruíra um casamento feliz, a galega sem-vergonha que traíra a confiança da esposa honrada, essa uma quase irmã que a acolhera de braços abertos quando chegara a Portugal. Descobriu que o apelido “colo de garça” podia ser um sinônimo para prostituta – segundo comentavam, aquela ave costuma se acasalar também fora do período de procriação. Vários nobres viraram-lhe a cara, um ou outro mais indignado xingava-a em voz baixa.

A situação tornou-se ainda mais insustentável quando Luís não resistiu a dois dias de febre alta. A perda abalou Pedro, acusado veladamente por muitos de querer a morte do filho para libertar Inês de sua condição de madrinha. Para ela, as acusações foram mais claras. Culpavam-na de enfeitiçar o infante, de envenenar o bebê, chamavam-na de bruxa.

Após o enterro do filho, Pedro resolveu desaparecer numa caçada rumo ao norte, apesar do frio intenso e da neve que cobria aquela parte do reino. Inês não titubeou. Precisava conversar com ele, apoiá-lo em um período tão doído. Arrumou um cavalo e disparou atrás do grupo de caça, que partira meia hora antes.

Alcançou-o com alguma dificuldade, após quase se perder na floresta. Ao descobri-la ao seu encalço, Pedro interrompeu a cavalgada e esperou. Lobato fez o mesmo e, como os outros homens do grupo hesitassem em continuar sem eles, sinalizou para que seguissem em frente. Iriam depois. – Devias ter mais respeito – disparou Pedro no instante em que a jovem parou a poucos metros de distância. – Acabei de enterrar meu filho.

Ela estranhou seus modos estúpidos. – Vim conversar contigo, senhor. Apoiar-te… – Mais uma das tuas atitudes dissimuladas, suponho. Não me enganas mais, senhora.

O que ele queria dizer? Inês fez menção de descer da montaria. Como o infante não se abalou, Lobato teve de desmontar e correu para ajudá-la. – Por favor, D. Pedro, vamos conversar – ela implorou.

Ele levou minutos para se decidir. Por fim, pulou da sela, mas não foi ao encontro da jovem. Permaneceu junto ao cavalo. – Deixa-nos a sós, D. Estêvão – disse a jovem.

O criado ia se afastar. Pedro impediu-o. – Tu ficas, D. Estêvão – ordenou.

Era a solução que encontrava para evitar um momento a sós com a garota. O que temia? Que ela o enfeitiçasse? – Por favor, D. Estêvão, vai – disse Inês. Estava ali para apoiar Pedro numa perda difícil e não para envolvê-lo numa cena de sedução. – Fica, D. Estêvão. – Não, ele vai! – Ele fica! – rosnou o infante.

Lobato, constrangido, não se moveu mais. – Por que estás me tratando como uma inimiga? – perguntou Inês. – Mereço uma explicação.

Pedro tirou do bolso algumas folhas dobradas, amassou-as para formar uma bola e arremessou-a aos pés da jovem. Ela sentiu um calafrio ao reconhecê-las. Como foram parar com o rapaz? Sempre queimava as cartas de Juan Alfonso, como ele mesmo exigia. Mas aquela… Sim, havia uma… Ficara na dúvida se a queimara… Como não a encontrara entre seus pertences, concluiu que tinha se livrado dela e se esqueceu do problema.

– Eu te amo, Pedro – murmurou Inês num impulso, o choro embargando-lhe a voz. Era a única explicação que realmente importava. – E te amarei até o fim do mundo.

Não conseguiu contar o quanto a tal missão a enojava e, mesmo se conseguisse, Pedro não acreditaria em sua sinceridade. Ele assumira uma expressão impassível. – Vamos embora, D. Estêvão – disse, após voltar para a sela. – Será uma longa caçada.

Lobato, porém, olhava apreensivo para Inês. – Senhor, antes vou acompanhá-la até Coimbra – avisou. – Eu te dei uma ordem, D. Estêvão. – Que eu já escutei. – Exijo ser obedecido. – Vou obedecer, senhor, mas antes levarei D. Inês a Coimbra. – Escuta, criado, sou o infante e… – Sei muito bem quem eu sou e quem tu és! Mas não vou deixar uma mulher sozinha na floresta e muito menos fazê-la cavalgar sozinha com tantos malfeitores espalhados por aí.

Pedro rangeu os dentes, engoliu o orgulho, esporeou a montaria e foi para sua caçada. Sabia que o criado estava com a razão. – Irás me contar o que houve, senhora, ou preferes que eu leia a carta? – disse Lobato, indicando a bola de papel.

Inês não aguentou mais. Abraçou-o, chorando desesperada.

Pedro passara a odiá-la.

Lobato reuniu-se ao grupo no segundo dia da caçada. Não falou nada sobre Inês. Ficou apenas rondando, à espera de uma chance para tocar no assunto.

A caçada, claro, foi um desastre. Pedro não tinha cabeça para se concentrar, Lobato não prestava atenção em nada e os demais

seguiam ordens desencontradas de dois rapazes que não estavam mais se entendendo.

Aumentando ainda mais a tensão entre todos, o inverno espantava a caça para longe e obrigava-os a avançar cada vez mais pela floresta. Naquele ritmo, a jornada infrutífera jamais terminaria. – Senhor, devíamos retornar a Coimbra – comentou o criado numa noite, sentando-se ao lado de Pedro, distante da fogueira que aquecia os outros homens. Nevara o dia inteiro, reforçando a cobertura branca sobre a maior parte da vegetação. – Por que sempre achas que és o dono da verdade? – encrespou-se o infante. – Foi apenas uma sugestão, senhor. Se desejas manter esta caçada, é o que será feito.

Lobato continuava a dar voltas, procurando a melhor maneira de forçá-lo a desabafar, a admitir que amava Inês loucamente, que não dera a ela nenhuma chance para se defender e ainda por cima agira como um covarde ao querer abandoná-la na floresta. Pedro, no entanto, morreria de vergonha se tivesse de revelar suas fraquezas. – Não ouviste a versão de D. Inês sobre os fatos – arriscou Lobato. Foi seu erro. – Cala-te!

Mas o criado não se calou. – Quem te entregou a carta, senhor? Aposto como foi D. Constança. – Não te metas nos meus assuntos particulares. – Preferes acreditar na filha de D. Juan Manuel a conversar com a mulher que salvou a vida de D. Branca? – Já te disse para… – D. Constança envenenou-te o coração. Ela é cruel, egoísta e… – Cuidado… Estás falando da minha esposa e mãe dos meus filhos.

– Uma esposa que te foi imposta e te despreza! – Chega!

Possesso, Pedro colocara-se em pé. O criado também se levantou. – Estás agindo como um tolo, senhor. – Como te atreves a…? – Porque sou o único amigo que tens com coragem de te falar essa verdade.

Um soco do infante atingiu-lhe o rosto. Lobato cambaleou para trás, quase perdeu o equilíbrio. Endireitou-se, tirou com as costas da mão parte do sangue que começava a lhe escorrer do nariz. – Esqueceste teu lugar? – vociferou Pedro. – Não, senhor. – Esqueceste que posso te matar por me faltares com o respeito? – Não, senhor. – Então some daqui antes que eu resolva te executar!

Àquela altura, o restante do grupo acompanhava, incrédulo, uma briga a que jamais imaginara assistir. O criado, irmão de criação e melhor amigo de Pedro, morreria transpassado pela espada que o infante tirava da bainha. Apesar do risco, ele insistia em enfrentá-lo. – Não vou permitir, senhor, que jogues tua felicidade fora porque a infeliz da tua esposa… – Mais uma palavra e te arranco a língua!

Lobato livrou-se da própria espada e, com as mãos nuas, deu um passo à frente. – É o único modo de me calar – desafiou.

Pedro desistiu da arma e resolveu usar os punhos. Os dois trocaram murros, arrancaram sangue um do outro. Mediram forças e teimosia. Nenhum dos espectadores interferiu.

Após um bom tempo, quando a agressão perdeu o motivo e os dois rapazes, esgotados, estavam caídos um ao lado do outro, Lobato recuperou o início da discussão.

– Senhor, devíamos retornar a Coimbra – sugeriu, esforçando-se para manter a voz firme e livre da dor que lhe faria companhia por dias.

Pedro teve de concordar. Insistir naquela caçada era mesmo inútil.

De volta ao paço, Lobato foi chamar o médico para Pedro e a seguir arrastou-se para o próprio quarto. Ao contrário do infante, que não quebrara nenhum osso, ele tinha fraturado duas costelas. Fora uma tortura suportar a viagem de regresso, a nevasca que os pegara no começo do trajeto e, acima de tudo, a vontade tentadora de abandonar a corte e viver para sempre muito longe de Portugal e de todos os seus problemas.

Lobato sorriu com tristeza, pensando nas intrigantes construções mouras que Pereira lhe dissera existirem em Granada, um dos lugares que o criado sempre sonhara conhecer. Sonhos tolos que nunca se realizariam.

