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Nos bastidores da beleza – Isabelli Pivovar

O maior desafio em escrever a respeito de um lugar que se frequenta rotineiramente é a falta de perspectiva que se acaba tendo acerca do ambiente que, pode-se imaginar, abriga milhares de histórias, sobre milhares de pessoas, diariamente, num fluxo interminável. Outro desafio, a timidez. Essas eram as minhas maiores preocupações ao receber a pauta. A saída: não encarar a experiência com meus olhos. Por isso, com as unhas pintadas e estilizadas à moda francesa, cabelos escovados, maquiagem pesada demais para um dia de semana e jaleco branco, assumi a personagem a fim de atuar como aprendiz de designer de sobrancelhas na mais tradicional franquia curitibana de salões de beleza: o Salão Marly. Em uma quinta-feira, na movimentada Avenida Sete de Setembro, onde está localizado o maior salão da franquia na capital, eu me preparei para o meu dia como uma das trabalhadoras do Marly. O salão em questão, para o meu espanto, nada tinha de similar com os menores, de bairro, que, embora pertencentes à mesma dona, são muito mais modestos. Esse parecia mais um shopping center, que por acaso tinha cabeleireiros perdidos pelo saguão. A enorme estrutura de dois andares, rosa e coberta de espelhos, tem 45 estações de atendimento – dedicadas aos mais variados serviços que o estabelecimento presta –, gôndolas para depilação, uma loja com produtos e acessórios para cabelos e até mesmo uma lanchonete com espaço comum às clientes. Completamente fascinada e, ao mesmo tempo, atordoada com a quantidade de informação em um só lugar, fui recebida pela minha mentora e guia, Aure Valente, de 51 anos, que, com um sorriso radiante, me abraçou e deu uma piscadinha, em sinal de aprovação pela caracterização. Meu dia estava prestes a começar. Rapidamente após a abertura do salão, às 9 horas da manhã, a primeira cliente foi repassada para Aure. Isso porque, no Marly, o cliente pode escolher o profissional por quem quer ser atendido, mas, geralmente, é transferido para quem estiver disponível no momento, embora Aure tenha me contado que possui clientes fiéis que a “visitam” regularmente há anos. “Eu as vejo mais do que a minha própria família.” A primeira cliente entrou com a “cara fechada”, deu suas ordens e, após o atendimento, com a mesma expressão séria levantou-se da cadeira e saiu. “É normal, tem gente que acha que quem trabalha

aqui é um robô. Pelo menos um ‘bom dia’ de vez em quando é bom, né?” A segunda cliente do dia, no entanto, era “uma das fiéis”. Suzana, uma mulher alta e corpulenta, chegou, cumprimentou-nos e se mostrou mais do que curiosa para saber quem era a acompanhante de sua confidente. Percebi pelo olhar de malícia e cumplicidade que dirigiu à designer ao proferir a palavra “ajudante”. Depois que Suzana se foi, entendi o porquê. Cerca de quatro anos atrás, Aure atendia regularmente duas clientes, que se tornaram suas amigas. Entre elas, Suzana. “Conforme eu ia escutando as histórias, comecei a desconfiar, porque tudo o que elas falavam dos maridos era idêntico. Então, um dia perguntei o nome dele para as duas, e era o mesmo. Só que elas não se conheciam, não faziam ideia.” Aure nunca mencionou sua descoberta às clientes, e evitava marcá-las no mesmo dia, por precaução. O problema foi que, uma antiga ajudante de Aure, sabendo da história, marcou as mulheres em horários próximos e lhes contou sobre as sem-vergonhices do marido. “Foi um caos. Teve briga com direito a ‘bolsada’, puxão de cabelo e tudo mais”, disse ela, perdendo o fôlego de tanto rir contando a história. “Suzana separou-se e continuou vindo aqui. A outra ainda tá casada com ele e nunca mais apareceu.” Entre idas e vindas da clientela, Aure fornece seu trabalho impecável para os mais diversos formatos de rostos e de pessoas, conselhos amorosos, ombro amigo e até “tapinhas nas costas”, para as que precisam de um consolo a mais. “Eu vejo o salão como terapia, as pessoas vêm aqui para melhorar a aparência e recebem tratamento psicológico.” De fato, praticamente todas as atendentes matraqueavam fervorosamente com suas clientes. No lanche da tarde, fomos para uma sala mal-iluminada nos fundos do segundo andar, que contava com fogão, geladeira, microondas e uma mesa redonda. Havia seis pessoas na sala e, ao entrarmos, nos cumprimentaram e continuaram a conversa. “Tá vendo aquelas duas ali?”, Aure me perguntou, referindo-se a duas profissionais – uma conversando com o grupo maior, a outra reclusa, vendo algo no celular – sentadas em lados opostos da mesa. “Nesse esquema de ‘quem tá livre fica com o cliente’, as duas brigaram feio por causa da comissão. É bem

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comum para quem está começando e ainda não tem clientela formada”, contou ela, dando voz às famosas fofocas de salão. No fim do meu dia como aprendiz de designer, havíamos atendido cerca de trinta mulheres e três homens. Por semana, Aure atende aproximadamente 200 pessoas. Parece muito, e é, mas é um número condizente com a média nas 34 unidades da franquia Marly espalhadas por Curitiba e pela região metropolitana, e Joinville; os profissionais atendem em torno de 7 mil pessoas, segundo a recepcionista, Giovana, que retirou os dados de um levantamento feito em 2018 pela empresa. O fim do expediente chegou e, com ele, o cansaço. Eu estava com a aparência horrível, enquanto Aure, ainda nos saltos, com a disposição de quem poderia correr uma maratona após o dia cansativo. Ela ainda me ofereceu um “tapa” nas sobrancelhas como presente e “compensação”, embora eu na verdade só tivesse ficado observando o dia todo. Um salão de beleza está, para mim, entre os ambientes mais estereotipados pela sociedade, que sempre analisa os clientes, mas se esquece de seus trabalhadores. Então, observar a perspectiva interna através dos olhos daqueles que compõem seu esqueleto, no fim das contas, se tornou uma experiência arrebatadora que vou carregar para sempre.

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