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Ita: retrato de uma mulher brasileira – Maria Cecília Zarpelon

Deusuita dos Santos Vieira Xisto. Nome da mulher negra de cerca de 1,50 metro de altura que me recebe de braços abertos, literalmente, no hall da escola em que trabalha. A senhora de olhos escuros responde pelo apelido de Ita, mesmo que a certidão de nascimento teime em dizer outra coisa. O nome, escolhido por um padre amigo de sua mãe, não é a única coisa que lhe foi designada. Ita nasceu em 28 de julho de 1961, mas só foi registrada anos depois, já adulta, no dia 4 de maio. Ela relata que, como a mãe a teve em casa, o registro acabou sendo esquecido. “Fiquei mais velha por conta”, ri. Ita só foi descobrir que não era nascida no quinto mês do ano durante uma conversa com a tia. “Eu só me lembro que sou do dia 28 de julho porque sou toda leonina.” De origem muito humilde, Ita morava em Jacarezinho com a mãe, o padrasto e os quatro irmãos. O pai, nem chegou a conhecer, e do padrasto alcoólatra só tem traumas. Não é de se surpreender que não goste de recordar a infância, fase bastante atropelada de sua vida. “Sempre foi muito difícil, sempre tive que lutar.” Ao contrário das outras crianças que sonhavam em ser astronautas, médicas ou professoras, Ita queria ser respeitada. “Eu queria ser alguém, sonhava em estudar e ser cantora.” Completar o Ensino Médio só foi possível depois de casada, já que o padrasto acreditava que estudos não eram importantes. Cantora nunca deixou de ser. O canto de Ita é de família. Quando pequena, ela e os irmãos reuniam-se no quintal da casinha de madeira em que moravam com um violão e um pandeiro, e soltavam a voz. “Era uma das distrações da gente, na verdade.” A habilidade herdada da mãe já falecida ainda ecoa em seus pulmões. “Enquanto eu tiver voz, enquanto eu tiver forças, eu vou cantar. Mesmo que eu cante só para mim, eu sou uma cantora. E ninguém pode dizer que não.” Aos 7 anos, Ita já trabalhava na roça, o que lhe garantiu vários calos nas mãos. Dos 12 aos 13 anos, trabalhou em um restaurante para juntar dinheiro e tirar a família “das garras do padrasto”. Ela conta que essa foi a primeira vez que se sentiu só. Os Vieira vieram fugidos para a capital com o sonho de levar uma vida melhor e mais tranquila. Em Curitiba, Ita foi doméstica, cozinheira e faxineira, mas só sossegou quando começou a trabalhar no Anjo da Guarda, escola na qual está até hoje, como auxiliar de serviços gerais.

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No mesmo ano em que passou a integrar a “família Anjo”, sua mãe faleceu devido a complicações de um câncer. Sem ajuda de nenhum outro familiar, Ita percebeu que dali em diante seria apenas ela e os irmãos, uns pelos outros. Sem pai, e agora sem mãe, eles estavam sozinhos. “A gente não tinha ninguém com quem contar, a família acabou ficando meio curta.” Algum tempo depois de se instalar na cidade das araucárias, Ita conheceu o paranavaiense Cirilo Xisto, por quem se apaixonou e com quem se casou logo em seguida. Tudo o que os dois conquistaram juntos foi “lutado”. Teve a alegria de ter quatro filhos com o mestre de obras: um homem e três mulheres. Tatiana, Diego, Andressa e Daniele, por ordem de nascimento. “Eu gosto do barulho, do movimento. A calmaria não faz parte do meu eu”, diz ela, referindo-se às crianças, com um sorriso de orelha a orelha. A vida nunca foi leve para a negra dos olhos escuros. Logo depois que perdeu a mãe, o destino levou dois de seus irmãos, seu marido e seu único filho. “Eu já perdi tanto... Às vezes, parece que vou entrar em parafuso, mas eu penso que ainda têm pessoas que precisam de mim, então tento buscar forças porque minha história ainda não acabou.” O filho estava para completar 22 anos quando foi assassinado com dois tiros no peito. Era uma quinta-feira. Diego só saiu de casa para levar um amigo até a danceteria que ficava na região. “Ele disse que voltaria logo. Mas só voltou morto, só voltou no caixão.” O assalto que resultou na morte do filho aconteceu na esquina da rua que Ita percorre todos os dias para ir trabalhar. “Até hoje eu passo pelo local e sei que foi ali que meu filho foi morto. É bem no caminho que eu faço todo santo dia.” Nesse momento o sorriso vacila, e o silêncio toma conta do ambiente por alguns instantes. Ela esfrega as mãos, nervosa. A voz embargada é tão baixa que se torna quase inaudível. “A solidão. Ficar sozinha. Esse é o meu maior medo.” Ita estava perdida. E, na esperança de se reencontrar, acabou matriculando-se em vários cursos, sugestão dada pela filha mais velha. Foi pelo teatro que a cantora, mãe e viúva se apaixonou. Foi por meio dele que Ita se livrou da calmaria que tanto a perturbava. Foi na alternância entre cenas e coxias que ela percebeu que não estava mais