Sem a ajuda de ninguém, ele trocou os curativos e reforçou a faixa que enrolara em si para lidar com as fraturas. Depois, bem devagar, deitou-se em sua cama, sentindo-se o mais solitário dos seres vivos. A esposa acompanhava Beatriz numa viagem a Lisboa. Não a veria tão cedo. Sua filha estava com elas, pois era criada pela rainha.

Antes mesmo de o sol nascer e após um sono reconfortante, o rapaz foi cumprir suas obrigações. Não tinha um cargo específico, mas era a pessoa que respondia a Pedro pela administração de sua vida, acima inclusive dos nobres oficialmente responsáveis por ela.

Lobato supervisionou o trabalho de todos que prestavam serviço à “casa” do infante, fez a conferência dos gastos, deu algumas sugestões ao porteiro que vigiava a porta da antecâmara e

alertou pela terceira vez o reposteiro-mor sobre a importância da manutenção da lanterna grande na entrada do paço, que andava negligenciada. À noite, foi conferir se Pedro estava bem.

Encontrou-o sentado na cama, folheando um livro que não lhe despertava nenhum interesse. – Pensei que tivesses ido embora para tuas terras – disse Pedro, surpreso por encontrá-lo trabalhando.

Desde a briga, Lobato não sentia vontade nenhuma de lhe dirigir a palavra, limitando-se ao mínimo indispensável. Trouxera-lhe uma caneca de chá, que depositou secamente numa mesa. Depois, recolheu sem nenhum cuidado os pratos sujos do jantar, esquecidos por alguma serva. Precisaria chamar a atenção dela logo pela manhã. – Por quanto tempo ficarás sem falar comigo? – resmungou o infante, cansado. Lobato lançou-lhe um olhar agressivo. – Se pensas que tua mudez me forçará a falar com a Castro, estás muito enganado! – Assim que o tempo melhorar, ela partirá para Albuquerque.

Pedro prendeu a respiração. A novidade ainda não tinha chegado até ele. – Melhor para mim! – disse, sem muita convicção. – É teu pai quem a manda ao exílio. – E por que ele faria isso? – Para que não possas mais retomar tua amante agora que ela não é mais tua comadre. – D. Inês nunca foi minha amante! – Não é o que ele e os outros acham. – Diz logo, D. Estêvão! O que mais queres me contar?

Zangado, Lobato devolveu os pratos à mesa, jogando-os de qualquer jeito. Um deles rachou ao meio. Como aquele cabeça-dura podia ser tão desinformado? – Não preciso te contar nada, senhor – cuspiu. Tinha ganas de sacudi-lo e arrastá-lo pelas orelhas até Inês. – Acredito que devas

saber como tratam uma mulher acusada de dormir com o marido de outra.

Sim, ele sabia. Pareceu gelar com a certeza dos insultos e das humilhações que a jovem galega sofria injustamente. Isso porque nem desconfiava que até poções e encantamentos tinham sido encomendados a feiticeiras por algumas damas de Constança com o objetivo de separar os supostos amantes.

Não havia mais nenhuma tarefa para cumprir ali. O criado deixou o quarto, sem notar que batia a porta com estrondo ao fechá-la atrás de si.

Quando as geadas incomuns que assolavam a cidade de Coimbra deram sinais de fraqueza, Inês arrumou suas arcas. Estava pronta para partir na comitiva que Álvaro organizara para levá-la. Sentiria muitas saudades de Portugal, de suas paisagens encantadoras, da impulsividade de seu povo, das cantorias alegres nas festas. Havia tanta musicalidade no ar… Era o que gostaria de levar daquele reino que aprendera a amar tanto quanto a Galícia.

Entristecida, percorreu os vários corredores do paço, aproveitando a fraca luminosidade da manhã de inverno para ver pela última vez cada detalhe do cenário. Passou na cozinha, sorriu e, sem escolher nenhuma direção específica, foi parar sob a copa da mesma árvore onde, numa tarde inesquecível, pudera conversar com Pedro sobre receitas e também infâncias que jamais se repetiriam. – Posso conseguir que permaneças em Portugal – disse uma voz atrás dela.

Inês voltou-se para o homem que a seguira, Diogo Pacheco. – Não creio, senhor, que possas decidir a questão – dispensou ela. – Subestimas minha influência neste reino, senhora. – Uma palavra tua e o rei reconsideraria meu exílio?

Ele preferiu ignorar o tom de zombaria que a jovem imprimira à pergunta. Avançou, sua sombra cobrindo-a por completo. – Podes apostar que sim. – E por que farias isso por mim? – Já sabes a resposta, não?

Ela quis recuar, ele a prendeu pelos pulsos. – Larga-me! – Basta me dares o que já deste ao infante. Assim, terás dois homens a te proteger. Ele publicamente e eu agindo nos bastidores…

Aquela proposta era repulsiva! Sem hesitar, Inês acertou a virilha de Diogo com uma joelhada possante. Ele ganiu de dor, libertando-a. – Cadela! – xingou entredentes.

Agarrou-a por trás, pelos cabelos, enquanto a jovem tentava escapar e, enfurecido, bateu a cabeça dela contra o tronco da árvore. Inês gritou, quis soltar-se, arranhá-lo. Ele a esmurrou na altura do abdômen e a largou no chão, onde pretendia chutá-la.

Foi impedido por Lobato, que veio correndo com a espada em punho para atacá-lo. Diogo rebateu o golpe com sua arma, ganhou vantagem sobre o rapaz que, ainda bastante machucado pela briga com Pedro, não podia resistir por muito tempo. Inês levantou-se, dolorida, apoiando-se na árvore. Tinha de buscar ajuda.

Mal deu alguns passos e Diogo desarmou o criado, lançando a espada dele para longe, e desferiu-lhe um murro no estômago, o que o derrubou com facilidade. Depois, sem pressa, encostou-lhe a ponta da lâmina contra o pescoço, prestes a executá-lo. – Não! – berrou Álvaro, a alguma distância.

Diogo refletiu melhor, adiando aquela morte para priorizar outra que considerava mais importante. Afinal, um Castro valia muito mais do que um nobre de segunda categoria. Com indisfarçável satisfação, recebeu o irmão mais velho de Inês para o duelo.

A jovem precisava impedir aquela tragédia. Apesar da dor, correu o mais rápido que pôde até o paço. Por sorte, encontrou quem procurava na cozinha, experimentando um ensopado que uma das cozinheiras preparava especialmente para ele. – Por favor, D. Pedro, vem comigo! – Inês pediu, puxando-o pela mão. – Tua testa… Estás sangrando! – ele disse, preocupado.

Acompanhou-a na corrida até o horto. No chão, Lobato ainda tentava se levantar sozinho, sem sucesso. As lâminas de Diogo e Álvaro continuavam a se bater, violentas, ambas ansiando destroçar seu adversário. – Parai já com isso! – gritou o infante.

A ordem não foi acatada. Pedro avançou contra os dois nobres. Teve de usar a própria espada para apartá-los. – O que houve aqui? – exigiu saber. – Um grande mal-entendido, senhor – adiantou-se Diogo. – D. Inês tropeçou na barra do vestido, caiu e bateu a cabeça numa pedra. Eu estava passando e fui acudi-la. Então teu criado incompetente apareceu, tirou conclusões erradas e quis me matar. Logo depois D. Álvaro surgiu e o equívoco ganhou novas proporções. – Ele ia matar D. Estêvão! – argumentou Álvaro, possesso. – Sei muito bem o que vi! – Eu jamais mataria D. Estêvão! Desarmei-o, isso sim, e ia lhe explicar sobre o tombo de D. Inês quando esse galego estúpido quase provocou um grave incidente.

Nisso a jovem concordava com ele. Se Diogo matasse Álvaro, a reação da família Castro e de seus aliados provocaria estragos incalculáveis nas relações entre os nobres portugueses e castelhanos. Se fosse Diogo o defunto, o resultado seria o mesmo. – Eu caí, me machuquei e D. Diogo me ajudou com suas mais respeitosas intenções – mentiu Inês. Álvaro fuzilou-a com olhar, porém não a contradisse.

Pedro olhou-a de esguelha e foi ajudar Lobato a se erguer. O criado sufocou um grito de dor quando conseguiu se endireitar, as costelas quebradas exigindo atenção. Consciente de seu papel naquela farsa, ele inclinou a cabeça numa reverência para Diogo. – Perdoa-me, senhor, por ter feito mau juízo de tuas ações – disse, submisso.

Faltava o infante endossar a mentira. – Agora que está tudo esclarecido – disse ele para Diogo –, não vejo mais motivo para tua presença aqui.

O nobre retesou a mandíbula, nada à vontade por ser descartado de modo tão rude. – Como queira, meu senhor – forçou-se a dizer. – Ah… Tenho apenas um pedido. Que a punição a teu criado seja exemplar. – Não vejo necessidade de puni-lo. – Se é o que pensas…

Diogo dirigiu uma reverência a Pedro. Antes de se retirar, não perdeu a oportunidade de fazer uma promessa. – Um dia, D. Estêvão, pagarás muito caro pela afronta ao mais importante conselheiro do rei.

