12 minute read
Os quebra-nozes do cárcere
from CDM 54 - Digital
Os quebranozes do cárcere
Agentes penitenciários relatam uma perspectiva diferente dos presídios paranaenses
Advertisement
Heloísa Bianchi Isabela Lemos Matheus Zilio
Ricardo Paz, agente penitenciário há 13 anos, entrou no sistema com 22 anos e esse foi seu primeiro e único trabalho até hoje. De segunda a sexta-feira, trabalha na Penitenciária Industrial de Guarapuava, onde o sistema é diferente dos outros presídios: foi feita de forma que os presos possam trabalhar. A unidade foi concebida a fim de buscar a ressocialização do preso, uma política adotada pelo governo do Estado em busca de oferecer novas alternativas para os internos, proporcionando-lhes trabalho e profissionalização, visando, além de melhores condições para sua reintegração à sociedade, ao benefício da remissão da pena.
“É um ambiente hostil, feito por cercas e grades, então, a gente não tem contato direto com os presos, já teve no passado contato direto com eles, mas não deu certo porque ocorreu uma rebelião na penitenciária”, explica Paz. Ele se refere à rebelião de 2014, na qual 13 agentes penitenciários e alguns detentos foram feitos de refém durante 48 horas, resultando em agentes feridos, destruição da penitenciária e muitos traumas. Ricardo era um dos reféns.
O motim ocorreu quando 40 presos viram a oportunidade de render 13 agentes enquanto estavam sendo deslocados dentro da própria unidade. No primeiro dia, cinco detentos foram feridos e encaminhados a hospitais com ferimentos leves e traumatismo craniano moderado. No dia seguinte, os rebelados amarraram e vendaram um agente em um para-raios, além de espancarem outros reféns constantemente.
A penitenciária de Guarapuava era considerada um modelo no país por trabalhar com a ressocialização do detento, mas, depois de 2014, ficou conhecida também como o local onde ocorreu uma das piores rebeliões na instituição. “Fui agredido, passaram cola quente não só em mim como nos outros integrantes também. Me torturaram psicologicamente dizendo que eu ia morrer. Espancaram alguns agentes, me bateram também. Ficamos sem comida e sem água. Tentaram atear fogo em alguns setores. A rebelião foi para mim um divisor de águas”, conta Paz.
O estado do Paraná não cumpre a resolução estabelecida pelo Departamento Penitenciário Nacional (DPN) de que cada agente penitenciário deve ter, no máximo, cinco detentos para cuidar. Atualmente, há 3 mil agentes penitenciários - 90,6% homens e 9,4% mulheres - para um total de mais de 29 mil detentos, de acordo com o Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Penitenciários, do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR). Além disso, estes 3 mil não trabalham apenas como agentes. São também colocados em setores como administrativo, grupo de intervenção e escolta para cobrir a demanda do departamento penitenciário. Esse vácuo no número de pessoas para exercer o cargo de agente acaba gerando, além de excesso de trabalho, riscos de vida.
De acordo com uma pesquisa realizada pelo Sindicato dos Agentes Penitenciários do Paraná (Sindarspen), entre 2013 e 2015, aconteceram 28 rebeliões no Paraná, resultando em 57 agentes penitenciários feitos de reféns. Uma média de nove rebeliões com 19 agentes tomados como vítimas por ano. A categoria relata consequências gravíssimas, tais como quadros de estresse pós traumático - desencadeando insônia, choro, angústia, medo, atitudes agressivas, além da sensação de abandono e impotência com a ausência de atenção e assistência do Estado para o acolhimento e acompanhamento psicossocial das vítimas.