sozinha. “Eu sou assim. Eu sou do povo.” E foi por meio da atuação que Ita conseguiu preencher o vazio que lhe consumia havia tanto tempo. Nunca ela imaginara que, em meio a tanta tristeza, fosse possível transmitir alegria a alguém. “Como que uma pessoa triste conseguiria levar alegria para as pessoas?” Ita é sempre Ita, menos no teatro. No teatro, ela é Deusa. Lá as pessoas a conhecem apenas pelo nome artístico, Deusa Xisto. “O teatro me trouxe a vida que eu estava perdendo.” Atuar a transformou, a fez renascer, agora como Deusa. “O teatro é minha vida, eu me descobri.” Segundo seu diretor e colega de palco, Rogério Bozza, Deusa veio para o meio artístico para quebrar paradigmas. “Ela não esconde quem ela é, não disfarça, não nega.” Ela traz para o teatro essa força maternal que é tão Deusa quanto Ita. “As batalhas pessoais que essa nega aí enfrentou talvez já tivessem me derrubado.” A admiração e o respeito que transbordam a fala do colega fazem com que Ita desvie o rosto, tímida. “Apesar do olhar baixo dela agora, você não encontra a Deusa sem um sorriso na boca. Mesmo com tudo o que ela passou, ela sorri para a gente, ela nos acolhe.” E esse exemplo de força só se encontra na Deusuita. Talvez por alguma ausência de carinho na infância, Ita não consegue dar um “bom-dia” de longe, diz estar “faltando alguma coisa”. “Eu sou muito beijoqueira”, ela conta rindo. E é assim em todo lugar. Se Ita cumprimenta um, todos ficam esperando para serem cumprimentados também. “Nem a gripe suína me espantou. Nem ela entrou como barreira na minha vida para eu dar meus beijos.” As pessoas dizem que ela já passou da idade de sonhar, mas a atriz, cantora, mãe e viúva não pensa assim. O sonho da Deusa – e da Ita – é trabalhar com a arte da encenação, montar uma escolinha que possa juntar suas duas grandes paixões: o teatro e as crianças. “Eu só quero ser atriz, só quero levar alegria, fazer muitas pessoas rirem.” Se ela tiver oportunidade, ela ainda realiza todas as frustrações que já teve até hoje. Ita acredita que todo mundo tem um propósito na vida, e o dela é ajudar as pessoas no que ela puder, seja levando felicidade com seu trabalho, ou apenas com um sorriso. “Nós estamos aí para viver a vida, seja ela difícil ou não, e a gente tem que fazer valer a pena.”

A senhora dos cabelos negros, mesmo carregando 58 anos de luta nas costas, não consegue conter o sorriso. “Eu ainda vou conseguir muito mais do que eu tenho, ainda tenho muita coisa pela frente.”

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