Lobato optou pelo silêncio. Avaliou-o com desprezo antes de ir, cambaleante, buscar sua espada, que fora parar atrás de um arbusto.

– Acreditaste naquele canalha, senhor? – cobrou Álvaro no instante em que Diogo desapareceu de vista. – Claro que não – disse Pedro. – Então por quê…? – Para evitar o pior – simplificou Inês. – Agora, D. Álvaro, vai buscar um lenço para cobrir minha cabeça. Não posso entrar no paço com este corte à vista de todos.

O irmão saiu resmungando e o infante resistiu à vontade de limpar o sangue que escorria da testa da jovem, de cuidar dela e daquele ferimento. Como Diogo tivera coragem de agredi-la? – Ele te insultou, não foi? – Não importa mais, senhor. Estou partindo para Albuquerque.

Pacientemente ela esperou pela próxima atitude de Pedro. Precisavam conversar. Aquela era a última oportunidade que teriam. – Deixa-nos a sós, D. Estêvão – disse ele.

Plantado à esquerda do casal, o criado ia se afastar. Inês impediu-o. – Fica, D. Estêvão, por favor.

Queria uma testemunha por perto. – Vai logo, D. Estêvão. – Fica, D. Estêvão. – Não, ele vai! – Ele fica! – teimou a jovem.

Lobato não se mexeu mais. – Por que vives me desobedecendo? – atacou o infante. – Eu te dei uma ordem! – Que eu escutei e vou cumprir assim que D. Inês me liberar – calmamente disse o criado. – Ela não está mais sozinha numa floresta e muito menos ameaçada por algum malfeitor! Some logo daqui!

Lobato não saiu do lugar. Como era teimoso! – Senhor, tu viste a carta de D. Juan Alfonso – disse Inês, desviando a atenção de Pedro para ela –, mas não leste minha resposta. – E o que respondeste? – Disse-lhe que tentei te seduzir e não tive sucesso. Essa sempre foi minha resposta para todas as cartas que ele me enviou. – E por que não lhe contaste sobre teus progressos comigo? Que tua missão teria êxito em breve e… – Não concordo com essa missão.

Ele meneou a cabeça. Não queria acreditar. – E por que não? – Porque eu te amo, Pedro. Romperei com a família Albuquerque se isso provar o que sinto por ti. – E como vou saber se não é mais uma encenação tua?

Ela abriu a boca, incrédula por lidar com uma desconfiança que inventava planos mirabolantes para se justificar. Controlando-se para não se intrometer, Lobato bateu as mãos contra as pernas. – Dá-me uma chance para provar meu amor – a jovem insistiu. – Não falaremos sobre política, não influenciarei tuas decisões como infante, não comentarei contigo nada o que sei sobre a família Albuquerque e juro que de mim eles não saberão nada sobre ti e tua gente.

Parecia justo. E tentador. – Não.

Lágrimas inundaram o rosto de Inês. – Não me amas, senhor?

Apesar da presença constrangedora de Lobato, Pedro não podia mentir. – Amo-te, Inês, mais do que tudo nesta vida – confessou. – E te amarei até o fim do mundo. – Até o fim do mundo… – ela repetiu, emocionada por ele se lembrar de suas palavras. – E também depois dele.

A jovem abriu um sorriso lindo. Ameaçou ir até Pedro, abraçá-lo, começar o beijo que ainda não recebera. – Mas não posso te incluir no meu destino – ele recusou, sentindo uma pontada de dor no próprio coração. Inês interrompeu o avanço, de repente sem saber onde colocar os braços. Jogou-os atrás do corpo. – És uma Castro, foste criada pelo meu primo, filho de Afonso Sanches, o grande inimigo do meu pai. Não posso trazer as disputas de Castela para minha casa.

– E desde quando segues meus conselhos? – surpreendeu-se Lobato. – Sigo alguns. E estás correto quando defines D. Constança como cruel, ambiciosa e infeliz. Ela faz o mesmo jogo da família Manuel, inimiga dos Castro, dos Albuquerque, do meu outro primo, rei de Castela, e de sei lá mais quantos portugueses e castelhanos. Só sei que já estou dentro desse caldeirão e não quero trazer mais riscos a este reino. – É o que sou para ti? – perguntou Inês, magoada. – Um risco? – Não. Tu és minha perdição.

A jovem não quis ouvir mais nada. Fugiu dali, refugiou-se no paço, no quarto que guardaria sua tristeza até o momento da partida. Pedro fincou os pés no chão, lutando contra o desejo de ir atrás dela, de viver com intensidade até o último segundo de sua existência o amor que jamais poderia concretizar. – Estás agindo como um tolo, senhor – repetiu Lobato.

Pedro mirou-o com uma expressão ameaçadora. – Queres que eu te quebre outra costela? – Não é necessário, senhor. Já aprendi minha lição. – Ótimo. Agora tu vens comigo. Vou te levar ao médico.

Lobato baixou a cabeça, envergonhado por não conseguir se cuidar sozinho e, ainda por cima, dar-lhe trabalho. Àquela ordem ele teria de obedecer.

O afastamento de Inês foi matando Pedro aos poucos. Deprimido, o rapaz deixou de se envolver na vida do reino. Perdeu a alegria, a vontade de participar das festas, de visitar a cozinha para beliscar os pratos durante a preparação. Lembrava-se a todo instante de Inês, pensava nela, imaginava se a jovem sofria tanto quanto ele.

No exílio em Albuquerque, a jovem também sofria. Não tinha ânimo para nada. Preferia a solidão dos cantos do castelo, chorava às escondidas. Pensava no rapaz o tempo todo, imaginando se ele sofria tanto quanto ela.

Foi Álvaro quem lhe deu a ideia de escrever para Pedro. Uma simples carta, só uma, disse-lhe inúmeras vezes. Inês resistiu ao máximo, não aguentou e fez-lhe a vontade que também era a dela.

Novamente em Coimbra, Álvaro esperou a primeira oportunidade de entregar a carta ao infante na maior discrição possível. Estavam na antecâmara e havia apenas Lobato e Telo por perto. – Ela está sofrendo muito… – disse Álvaro.

Sem demonstrar reação, Pedro levou a carta à vela mais próxima e, quando a chama se expandiu para o papel, largou-a sobre um prato na mesa. Ficou assistindo até que fosse consumida por inteiro. – Nunca mais me tragas uma carta dela – disse, por fim. E saiu do aposento.

Álvaro suspirou, desgostoso. – E agora? – perguntou Telo, preocupado. – Se nós não os ajudarmos, os dois vão morrer!

Embora fosse uma possibilidade dramática demais, Álvaro foi obrigado a concordar com o primo. Pedro e Inês emagreciam a olhos vistos, poderiam adoecer. Não eram mais eles mesmos. – Não há nada que possamos fazer – lamentou o galego. – Tem, sim – disse Lobato, como se pensasse em voz alta. – E o que sugeres? – indagou Telo.

O criado encarou-o, como se notasse naquele minuto que pensara em voz alta. Sem responder, ele também deixou o local. Apareceu atrás de Álvaro somente no dia seguinte, com uma carta nas mãos. – Entrega em segredo para D. Inês – disse-lhe. Sorridente, o galego reconheceu a letra de Pedro. – E que nem D. Juan Alfonso saiba sobre isso, entendeste?

– Prometido, D. Estêvão! – E depois entrega a resposta para mim. Eu mesmo a encaminharei a D. Pedro. – Como o fizeste mudar de ideia? – Não fiz – respondeu ele, enigmático.

Após dar meia-volta, sumiu no corredor com seus passos sempre apressados.

Pedro não respondeu a nenhuma das cartas de Inês entregues por Lobato e continuou a queimá-las sem qualquer hesitação. Às vezes, esperava para vê-las reduzidas a cinzas. Em outras ocasiões, não aguentava a própria tortura e ia embora antes do final.

Por que ela insistia tanto em manter contato? Ele não fora claro o suficiente?

Seu sofrimento preocupava Beatriz, que volta e meia chamava o médico para examiná-lo, e passou a incomodar Constança, a quem evitava ao máximo. Foi a vez de ela ser intimada por Afonso. Uma esposa de verdade agiria com pulso firme para que o marido esquecesse a amante exilada, cobrou o rei.

Sem saída, Constança obedeceu. Voltou a criar situações para seduzir o marido, que escolhia ficar de fora de suas armadilhas. Não queria se envolver com nenhuma mulher, nem com a própria esposa. Apenas Inês existia para seu coração e seus pensamentos.

O ano de 1348 foi um período de perdas. Em junho, o pai de Constança, Juan Manuel, faleceu em Castela. No final de outubro, a irmã caçula de Pedro, Leonor, casada no ano anterior com o rei aragonês, morreu vítima de uma terrível epidemia que também chegava a Portugal: a peste negra. A doença matava numa velocidade espantosa, sem diferençar ricos e pobres, apavorando o reino de ponta a ponta.

