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Hora do azar

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Transtorno de Jogo (TJ) é uma patologia reconhecida pelo 5º Manual Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) e atinge 1% da população brasileira

Barbara Schiontek, Rita Vidal, Thiliane Leitoles

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“V ocê pode ganhar um bônus hoje, mas amanhã você vai lá e perde tudo.” A fala de Chico* expõe a realidade de quem sofre do Transtorno de Jogo (TJ), admitido pelo 5º Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) como dependência, no ano de 2013. Ele diz que foi caminhoneiro a vida toda e, durante seus longos percursos pelas estradas brasileiras, teve grande contato com jogos de máquinas caça níqueis - as quais, segundo ele, motivaram o brilho de seus olhos e a perda do dinheiro dos fretes por 20 anos.

A psiquiatra Fernanda Mattias Sartori afirma que, de acordo com a DSM-5, podem existir dois tipos de jogador: o problema e o patológico. O primeiro é aquele que percebe que joga muito e acaba tendo algumas complicações decorrentes disso, entretanto, segundo a especialista, ainda encontra-se em nível controlado. Já o segundo caracteriza a pessoa que desenvolveu dívidas ao longo do tempo, e, além disso, apresenta problemas em ambiente profissional e familiar, visto que, por compulsão, mente para poder persistir no hábito.

Para Carlos*, “ganhar o dinheiro de novo é fácil, difícil é recuperar o caráter.” Ele, que também se apresenta como jogador compulsivo, diz que sua relação com jogos de baralho vem de família. Sair do trabalho e ir direto para uma mesa de bar era rotina para Carlos*, que achava perda de tempo ficar em fila de mercado para fazer compras, mas deixava de comer para passar horas jogando.

Fernanda conta que a maioria dos transtornos são considerados etimológicos, ou seja, decorrem de um processo evolutivo. Entretanto, a psiquiatra explica que, em alguns casos, percebe-se o fator genético com maior predominância, mas geralmente o transtorno é uma junção das duas coisas. “Quando a questão é genética, pode ser até mais difícil de tratar.”

João*, que desenvolveu a paixão por jogar ainda criança, afirma nunca ter investido grandes quantias, todavia, decidiu participar do grupo de apoio por perceber que poderia vir a desempenhar algum transtorno. Com muita franqueza, o jogador decidiu assumir que não abandonaria o hobby, entretanto, adotou uma nova estratégia: jogar sem arriscar sua estabilidade financeira. “Se eu perder, eu pago um mico.”

Para João*, a mudança de perspectiva foi decisiva para seu progresso no tratamento, bem como o grupo de Jogadores Anônimos (JA) em Curitiba.

De acordo com Fernanda, o valor do grupo é que são pessoas reunidas com problemas semelhantes, portanto, o simples fato de expor e ouvir histórias, já transmite maior conforto e empatia. A médica alega que o acolhimento diminui a culpa e a vergonha, sentimentos comuns em portadores de TJ.

“Eu fiquei tão constrangido quando tive que ir a uma delegacia assinar B.O por estar em um cassino clandestino. Meu nome saiu no jornal da cidade”, conta Silva*, hoje fundador e coordenador do grupo JA em Curitiba. Em 2009, ele diz que precisava de dinheiro para pagar um boleto, foi quando apostou pela última vez. O jogo rendeu em um minuto, mas em outro, o fez perder até o que não tinha. “Aquela noite eu pensei muito em suicídio.” Em São Paulo, onde morava, Silva* foi a um grupo de apoio pela primeira vez, compartilhou sua história e sentiu-se inspirado a despertar em outras pessoas aquele sentimento. Quando em Curitiba, ele percebeu a falta de um grupo que apoiasse jogadores compulsivos e, há um ano, iniciou as reuniões do JA, atitude que, para ele, foi como renascer.

Hoje, a psiquiatra aponta que, de acordo com pesquisas realizadas na área, o TJ atinge 1% da população brasileira. Todavia, para Fernanda, esse dado não condiz com a vida real, uma vez que, durante o estudo, os jogadores respondem ao questionário e têm sua identidade preservada, o que pode levá-los a não reconhecer determinados pontos. Já na prática, a doutora diz que o jogador compulsivo, muitas vezes, nem chega a procurar ajuda devido a vergonha associada ao vício.

OS OLHOS DE FORA

O apoio da família faz-se importante e essencial ao paciente de Transtorno de Jogo, bem como em qualquer outra compulsão ou patologia. A psiquiatra comenta que, na maioria dos casos, a pessoa não apresenta total consciência da situação em que está inserido, portanto, o ideal, segundo ela, é que os familiares busquem demonstrar apoio e evitar confronto, já que isso pode induzir a pessoa a continuar. Além disso, Fernanda afirma que propor tratamento ou procurar ajuda profi

sional é o passo mais importante.