O diretor-presidente do Sindarspen, Ricardo Carvalho Miranda, atua como agente há 11 anos e teve experiência no Presídio Estadual de Piraquara. Ele
conta que, recentemente, aconteceu um motim no Complexo Médico Penal, no qual dois agentes estavam encarregados de acompanhar 90 presos em trânsito. Um deles foi esfaqueado no pescoço e quase saiu infartado. Miranda está afastado do trabalho como agente por ser presidente do sindicato, porém, acabando seu mandato, retornará à penitenciária. Ele relata que, após um dos agentes onde trabalhava sofrer uma tentativa de assassinato, recebeu ameaças frequentes por parte de presos porque, como travaram as visitas, atendimento jurídico e pátio de sol, sofreram uma pressão muito grande e ele foi afastado e internado em uma clínica psiquiátrica porque não conseguia mais se desligar da atividade. “Eu sonhava com rebelião e morte, eu não deixava o portão da casa aberto, sempre ia conferir para ver se estava com cadeado, pedi à minha mãe para mudar de emprego porque eles já sabiam onde ela trabalhava. Isso tudo afetou não só a minha vida, mas a da minha família como um todo.” Neste caso da rebelião, havia cinco agentes para fazer a movimentação de mil presos dentro da penitenciária. Na Casa de Custódia de Piraquara (CCP), por plantão, são 25 agentes penitenciários para cuidar de 1.600 presos - o local tem capacidade para 460 presos. Na Penitenciária Central do Estado, também há uma média de 30 agentes penitenciários para trabalhar na penitenciária, mas eles assumem postos fixos e acabam sobrando dez agentes para movimentar todos os detentos. O número de agentes penitenciários está muito aquém do que realmente estipula a resolução do conselho nacional de política pública criminal. Miranda explica que casos como esse, de um agente ser esfaqueado, acontecem com frequência. O que é mais divulgado pela mídia são casos extremos de rebelião, em que os agentes ficam vários dias com reféns. E, de acordo com ele, casos de agressão de presos contra agentes penitenciários são comuns. Hoje, para suprir o déficit que há, seriam necessários, no mínimo, 2 mil agentes penitenciários. O governo prevê a construção de 14 novas penitenciárias. Esse total é apenas para as penitenciárias que existem. Então, seria necessário mais um número a depender de qual a capacidade dessas unidades, um número extra de contratação. “Nós não temos condições humanas de garantir a execução penal porque o nosso número de agentes penitenciários é muito ínfimo”, para Miranda, é muito provável que, se não houver mais contratações, o sistema penitenciário do Paraná vai entrar em colapso e terá que suspender as atividades. CONSEQUÊNCIAS DE UM SISTEMA DESPEDAÇADO O Sindarspen relata um alto índice de transtorno mental e comportamental dentro dos servidores públicos do Estado, os agentes penitenciários são os que mais sofrem de transtornos comportamentais e mental. Morrem muito cedo, na casa dos 50, com câncer ou decorrente de outras doenças justamente pelo estresse gerado. “Temos um grande problema: o agente penitenciário não consegue se aposentar. Ele acaba morrendo antes de conquistar a aposentadoria”, conclui Miranda. “Eu tento não pensar sobre os riscos do meu trabalho, eu tento imaginar que onde eu trabalho é um lugar tranquilo, calmo e seguro. Essa é a forma com que eu lido com a situação”, diz Ricardo Paz. Para ele, o ambiente não é seguro: a qualquer momento pode acontecer uma rebelião, uma fuga Nos últimos nove anos, 16 agentes foram assassinados no Paraná, segundo o Sindarspen.
ou uma invasão. Mas o agente acredita que é preciso pensar positivo para sobreviver à rotina de trabalho. Nos últimos nove anos, 16 agentes foram assassinados no Paraná, segundo o Sindarspen. A psicóloga Leani Kreuz atua na Penitenciária Central do Estado (PCE II US) e atende aos detentos, não agentes. Nas penitenciárias, não há suporte psicológico a eles. Ela explica que, inevitavelmente, os agentes recorrem a ela para procurar ajuda psicológica e, após orientá-los, encaminha-os para um profissional. “Atendo muitos agentes com alcoolismo, dependência química, depressão e síndrome de Burnout - que se caracteriza por um esgotamento físico, emocional e grande insatisfação pessoal”. São bem complicadas as situações de trabalho e todos nós passamos pelas mesmas coisas.” Atualmente, são 1.700 para serem atendidos por uma psicóloga e uma estagiária em psicologia. Leani relata que, há alguns anos, estudantes de psicologia foram até o presídio para oferecer apoio psicológico aos agentes penitenciários e tiveram que suspender o projeto porque os agentes não iam até eles. Ela nunca entendeu o porquê disso. Paz não recebeu nenhuma ajuda do sistema depois de sua experiência como refém. “O Estado não disponibiliza, ele oferece pelo setor público, mas não resolve nada. Não resolveu minha vida, não consegui marcar consulta e fui chamado de vagabundo pelos médicos do Estado. Eles achavam que a gente inventava que estava doente porque depressão e estresse pós- traumático não são doenças visíveis.” ‘‘Fui chamado de vagabundo pelos médicos do Estado.’’ Ricardo Paz, agente penitenciário
O que Leani mais ouve dos funcionários é sobre o sentimento de realizarem um trabalho que não tem o valor reconhecido pela sociedade. Recentemente, ela ouviu um dos agentes dizer que gostaria que alguém falasse “isso foi obra minha, eu fiz um trabalho digno de reconhecimento”. Alguns enxergam que vão chegar ao final de carreira e não ter feito ou construído nada, e que ninguém vai lembrar deles de uma forma positiva porque foram carcereiros. O agente foi afastado durante um ano no trabalho, fez tratamento privado durante três anos, mas foi forçado a voltar antes contra indicações de profissionais. Seu quadro piorou, teve depressão, não conseguia exercer sua função, gerava confusão com presos e funcionários, isso acabou ocasionando o desvio de função de trabalho dele para o setor administrativo da unidade.
O que acontece - não só com agentes penitenciários, mas com as pessoas que trabalham dentro do sistema prisional - é a síndrome da prisionização, que surge entre a relação dos dois presos: o apenado e o funcionário, que acabam adotando transformações que vêm do ambiente prisional, bem como suas dinâmicas. A psicóloga explica que isso afeta o comportamento e sociabilidade das pessoas ali e é um dos motivos de os agentes não se desligarem da profissão 24 horas por dia.
Ricardo Miranda durante a assembleia geral extraordinária dos agentes penitenciários.