Foi ela quem arrancou Pedro de sua solidão, obrigando-o a acompanhar o pai na administração de mais aquela crise. E era Lobato que, eternamente preocupado, corria atrás do infante com as refeições, fazia com que se alimentasse direito, cuidava para que não adoecesse. – Só mesmo um fraco sofre desse jeito por uma mulher – dizia Afonso, com frequência.

Pedro ouvia o desprezo sem se manifestar. Continuava pensando em Inês, sempre e apenas nela, amando-a mais e mais, morrendo de saudade dela. Não sabia que, em Albuquerque, a jovem vivia em função das cartas que ele jamais tivera coragem de lhe escrever.

Mais uma carta de Pedro que Inês leu e releu várias vezes. Ele não era de escrever muito, ao contrário da jovem, e não era sempre que respondia ao que ela lhe perguntava na carta anterior, o que era muito esquisito. Tampouco fazia planos que a incluíssem. Falava muito dos filhos, de quem se orgulhava bastante, da rotina de andanças, das aflições que a peste trouxera a Portugal. Temia pela segurança de judeus e mouros perseguidos pelos cristãos que os culpavam pela epidemia.

Às vezes, descrevia lugares para onde viajava e que ela não conhecia, contava os problemas do povo e do reino que sempre o sensibilizariam. Eram textos de um Pedro econômico em palavras, na maioria das vezes apenas um simples narrador de fatos. Demonstrava um pouco de afeição apenas ao se despedir dela, repetindo sempre que a amava e que a amaria até o fim do mundo.

Cartas estranhas, sem dúvida, mas que a mantinham viva e cheia de esperança. Talvez um dia ele enfrentasse o pai e a chamasse de volta…

Ela não queria ser a futura rainha e muito menos tirar de Constança o que lhe pertencia de direito. O único lugar que desejava ocupar era o coração do infante. Mais nada.

Aquela carta também contava sobre a doença de Lopo Pacheco, o que entristecia bastante Pedro. Seu pai de criação morreria em dezembro daquele mesmo ano, 1349.

Ao ouvir que alguém se aproximava, Inês encolheu-se atrás da tapeçaria em um dos corredores do castelo. Como sua correspondência com o infante era um segredo muito bem guardado, preferia esconder-se toda vez que se dedicava à sua leitura, como fazia naquele instante.

O som de passos tornou-se mais pesado e a voz de Juan Alfonso destacou-se. Ele não vinha sozinho. – D. Inês deve ter uma vantagem – disse, quase um cochicho.

Juan Alfonso não se conformava com o fracasso da jovem. E apostava tanto em seu método para garantir infantes sob controle que já preparava outra bela jovem, Maria Padilha, para seduzir muito em breve o herdeiro do trono de Castela, filho de Alfonso XI e sobrinho de Pedro.

Que vantagem?, perguntou-se Inês, apurando os ouvidos. – Tira do caminho D. Constança – prosseguiu Juan Alfonso, satisfeito por agir do mesmo modo que Juan Manuel agira anos antes, ao decidir por também tirar do caminho uma esposa, no caso Branca, que atrapalhava seus planos de casar a filha dele com Pedro. – Um infante viúvo precisará de companhia.

Um calafrio percorreu Inês. Tomando o máximo cuidado, ela se esticou para ver quem era o interlocutor do irmão de criação. Viu apenas a batina de um sacerdote.

Precisava alertar Pedro com a máxima urgência.

Mais uma carta de Inês que seria queimada. Lobato respirou fundo, torcendo para que pudesse salvá-la, ao menos em parte, como conseguira com umas poucas que impedira de queimar por completo assim que Pedro as abandonava ardendo em chamas.

Não conseguiu. Ele a entregou ao infante e, aflito, teve de assistir à extinção total das folhas. Pedro só sossegou após assoprar as cinzas para longe.

Aquela carta, em especial, parecia urgente. Se não fosse, por que Inês enviaria um mensageiro em vez de esperar as visitas periódicas do irmão a Albuquerque para mandá-la por ele, como costumava fazer?

Em Albuquerque, Inês cansou de esperar uma resposta de Pedro. Ela só chegou com Álvaro, quando ele apareceu por lá quase um mês depois para visitar a família de criação.

Desesperada, a jovem constatou que Pedro não fazia nenhuma referência ao alerta que ela lhe enviara, na carta anterior despachada com o mensageiro. – D. Pedro não te falou mais nada? – ela perguntou ao irmão no segundo em que pôde ficar a sós com ele. – Sobre o quê? – Tens certeza de que ele só mandou esta carta? – Sim. Foi a que D. Estêvão me entregou como de hábito. Por quê?

Álvaro adorava Juan Alfonso como um irmão mais velho, quase um pai, um ídolo a seguir. Não seria Inês a estragar aquela idolatria.

Só restava uma única pessoa em que podia confiar. – Chama teu mensageiro de maior confiança e separa para ele teu cavalo mais veloz – a jovem pediu. Álvaro não entendeu nada,

mas atenderia ao seu pedido. – Ele vai levar uma carta minha a D. Estêvão.

O mensageiro encontrou Lobato no pátio do paço em Coimbra, na tarde do dia seguinte após o retorno de mais uma longa e secreta viagem acompanhando Pedro em sua visita anual a Branca. Afonso, Beatriz e Constança também estavam na cidade. A ameaça da peste negra deixava-os mais unidos do que jamais estiveram.

Lobato deu algumas moedas ao mensageiro, pediu a um servo que lhe servisse uma refeição e a outro que cuidasse de seu cavalo. Depois se distanciou para ler a carta, que narrava exatamente o que Inês vira e ouvira atrás de uma tapeçaria. Ela ainda perguntava se Pedro tinha recebido a carta anterior. – Recebeu, não leu, queimou e ainda ficou assoprando as cinzas – remoeu o criado, falando sozinho. – É mesmo um imbecil!

Graças ao tempo perdido entre uma carta e outra, o cúmplice de Juan Alfonso tinha a vantagem da situação. Constança estava em perigo e, embora não gostasse dela, Lobato não podia permitir que fosse assassinada.

Saiu correndo feito louco, direto para a reunião da qual Pedro participava a portas fechadas com o rei e seus conselheiros. Não podia desperdiçar nenhum segundo.

O combate à peste negra era o principal assunto da reunião. Na véspera, uma sinagoga fora depredada e quase vítima de um incêndio criminoso por parte da maioria cristã. Em alguns vilarejos mais distantes, os judeus eram executados pela população, que

os considerava responsáveis por evocar a doença em seus rituais desconhecidos.

Os muçulmanos também enfrentavam a mesma acusação. Pedro, gaguejando, sugeriu medidas urgentes para protegê-los, como construir muros ao redor dos seus bairros. Foi ignorado. O rei, no entanto, prometeu estudar alguma medida que os poupasse daquela injustiça.

Pedro só notou a presença de Lobato no aposento quando ele lhe cutucou o ombro. – Sai – sussurrou o criado. – É urgente.

Afonso pigarreou. O que significava aquela interrupção?

Lobato não lhe deu tempo de perguntar. Empurrou o infante para fora, dizendo que o devolveria o mais breve possível. – Estás maluco? – disse Pedro, com raiva, logo que pisaram o corredor. – Acabaste de me humilhar na frente do meu pai!

Lobato, então, entregou-lhe uma carta. Ao reconhecer a letra, o rapaz se recusou a ler, a fúria ganhando vontade de sacudir o criado pelo pescoço. Como ele se atrevia a tirá-lo de uma reunião de extrema importância apenas para lhe dar mais uma carta de Inês? – Lê antes de me trucidar. – Não quero nada dessa Castro, sabes muito bem disso!

O criado esboçou um sorriso malicioso. Sabia exatamente como obrigá-lo a ler. – Não és o destinatário – contou. – Não? E para quem é esta carta? – Para mim. – E por que ela escreveria justo para ti? – esbravejou Pedro, o ciúme assumindo o poder. – Porque queimas as cartas dela, esqueceste? – És um abusado e… – Lê, senhor. É urgente.

Ele leu. E o medo de mais uma perda aniquilou a fúria e o ciúme, ambos perdendo força automaticamente. – Constança… – murmurou.

Pedro encontrou a esposa na antecâmara do quarto dela. Pediu para conversarem a sós e foi atendido. As mulheres ao redor de Constança abandonaram o local.

Quando ele lhe contou que ela corria perigo, sem revelar quem a ameaçava e como obtivera a informação, teve de lidar com sua descrença e, depois, desconfiança. – Não acho que alguém tente me matar – disse a jovem. – Teu pai tinha inimigos. – Sim, tinha. Ele já morreu, como bem sabes. E desde quando te preocupas comigo?

Pedro tomou-lhe as mãos e mirou-a no fundo dos olhos. – Apesar de tudo, gosto de ti. E não quero te perder. – Se ficasses viúvo, poderias retomar tua Castro – ela provocou. – Se eu a quisesse ao meu lado, nosso casamento não me impediria de ir buscá-la.

Constança estremeceu. Ele falava a verdade. – E o que te impede, senhor? – Não importa agora. – E o que importa? – Tua vida.