O apoio da família faz-se importante e essencial ao paciente de Transtorno

A psiquiatra Fernanda Mattias Sartori afirma que não existe tratamento de forma medicamentosa para o paciente que porta Transtorno de Jogo (TJ), visto que um medicamento só pode ser considerado quando se tem uma pesquisa em que um grupo apresente melhora a partir do fármaco. O que funciona como tratamento são as sessões de consulta com psicólogos e, segundo a especialista, as linhas que demonstram maior resultado são as comportamentais e cognitivo-comportamental. Ela reitera que, quanto ao tempo de tratamento, não é possível definir, pois pode variar de acordo com o caso e seus fatores.

Palavra da especialista

de Jogo, bem como em qualquer outra compulsão ou patologia. A psiquiatra comenta que, na maioria dos casos, a pessoa não apresenta total consciência da situação em que está inserido, portanto, o ideal, segundo ela, é que os familiares busquem demonstrar apoio e evitar confronto, já que isso pode induzir a pessoa a continuar. Além disso, Fernanda afirma que propor tratamento ou procurar ajuda profissional é o passo mais importante.

“Se nós estamos aqui com meu pai hoje, é porque o amamos, mas a situação é complicada”, diz Eliane Patriota, filha de Adauto Patriota, que sofre de Transtorno de Jogo. Segundo Eliane, a situação assistida e encarada de fora foi frustrante principalmente porque, para ela e sua irmã, a maturidade precisou ser desenvolvida ainda na juventude, já que várias dívidas decorrentes do vício de seu pai ocasionaram grandes danos à toda família.

O pai de Eliane, hoje com 84 anos, nunca aceitou ajuda médica, nem mesmo conseguiu admitir seu vício. “A compulsão leva tudo, faz a pessoa esquecer as responsabilidades, a família e até de si mesma.” A filha ainda ressalta que a ajuda de outros familiares foi determinante para que sua mãe pudesse recompor as estruturas dentro de casa.

Ainda que não existam medicamentos específicos para o vício em jogo, Fernanda explica que podem ter

No início das reuniões do JA, os integrantes do grupo realizam uma oração e repetem o dizer: “Só por hoje, evitarei a primeira aposta!”.

comorbidades associadas. As principais, segundo ela, são: depressão, transtorno de ansiedade, transtorno de personalidade e vício em outras substâncias, sendo as mais frequentes álcool e nicotina. De acordo com a psiquiatra, essas outras doenças terão influência sobre o tipo de tratamento, apenas psicoterápico ou também medicamentoso.

“Foi triste demais ver meu marido naquela situação. O pior é que não era apenas o jogo, tinha o álcool também.” Esse é o relato de Maria Patriota, mãe de Eliane e esposa de Adauto. Maria reforça a dificuldade citada por Eliane e ainda comenta que já chegaram a perder três casas por dívidas de jogo. Apesar de, segundo ela, o álcool não ser uma substância que ele sinta falta hoje em dia, o jogo, claramente,

nunca deixou de cativá-lo.

As práticas de jogos são apenas permitidas quando exploradas por estabelecimentos, empresas ou serviços autorizados pelo governo brasileiro. Ou seja, de acordo com a legislação do país, é proibido estabelecer ou explorar jogos de azar em lugares públicos ou acessíveis ao público.

À MARGEM DE LEI

Atualmente, a legislação no Brasil condena determinados tipos de jogo, bem como a participação de ‘jogos de azar’. De acordo com o artigo 50 da Lei de Contravenções Penais (Lei 3688/41), jogos de azar são aqueles em que a competência ou habilidade do jogador é irrelevante para o ganho ou perda em competições.

Para João*, jogador compulsivo, algumas questões não permitem que a lei seja de fácil compreensão. “O problema dos jogos de azar é você apostar dinheiro e perder. Mas baralho, sinuca e outros também terminam com alguém perdendo ou ganhando. Por que esses são liberados?” Entretanto, Renata não acredita na efetividade da lei, já que, segundo ela, o Brasil não apresenta poder de fiscalização nesta área. A advogada ainda comenta que a situação de rastreamento da prática de jogos ilegais no Brasil pode envolver a proteção ou negligência dos próprios agentes vigilantes, o que dificulta a aplicação da lei.

“A compulsão leva tudo, faz a pessoa esquecer as responsabilidades, a família e até de si mesma.”

Eliane Patriota, servidora pública

A advogada criminal Renata Ceschin Melfi de Macedo explica que a lei não foi pensada em torno, apenas, do ato de ganhar ou perder, mas sim pela maneira que estes acontecem. Segundo a especialista, quando o resultado do jogo depende exclusiva ou principalmente de sorte, é dever do Estado intervir.

* Os jogadores em recuperação Chico, Carlos, João e Silva tiveram suas reais identidades resguardadas por pertencerem a um grupo de apoio que mantém a preservação dos integrantes como uma de suas diretrizes.

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