Denise Corrêa dos Santos, agente penitenciária há 12 anos na Colônia Penal Agrícola, explica que, de fato, não possuem um convênio, porque o Estado vive cortando gastos e não paga tratamentos psicológicos. Contudo, ela explica que seu problema psicológico não foi totalmente decorrente da cadeia, em seu caso, o problema começou dentro de casa, em um relacionamento abusivo.
O primeiro abuso sexual aconteceu com seu ex-marido, pai de sua filha. Denise começou a pegar “nojo de homem”, até mesmo de seus colegas de trabalho. E isso foi deixando ela cada vez mais doente, a depressão pós- -parto, o local insalubre, o estresse do trabalho. Ela tentou se suicidar duas vezes. Foi dependente de medicamento para dormir e antidepressivos durante quatro anos.
Denise relata que, no Estado, quando se busca ajuda profissional, os agentes
passam por uma perícia: “minha doutora me deu um atestado de 30 dias, porque eu precisava fazer o tratamento, não tinha condições de trabalhar do jeito que eu estava. Relatei tudo que estava acontecendo na perícia, e eles recusaram o meu atestado médico para o tratamento da minha saúde. E eu continuei trabalhando”.
“Creio que, um dia, eu vou conseguir voltar a trabalhar com segurança, creio que as cicatrizes estão sendo curadas. Hoje, eu já consigo ter mesmo que um contato mínimo com os presos, já consigo manter o equilíbrio”, afastado da área de segurança no presídio, Ricardo Paz espera que um dia possa voltar a desempenhar o papel que tinha.
AS FIONAS DO SISTEMA CARCERÁRIO
Em seis meses que Denise assumiu seu posto, metade da colônia já tinha “comido ela”, e ela nunca havia saído
com ninguém. Foi um assédio muito grande, relata ela: perguntavam-se quem iria pegar a Denise primeiro. “Eu sempre fui o troféu aqui, porque até então trabalhavam apenas mulheres fim de carreira, que eles falavam, ou seja, as senhoras aposentadas. “No começo eu era a Denisinha, depois eu era a pequena, e hoje sou conhecida como Zika.” Foram várias situações de assédio que Denise enfrentou. Colegas querendo forçar um beijo, encurralando ela em um canto, mas ela conseguiu contornar a situação e encontrar uma maneira de efetuar seu trabalho. “A gente aprende a ser muito bruta no sistema. A nossa princesa é a Fiona, não a Barbie.” A agente explica que desenvolveu comportamentos para evitar que fosse tratada dessa maneira. Por haver apenas um banheiro para homens e mulheres, ela optou por fazer sua higiene íntima com um lenço umedecido para não criar uma imagem fantasiosa em seus colegas de trabalho. Para eles, do mesmo jeito que ela sai de seu horário de trabalho, ela se deita. Foi desta forma que conseguiu evitar o assédio entre os colegas de trabalho. licença não-remunerada, porque teve que se mudar para outro estado, já que a facção criminosa simplesmente teve acesso a toda a rotina dela. Ricardo Paz conta que, infelizmente, os presos os veem como um carrasco, eles não entendem que erraram e que os agentes penitenciários estão apenas representando o Estado e fazendo seu trabalho. Eles acabam levando para o pessoal, e isso traz riscos à categoria. Miranda explica que essa situação é difícil, já que os presos não enxergam de maneira mais ampla, que são duas classes, a dos agentes e os presos. Isso acaba causando uma questão de serem inimigos, quando, na verdade, os dois estão em condições subumanas devido ao Estado e isso causa o caos no sistema presidiário. “Quando o Estado não fornece roupa, comida, assistência jurídica e psicológica, os presos colocam a culpa no agente penitenciário.” Miranda conta que a maior conquista que o sindicato obteve nos últimos anos foi a mudança na escala de trabalho dos agentes, pois antigamente era obrigatório o regime de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso - ou seja, dia sim e dia não de trabalho. Isso aumenta o tempo longe do cárcere e, consequentemente, a qualidade de vida dos trabalhadores. “A gente aprende a ser muito bruta no sistema. A nossa princesa é a Fiona, não a Barbie.” Denise Corrêa, agente penitenciária
GARGALOS DENTRO E FORA DOS MUROS
“Esta não é uma profissão que você desliga o computador, vai para casa e dorme. Você vai para a sua casa, tem que mudar o caminho que faz, tem que monitorar onde seus filhos estudam”, explica Ricardo Miranda. Ele relata que, recentemente, conversou com uma agente penitenciária que está afastada porque os presos sabiam onde sua filha estudava, quem era seu namorado e qual academia frequentava. Foi preciso que ela pedisse uma Apesar disso, os agentes persistem porque veem o bem no trabalho que fazem. “Às vezes, você tira do seu bolso pra fazer um trabalho dentro do estado. Eu gosto do que eu faço, tem dificuldades, mas quando você vê que o que você faz deu certo, você achar uma coisa que foi fruto do seu trabalho, impedir que entre uma droga ou impedir que fujam presos. Esses são fatores positivos que animam, saber que você está fazendo o serviço corretamente”, conclui Paz.