Pela primeira vez, ela sorriu de verdade para o marido. Sem fingimentos, sem se forçar a nada. E sutilmente puxou-o para um beijo, que ele retribuiu com vontade. Se tivesse que esquecer Inês, então que fosse com a pessoa certa, a esposa. – Senhora, preciso cuidar da tua segurança e… – Depois… – sussurrou ela.

O infante não voltou à reunião. A tarde rendeu-lhe mais um filho e uma reconciliação definitiva com a esposa, duas novidades que se propagaram pela Península Ibérica mais rápido do que as notícias sobre as novas vítimas da peste negra.

Em conjunto com Lobato, Telo e os integrantes de maior confiança da “casa” de Constança, Pedro armou uma eficiente rede de proteção ao redor da esposa e da criança que ela esperava para o fim do ano. Os filhos do casal também passaram a contar com proteção extra. O preparo de suas refeições era vigiado de perto, assim como tudo que estivesse relacionado à família.

O cúmplice de Juan Alfonso jamais teria sucesso em atingir a segunda esposa do infante.

Constança queria ficar ainda mais bonita para Pedro. Riu ao se dar conta de quanto mudara sua opinião sobre o marido. Ele continuava feio, rústico, deselegante. Nem ao menos a magreza lhe caía bem. A jovem riu novamente ao pensar que sentia falta daquelas bochechas fofas e dos quilos a mais.

O que mudara, então? “Tudo”, definiu. Pedro preocupava-se com ela, de verdade. E ainda lhe tinha carinho, apesar das maldades que ela lhe fizera. Enfim Constança compreendia por que o amavam tanto. Não sentia mais nojo de seu toque… Pedro esqueceria Inês, apostava. E seriam felizes juntos, rodeados por suas crianças.

Queria finalizar o bordado em sua nova camisola com uma linha dourada, um trabalho a que se dedicava havia quase uma semana. Pediu a uma dama, Mécia, que fosse buscá-la no mercado e, quando a mulher retornou, pôs-se a trabalhar. Constança era uma bordadeira excepcional. Mãos de fada, como sempre a elogiavam.

Igual a todo homem, claro que Pedro nem repararia no bordado na hora de lhe tirar a camisola… Mas isso era o de menos. O importante era ofuscar a beleza da concorrente ao ressaltar a da esposa. O bordado, apenas um detalhe, completava um todo.

A suavidade da linha foi aproveitada no contorno de detalhes no decote. A camisola era de seda, macia e sensível ao toque. O tecido, que exalava um delicioso perfume floral, fora costurado com esmero por freiras castelhanas. Mais uma preciosidade para a jovem acostumada a acumular verdadeiros tesouros em roupas e joias.

Ao terminar o bordado, quis experimentar a camisola e checar o resultado final. Mécia ajudou-a a se arrumar. Diante de um espelho na parede, a esposa de Pedro soltou os cabelos, que desabaram rebeldes e graciosos em seus ombros e nas costas. – Estás belíssima, senhora – elogiou a dama.

Constança ia sorrir, igualmente satisfeita com o visual. Uma tontura súbita a fez se segurar em Mécia para não cair. – O que foi, senhora? – Manda chamar D. Pedro… – murmurou a jovem. O mundo rodava, ela estava prestes a desmaiar.

Veio a escuridão.

A luz surgiu ao recuperar a consciência, mais tarde. Abriu os olhos e o marido preencheu em destaque seu campo de visão. Estava sentado à sua direita, no leito em que ela fora deitada. Mestre Martim, o médico de Beatriz, examinava-a, à esquerda. Atrás dele, Lobato passava os olhos atentos pelo aposento. Ao fundo, algumas damas estavam apreensivas com a saúde de sua senhora. – Como te sentes? – perguntou Pedro. – Cansada.

Ele acariciava sua mão, a ponta dos dedos roçando-lhe a pele com delicadeza. Então, seus olhos estreitaram-se. Puxou parte da manga da camisola para cima. – Que irritação é esta em tua pele? – perguntou.

Constança não soube responder. O médico subiu a manga esquerda da camisola, avaliou o braço e as pernas da jovem, também tomadas por manchas vermelhas. – Esta camisola é nova? – quis saber o infante, inclinando-se para aspirar o perfume do tecido.

Ela assentiu. Quis sorrir. Desde quando ele reparava em suas roupas? – Terminei de bordá-la há pouco – disse a esposa. – Pois vamos tirá-la.

Lobato virou-se de costas enquanto Martim e Pedro a despiam. A irritação espalhava-se pelo corpo. Evoluía rápido demais. – Coça, senhora? – perguntou o médico.

Sim, coçava. – Foste tu mesma que costurou esta camisola? – disse Pedro.

Não. Fora um presente enviado pelas freiras de algum lugar… De onde mesmo? Quem o trouxera fora um sacerdote recém-chegado de Castela, que fizera questão de entregá-lo pessoalmente à futura rainha após a missa, alguns dias antes. Ela jamais recusaria um presente de altíssima qualidade como aquele, digno de uma rainha.

Foi o que contou ao marido. – Um sacerdote? – ele repetiu, alarmado.

Ela confirmou com um movimento de cabeça.

Pedro cobriu-a com um lençol e depois chamou Lobato, que pegou uma manta e, com ela, embrulhou a camisola, evitando tocá-la. – Temos de testá-la… De alguma maneira, sem ferir ninguém – disse-lhe o infante em voz baixa para que as outras mulheres não ouvissem. – Pensarei em alguma coisa, senhor.

Testar o que em quem?, perguntou-se Constança. A sonolência embaralhava-lhe a consciência, fechou-lhe os olhos.

Nas horas seguintes a jovem teve alucinações, febre alta, dores abdominais, vômitos, diarreia. Pedro não saiu de perto dela, 157

mesmo quando dores violentas levaram o bebê que jamais nasceria. Constança perdeu muito sangue.

Morreria devido às complicações do aborto. Seu último olhar foi para o marido de quem finalmente aprendera a gostar.

O veneno que impregnava a camisola não tinha a intenção de matar Constança, e sim de enfraquecê-la, fazê-la abortar e, dessa forma, colocar sua vida em risco. Foi a conclusão a que o médico judeu, o mesmo que cuidara de Branca havia três anos, chegou após testar a camisola numa paciente sua, uma idosa muito doente, com pouco tempo de vida.

A mesma irritação de pele tomou conta da paciente e trouxe-lhe os demais sintomas que tinham acometido Constança, desse modo acelerando sua morte.

Embora o médico garantisse a Lobato que, mesmo sem o veneno, a idosa não tinha mais salvação, o rapaz não se perdoou. Responsabilizou-se pelo enterro e ainda deixou um bom dinheiro com a família dela, comerciantes empobrecidos pela crise em Portugal. A peste negra inibia a circulação de pessoas e, portanto, prejudicava o comércio, afastando-as ainda das cidades e dos campos onde aparecia alguma vítima.

Nenhuma das mulheres da “casa” de Constança soube descrever o tal sacerdote. Nem mesmo os guardas que cuidavam da segurança suspeitaram de um presente tão inofensivo, entregue por um homem de Deus, e que encantara tanto o bom gosto de Constança a ponto de aceitá-lo sem perguntas ou desconfianças.

Novamente Pedro ficaria de mãos atadas. Não tinha provas para relacionar Juan Alfonso ao envenenamento e muito menos podia revelar que Inês era sua única testemunha contra ele. Mais uma vez a jovem estaria em perigo se o irmão de criação suspeitasse de que lado estava a lealdade dela. A morte de Constança, então,

foi considerada um fato corriqueiro, mais uma mulher que perecia vítima dos riscos da gravidez.

Se Pedro valorizou a prova de amor que Inês lhe dera, não demonstrou. E muito menos se animou a redigir uma carta ou responder a que ela lhe enviou após saber do falecimento de Constança.

Já Afonso agiu rápido. Alegando que o filho não saberia educar sozinho os filhos legítimos, tomou para si a criação deles. E mal esperou que três meses se passassem após o enterro para avisá-lo de que já estava negociando um novo casamento para ele. Dessa vez, Pedro iria se casar com uma nobre aragonesa.

O rapaz não disse nada. Acabaria obedecendo, seria infeliz pelo resto de sua existência e Lobato teria de se conformar com a situação. Mas antes disso ele lhe daria a oportunidade de escolher.

Após entregar uma nova carta a Álvaro, que partiu imediatamente para Albuquerque, Lobato esperou alguns dias antes de comentar com o infante que não caçavam havia tempos, que o inverno chegaria, sabe, muita neve e frio, que teriam de esperar o ano seguinte.

Pedro mordeu a isca e logo cismou que uma caçada era o que realmente precisava para esquecer um pouco os problemas que assolavam Portugal. Foram para o norte, outra sugestão do criado que não demoraria a lhe pedir um grande favor.

Ir para a região do Minho? Desde quando Lobato tinha negócios por lá? Intrigado, Pedro aceitou abandonar o grupo de caça e seguir com o amigo por mais alguns dias de viagem. Afinal, Lobato sempre o acompanhava em qualquer viagem e, pelo que se lembrava, nunca lhe pedira favor algum naqueles vinte e tantos anos em que se conheciam.

Atravessaram vinhedos que margeavam rios e subiram a região montanhosa, com picos de granito, passando por aldeões que

pastoravam seus rebanhos. O Minho desembocava em praias selvagens, muitas ainda a salvo do toque humano.

Nas montanhas, os dois rapazes alcançaram uma velha cabana, atrás de uma pedra gigantesca. O sol recolhia-se, a escuridão avançava. No interior da construção, algumas velas iluminavam o ambiente. – É lá que pernoitaremos – explicou Lobato.

Do lado de fora, havia uma pequena comitiva, com quem deixaram suas montarias. Pedro adivinhou quem encontraria na cabana. Mesmo assim, não pôde mais resistir à vontade de revê-la. Entrou, Lobato à sua frente.

Inês de Castro recebeu-os com um sorriso imenso. Álvaro estava ao seu lado.

Pedro estacou e virou-se feroz para o criado, que se esgueirava velozmente para longe de seu alcance. – Como ousas…? – ruminou o infante.

A jovem e o irmão entreolharam-se, estranhando aquela reação. – Fui buscá-la como mandaste, senhor – justificou o galego. – Eu mandei? – Sim, meu senhor. E entreguei a carta para ela. – Que carta? – Ora, a que escreveste… – Não escrevi carta alguma. Aliás, nunca escrevi uma carta sequer a D. Inês. – Então quem respondia às cartas dela?

Os três voltaram-se para Lobato. Sem ter onde se refugiar, ele mirava o chão. – D. Estêvão imita minha letra desde os tempos em que eu me esquecia da lição que o preceptor passava – disse Pedro. – Ele a fazia no meu lugar para que eu não levasse bronca. – Só escrevi a D. Inês o que tu escreverias – defendeu-se o criado. – Como podes saber o que eu escreveria? – Acredita, senhor, eu sei.

Pedro não se conteve. Avançou contra ele e aplicou-lhe um tapa na orelha.

Aflita, Inês correu para garantir que seu queridinho não fosse mais castigado, interpondo-se entre os dois.

Lobato encolheu-se, massageando a área atingida e comportando-se como a pobre vítima indefesa diante da truculência de seu senhor. Mas, ao se ver em segurança, espiou Pedro com um irritante ar vitorioso. – Lê as cartas, senhor – pediu Inês. – Eu as trouxe comigo.

De dentro de um alforje, ela tirou um bom punhado de folhas, várias delas. – D. Estêvão, o que tanto tinhas a contar a D. Inês? – Pedro zangou-se ainda mais. Imaginou-a lendo e relendo os textos de Lobato, suspirando com as palavras de amor que o rapaz dedicara a ela…

Aliviado, descobriu que as cartas se limitavam a relatar sua rotina com a família e o trabalho. Um estilo seco, sem emoção, acompanhado pela mesma despedida ao final, palavras que tanto Inês quanto Pedro conheciam muito bem.

“Até o fim do mundo”. – E então? – cobrou Inês, ansiosa. – É o que escreverias?

Pedro teve de assentir. – Mas eu não escreveria apenas isso. E não desta forma tão… ahn… desprovida de sentimentos. E definitivamente não cometeria tantos erros. – Que erros, senhor? – perguntou Lobato.

O infante mostrou-lhe uma das cartas. – Esta palavra é com z… Esta é com s… E essa… hum… A frase está confusa aqui… E aqui também.

Púrpura de vergonha, o criado baixou de novo a cabeça. Nunca fora bom em redigir textos, por mais curtos que fossem.

– Esses erros não são importantes – disse Inês, agindo mais uma vez em sua defesa. – Pelo menos leste minhas cartas, senhor?

Pedro fitou-a. Não mentiu. – Mas podes ler agora – interveio Lobato. – Estas aqui eu consegui salvar.

Solícito, entregou ao infante algumas folhas chamuscadas. – Tu queimavas minhas cartas… – constatou Inês, entristecida.

Dessa vez, se dependesse de Pedro, o criado receberia tantos tabefes que acabaria sem as orelhas. Foi Álvaro quem as salvou, tirando Lobato dali com a maior ligeireza.

Enfim sozinho com a jovem, Pedro demorou a falar. Escolheu palavras, quase foi vencido pela gagueira, hesitou por intermináveis minutos. Ela esperou, paciente. Tinha todo o tempo do mundo apenas para ele. – Não li as cartas porque eu te amo – disse Pedro. – Se lesse, mandaria te buscar em Albuquerque. – Desejas que eu volte para lá?

E perdê-la para sempre? A possibilidade oprimia-lhe o coração. – Jamais poderei casar contigo, fazer-te uma rainha.

Ela sorriu. – Uma vez me perguntaste o que eu ambiciono. – E? – Minha única ambição é ficar contigo. Mesmo que isso signifique viver escondida da corte, longe de tudo, da política, de qualquer tipo de poder. Não quero teu dinheiro e tua fortuna. – E se eu largar tudo? – Tua vida como infante? – assustou-se ela. – E se eu me livrasse de tudo aquilo, das cobranças e obrigações, das interferências na minha… na nossa vida? – Farias isso por mim? – Faço por mim. – Fugir de tudo? – ela quis confirmar.

– Fugir de tudo. Eu jamais me tornarei rei, pois meu pai não hesitará em deixar o trono diretamente para meu filho Fernando. – Não ficarias magoado? – Talvez sim. Ou não. Acho que… eu me sentirei livre. – Serias feliz fugindo para sempre? Tens teus filhos, teu amor por este reino… – Não deixarei de amá-los. E cuidarei deles, mesmo que seja à distância. – É um preço muito alto, Pedro. – É um preço muito alto para nós dois. Haverá ainda mais ódio contra ti. – Posso conviver com isso. – E como achas que D. Juan Alfonso reagirá quando se der conta de que ele não me controla através de ti? Ele ficará…

O sorriso da jovem ganhou uma aura travessa. – Colérico – completou. – Ah, eu adoraria ver a cara dele quando isso acontecer!

Pedro aproximou-se, os braços resistindo para não a abraçar. – É este o tipo de vida que ambicionas? – ele perguntou. – Ainda duvidas?

Ele não aguentou mais. Envolveu-a junto a si, trêmulo, o corpo de Inês tocando suavemente seu corpo. Tirou o lenço que lhe cobria os cabelos, sentiu que se perdia em seus olhos acinzentados. Lábios ficaram cada vez mais próximos, o abraço tornou-se mais apertado. Antecipava a emoção com que Pedro tanto sonhara.

Beijaram-se, ansiosos, felizes, paixão e amor ditando o presente e o futuro.

Anoitecera, as estrelas parecendo tão próximas, salpicando aqui e ali. No lado externo da cabana, misturados à comitiva

junto a uma fogueira, Álvaro e Lobato aguardavam o desfecho daquele encontro, o criado desenhando para despejar no papel o turbilhão que o invadia. E se tivesse errado? Pela primeira vez em sua vida, permitira que a emoção ditasse suas ações. A razão, ignorada, dizia-lhe que fora imprudente, que as consequências seriam desastrosas.

No interior da construção, finalmente as chamas das velas foram apagadas. Pedro fizera sua escolha. – És um sujeito perigoso, D. Estêvão – comentou Álvaro, batendo em seu ombro num gesto camarada.

Lobato relaxou um pouco. O plano fora um sucesso. Sobrava apenas um pressentimento ruim, talvez influenciado pelo restante da previsão da bruxa.

Temia o futuro que ela revelara.

Pedro jamais fora tão feliz. Houve tristeza com a morte de seu primeiro filho com Inês, o pequeno Afonso, poucas semanas após o nascimento, mas o amor que unia o casal foi superando a dor, dando-lhes força. Viviam em Moledo, um vilarejo distante no Minho, perto de uma praia de beleza tão irreal que parecia tirada de alguma lenda celta.

Desde seu reencontro com Inês, Pedro não retornara a Coimbra. Para os filhos legítimos e ilegítimos, sempre enviava cartas e presentes, mantendo com eles uma correspondência intensa. Telo ia visitá-lo com frequência, assim como Álvaro, trazendo-lhe as novidades e colocando-o a par dos problemas.

Ensandecido e ultrajado pela decisão do filho, Afonso vivia mandando-lhe ultimatos para que reassumisse sua posição na corte. Pedro, naturalmente, recebia os mensageiros com hospitalidade e depois os enviava de volta sem nenhuma resposta.

A peste negra mantinha seu rastro de vítimas, porém com menos voracidade.

Em Castela, a morte de Alfonso XI levou ao poder seu filho com a irmã mais velha de Pedro, um adolescente chamado Pedro que logo ganharia o apelido de Cruel. Sua primeira providência, aconselhado pela mãe, foi mandar executar a amante do pai, a Guzmán, recebendo em troca o ódio dos irmãos bastardos e dos nobres que os apoiavam. A seguir acabaria loucamente apaixonado por Maria Padilha, apresentada a ele por Juan Alfonso de Albuquerque, o mais influente senhor de Castela no momento. Enquanto o novo rei se distraía com a jovem, Juan Alfonso tinha espaço e liberdade para implantar reformas que julgava importantes naquele reino.

Uma nova ameaça surgia com o poder e a influência que um dos irmãos bastardos do Cruel, Enrique de Trastâmara, vinha acumulando. O rapaz casara-se com uma filha de Juan Manuel, irmã de Constança e herdeira legítima da fortuna da família. Sem dúvida, no futuro ele tentaria destronar o meio-irmão.

Na pacata vida de Pedro e Inês, as reviravoltas emocionantes aconteceram com a chegada do segundo e do terceiro filhos, João e Dinis. Foram noites insones de troca de fraldas, choro, aleitamento e preocupações comuns a todos os pais, apesar das amas de leite, aias e pajens que trabalhavam para o casal. Sobrava até mesmo para Lobato, o único nobre da “casa” do infante que sempre estava por perto.

Ele, aliás, vivia uma situação familiar bastante complicada. A esposa e a filha apoiavam a decisão da rainha Beatriz em reprovar a atitude de Pedro e ignorar os novos netos. Estavam, portanto, em lados opostos. Ele não se atrevia a visitá-las, e as duas não poderiam recebê-lo se tentasse se aproximar.

Solidária com sua tristeza, Inês fazia de tudo para incluí-lo no dia a dia alegre da família que formava com Pedro. Como se isso fosse preciso, pensava o infante. Lobato já se metia em tudo mesmo…

Um dia, Pedro quis mudar de ares e foram para outro vilarejo, Canidelo. Foi lá que nasceu Beatriz, sua filha caçula. O ano era 1353.

A complexa logística de levar crianças tão pequenas em viagens não impediu o rapaz de estar em movimento sempre que possível. Perambulavam pelo Minho e também pela região do Douro, ele se inteirando cada vez mais da situação do povo, ajudando sempre que possível. Não podia evitar aquele envolvimento.

Inês não se queixava de sua vontade de ser nômade. Apoiava-o e, sem perceber, conquistava o respeito das pessoas simples com quem conviviam. Não era a rainha distante e inatingível, mas a companheira do infante que se preocupava com todos e o tornava um homem ainda melhor.

Pedro só não a levava, bem como as crianças, nas visitas anuais a Branca que, para a companheira, não manteve em segredo. Após deixá-la sob a proteção de Telo, a quem mandava chamar especialmente para essa tarefa, seguia com Lobato para Burgos.

Naquele mesmo ano, as questões de Castela mais uma vez preocuparam os reinos vizinhos. O novo rei Pedro Cruel, bastante envolvido com Maria Padilha, repudiara a nobre francesa Blanche de Bourbon, com quem fora obrigado a se casar para atender aos interesses políticos e econômicos da mãe dele e de Juan Alfonso de Albuquerque.

Ironicamente o método desse nobre em manter infantes sob controle se voltou contra ele. O fracasso do casamento de Cruel com Blanche foi sua desgraça, pois o rei, agindo rápido, captou contra ele o apoio temporário dos irmãos bastardos, inclusive de Enrique de Trastâmara, prometendo-lhes mais poder e riquezas.

Para evitar qualquer atrito com a realeza, o meio-irmão de Inês, Fernando, filho legítimo do Senhor da Guerra, retirou-se para a Galícia. Já Álvaro partiu em defesa de Juan Alfonso, que se refugiou nas terras que possuía junto à fronteira com Portugal. Como

nada demoveu a decisão do Cruel e temendo pela própria segurança, Álvaro foi viver em Canidelo com a família da irmã.

No reino castelhano, a situação de Juan Alfonso só piorou. As tropas do Cruel atacaram seus domínios. O soberano, apostando na lealdade dos irmãos bastardos, colocou-os para vigiar os movimentos de Juan Alfonso que, a raposa velha que era, reverteu o quadro com maestria. Aliou-se aos bastardos e pôs-se a tramar o próprio plano: colocar no trono de Castela o infante que ele acreditava agir sob a influência direta de Inês.

Ao saber das intenções de Juan Alfonso, comunicadas por um empolgado Álvaro, Pedro não se aguentou de tanto rir. – Qual é a graça, senhor? – disse o galego, desconcertado. Ele realmente acreditava que Pedro aceitaria aquela ideia absurda.

Diante da negativa do infante, Juan Alfonso passou para seu recurso seguinte. Encheu Inês de cartas que ela ignorou, intimando-a a trabalhar a seu favor. – Agora ele deve estar com aquela cara colérica que eu tanto queria ver – disse a jovem. Nenhum dos dois levou a sério a ameaça que o plano mirabolante poderia representar para eles.

Na primavera de 1354, Pedro foi chamado por Beatriz para assistir ao casamento da filha dele, Maria, com um infante de Aragão, em Estremoz. Como nem pudera opinar sobre o destino da menina, não poderia deixar de apoiá-la naquele momento tão importante para ela. Inês permaneceu em Canidelo com as crianças, sob a proteção do irmão.

Ao reencontrar Maria, com seus doze anos, e Fernando, que faria nove em outubro, Pedro uniu-os em um mesmo abraço apertado. Já Beatriz cumprimentou o filho com frieza e Afonso fez de conta que ele não existia, a mesma postura de alguns nobres e suas famílias. A irmã, transformada em rainha-mãe de Castela após a ascensão do Cruel ao poder, tratou-o com desconfiança, possivelmente a par das fofocas que o nomeavam pretendente ao trono castelhano.

Já Diogo Pacheco demonstrou sua amizade ao passar a maior parte da cerimônia de casamento perto do infante. Lobato, que já escapara para matar a saudade da esposa e da filha sem que Beatriz percebesse, ficou à espreita, vigiando-o. – Sempre seremos irmãos de criação – disse Diogo a Pedro. – Apesar de hoje estarmos em lados opostos, este laço jamais será quebrado.

Pedro ergueu uma sobrancelha, Lobato franziu a testa e os dois, mais do que desconfiados, não responderam quando Diogo se despediu, alegando compromissos inadiáveis.

Dois dias mais tarde, o infante e o criado integraram a escolta que levaria até a fronteira a comitiva da rainha-mãe de Castela, que depois continuaria a viagem sob a proteção de um dos nobres da “casa” dela, Martim, o irmão mais velho de Telo.

Como Pereira, prior dos hospitalários, resolveu acompanhá-los, Pedro aproveitou para pôr a conversa em dia com ele. Precisava de informações mais recentes sobre os assuntos do reino. Canidelo, às vezes, podia ser longe demais.

A rainha-mãe aproveitou para espremer o irmão em busca da verdade. Devia se preocupar com o suposto interesse dele pela coroa de Castela?

Pedro foi categórico com um sonoro não. Ela se acalmou e Pereira sorriu, apoiando-o. Aquela viagem, no entanto, seria considerada por Afonso como parte de um plano maligno para destronar o neto Cruel, jogar Portugal no centro das disputas castelhanas e levar Pedro de vez à ruína, conduzido pela manipuladora família Castro.

Disposto a impedir o suposto desastre iminente, o rei português enviou dois nobres de confiança para conversarem com o filho assim que ele regressou a Canidelo. Chamava-o mais uma vez para reassumir suas funções de infante na corte e, como prova de

boa-fé, oferecia o paço junto ao Mosteiro de Santa Clara, em Coimbra, para ser a residência da nova família do filho.

A segunda proposta dava a Pedro a oportunidade de se casar com Inês, o que ele recusou sem titubear. Tornar oficial seu relacionamento significava nas entrelinhas envolver a jovem nos assuntos de estado, na perigosa rede de intrigas tanto internas quanto externas, da mesma forma que ocorrera com Branca e Constança. Enquanto isso não acontecesse, sua companheira estaria a salvo.

Quanto à primeira proposta, Pedro ficou tentado a aceitar. Afonso andava adoentado, o neto Fernando ainda era muito novo para herdar um reino.

Inês, como prometera, não deu nenhum palpite. Lobato também não se manifestou, um feito raro para alguém tão intrometido. Já Telo incentivou-o a ir em frente. Em breve Pedro seria rei, acreditava, e aí teria poderes para agir como bem entendesse. Álvaro preferiu não falar mais no plano de Juan Alfonso. Custara a entender que o infante amava demais o reino para envolvê-lo numa disputa na vizinhança.

Pedro adiou a decisão por mais alguns dias, mas a saudade de Fernando e dos filhos de Sancha e Violante falou mais alto. No verão, estava de volta a Coimbra, retomando sua “casa” e todos os seus privilégios como herdeiro. Lobato pôde recuperar o contato com a família dele, e Inês, cautelosa, preferiu se limitar à casa nova em Santa Clara, tendo apenas o rio Mondego separando-a de Afonso e sua corte.

Mas não longe o suficiente de Diogo Pacheco e, indiretamente, perto demais das confusões que sua família aprontaria.

Os piores temores de Afonso ameaçavam se concretizar. Naquele mesmo ano, em Castela, o Cruel, apesar de oficialmente marido da francesa Blanche de Bourbon, casou-se num impulso com Juana de Castro, filha legítima do Senhor da Guerra e meia-irmã de Inês. A ligação entre eles durou apenas a noite de núpcias e, pela manhã, a jovem foi descartada.

A fúria dos Castro pelo vexame foi monumental. Fernando e Álvaro uniram-se contra o Cruel e obtiveram o apoio de Juan Alfonso de Albuquerque, de Enrique de Trastâmara e dos outros bastardos, dos nobres que apoiavam Blanche, feita prisioneira pelo próprio marido, e até dos infantes aragoneses, entre eles o genro de Pedro.

Os confrontos com as tropas reais dominaram o território castelhano. Em setembro, Juan Alfonso foi morto, possivelmente a mando do Cruel. Dois meses depois, a própria rainha-mãe resolveu dar um basta aos atos do filho, ajudando os rebeldes a capturá-lo e transformá-lo em prisioneiro.

Atordoado com aquela avalanche de notícias, Afonso tentou analisar friamente o panorama político. Sua filha apoiara os rebeldes contra o próprio filho, talvez influenciada pelo amante Martim, irmão de Telo, um dos homens de confiança de Pedro. Fernando de Castro tinha acabado de se casar com uma filha bastarda da Guzmán, irmã de Enrique de Trastâmara. Dessa forma, Álvaro tornava-se cunhado dela. Ambos tinham liderado a revolta e agora entravam para a bastarda família real castelhana. Eram amigos de Pedro e, respectivamente, meio-irmão e irmão de Inês, uma mulher que não parava de gerar bastardos, crianças que no futuro disputariam o trono português com o herdeiro legítimo.

Afonso via repetir a mesma história que vivenciara em sua luta sofrida contra o meio-irmão Afonso Sanches, que anos antes tentara lhe roubar o reino. Não queria que o neto terminasse assassinado traiçoeiramente por uma das crias de Inês de Castro.

E Pedro… Ah, aquele filho sempre lhe dando aborrecimentos… Ele lhe dissera várias vezes que não tinha nenhum interesse em ser rei de Castela, mas quem poderia garantir que falara a verdade? Seus homens de confiança estavam ligados direta ou indiretamente ao que acontecia naquele reino.

Afonso tinha de trazer Pedro de vez para o seu lado, livrá-lo para sempre da influência dos Castro. Tinha de cortar o mal pela raiz, libertando-o da única pessoa que realmente o controlava. – Temos de agir agora, senhor – soprou-lhe seu melhor conselheiro, Diogo Pacheco. – D. Pedro está numa caçada…

Mesmo com o mundo desmoronando em Castela, Pedro não recusou o convite de Telo para caçar pelas redondezas. Não se afastaria muito de casa. Tanto quanto Inês e Lobato, ele sabia que, no final das contas, o Cruel acabaria comprando os nobres revoltosos com títulos e terras, principalmente Fernando e Álvaro, que seriam os mais beneficiados. E mais uma vez os castelhanos fariam as pazes. Isso até a nova crise.

Quanto a Juana, o principal motivo da revolta, o desprezo do Cruel não a impediu de sustentar até a morte o título de rainha de Castela. Segundo comentavam suas damas mais próximas, a jovem o seduzira a tal ponto que, para tê-la por uma noite, ele fora obrigado a se casar antes com ela. Previsível que a estratégia perdesse o efeito na manhã seguinte, como realmente perdeu.

No paço que a falecida rainha Isabel tanto amava, ao lado do Mosteiro de Santa Clara, a família de Pedro tinha uma rotina tranquila, isolada do costumeiro caos no reino vizinho. Nada, portanto, mais natural que Pedro aproveitasse para se distrair em um de seus passatempos preferidos. Cuidara para que Lobato tomasse

conta de Inês e das crianças somente para não as deixar sem a proteção de um dos nobres de sua “casa”.

Estavam em janeiro, nos primeiros dias de 1355. O frio inibia passeios ao ar livre e convidava a dormir debaixo de mantas de lã e peles de animais. Praticamente ninguém se atrevia a deixar suas residências.

Na madrugada do dia 7, Lobato foi avisado pelos guardas de que o rei português em pessoa, na companhia de Diogo e seus melhores aliados, Pêro Coelho e Álvaro Gonçalves, acabavam de chegar, escoltados por um grupo de soldados. Devia ser alguma emergência. Desde que Inês se mudara para o local, Afonso nunca aparecera para uma visita, ainda mais àquela hora tão tardia. O criado dirigiu-se até o pátio, onde a comitiva já deixara seus cavalos.

No mesmo instante foi imobilizado por cinco soldados. Os demais rapidamente dominaram a guarda pessoal de Pedro, pega de surpresa.

Afonso não reparou no criado. Mandou que fossem buscar a condenada.

Condenada?, apavorou-se Lobato. Inês fora julgada à revelia? Ele tentou se libertar, tinha de tirá-la dali, salvar as crianças…

Diogo deu a ordem para que o surrassem, mas não a ponto de deixá-lo inconsciente, conforme ressaltou. Precisaria de sua lucidez.

O primeiro soco atingiu o estômago de Lobato, seguido de inúmeras pancadas que o dobraram no chão.

Imóvel no centro do pátio, Afonso enxergava apenas Inês, arrancada do quarto do casal por dois soldados. Ela estava de camisola, os cabelos soltos e descalça, pois dormia antes que a tirassem de lá. Não vinha sozinha. Suas três crianças, que lhe faziam companhia na cama, corriam assustadas atrás dela.

O rei não esperava ver os netos que ainda não conhecia. O mais velho tinha apenas quatro anos e a mais novinha, Beatriz, quase

dois. Era o menino de três anos quem a puxava pela mão. Nenhum adulto os deteve. As aias e os demais servos ainda despertavam em seus cômodos, tudo acontecia depressa demais.

Gonçalves recitou a sentença de morte decidida pelo rei e por seus conselheiros. Inês de Castro era culpada de alta traição por conspirar a favor de Castela e contra Portugal. O carrasco, trazido especialmente para a execução, apertava o punho da espada numa das mãos. – Senhor, sou inocente! – gritou a jovem para Afonso.

Empurraram-na, ela tombou de joelhos. Seguravam-lhe os braços, o corpo, impediam-na de se mover.

O rei olhava para as crianças, que eram separadas de Inês por um dos soldados. – Matarás a mãe de teus netos? – ela apelou, desesperada.

Ele hesitou. Com um gesto, quis desistir da sentença. Diogo aproximou-se, prestativo. – Vê como a bruxa age, meu senhor? Ela também deseja te enfeitiçar.

Alguns servos e duas aias apareceram naquele minuto; amedrontados, não interferiram. Os chutes que atingiam Lobato cessaram. Mesmo todo arrebentado, ele tentou se arrastar. Seguraram-no. – Ela é traiçoeira, senhor – acrescentou Coelho. – Mas não te enganará, pois és o Bravo, nosso grande herói da Batalha do Salado!

Bajulações nunca funcionaram com Afonso. – Ela sonha em ser a rainha de Castela – disse Gonçalves. – E destruirá Portugal com essa ambição. – Não! – defendeu Lobato. – São mentiras!

Muito pálido, o rei não se decidia. – O mal deve ser cortado pela raiz – lembrou-lhe Diogo.

Recebeu em troca um olhar vazio. Afonso deu meia-volta, subiu em sua montaria. O conselheiro foi atrás. Tinha de cobrá-lo.

– E então, meu senhor? – Faz o que deve ser feito.

As crianças choravam, o avô não se importou. Partiu a galope, covarde, deixando para os outros a traição que cometia contra o próprio filho.

O carrasco avançou para matar Inês, mas ela não olhava para ele. Avistara Lobato, a poucos metros de distância. – Diz a Pedro… – pediu. – Até o fim do mundo…

Foi arremessada para a frente, seus cotovelos apararam a queda. O carrasco ergueu a espada. Arrancou-lhe a cabeça com precisão.

O mundo tornou-se vermelho de sangue.

Lobato não se mexia, não registrava mais nada da cena. Ouviu a voz de Coelho mandando as aias levarem as crianças dali, o som dos cascos dos cavalos, a movimentação dos soldados que se preparavam para a partida. Gonçalves ordenou que alguém chamasse a abadessa. Era melhor retirarem logo o cadáver, que o enterrassem na capela do mosteiro.

De repente, o vermelho desapareceu diante de Lobato, coberto pelas botas imundas de Diogo. Ele parara à sua frente. – Agora, criado incompetente, como não estás em condições nem de ficar em pé, mandarei te colocarem na sela de algum cavalo – disse o nobre, satisfeito em vê-lo reduzido a um mero espectador. – Partirás em seguida para avisar D. Pedro.

Ao impedi-lo de salvar Inês e ainda transformá-lo na pessoa que narraria ao infante todos os detalhes da execução, ele se vingava do rapaz de baixa nobreza que, anos antes, tivera a ousadia de enfrentá-lo. – Afinal, manter teu senhor muito bem informado faz parte do trabalho da criadagem, não é mesmo?

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