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Marcas do caminho – Aline Taveira

Filha de um João e uma Maria, a história da infância de Marcia está longe de ser cheia de doces e guloseimas. Hoje, moradora de Curitiba e trabalhando como diarista, a mulher de riso fácil conta tudo o que viveu como se estivesse narrando um conto de um livro. Márcia e mais seis irmãos são de uma pequena cidade no interior do Paraná, chamada Marquinhos. Lá, a vida nunca foi fácil. Segundo ela, seu pai não era flor que se cheire. Certa vez, tentou estuprar a irmã de Marcia de apenas 5 anos, e falava que todas as filhas seriam as suas mulheres. Não demorou muito e, depois de alguns conflitos, o pai foi morto pelo avô materno da menina. “Mas não fez falta, todos falavam que era um bandido”, ela conta. Quando ela tinha 9 anos e seus irmãos mais velhos já haviam saído de casa, sua mãe casou-se de novo. O relacionamento da mãe, contudo, passou longe de suprir as necessidades de amor paterno que Marcia tinha. Desde o primeiro dia em que o homem entrou na vida da família, começou a se insinuar para a pequena Marcia. “No dia seguinte que ele estava na nossa casa, falou para a mãe que ia fazer compras e me levou junto. Quando saímos, ele parou no meio do mato e me fez fazer sexo oral nele. Eu nem sabia o que era isso!”. A menina, no entanto, sabia de uma coisa: mesmo com muito medo dele, contaria tudo para a mãe. Mas, infelizmente, a mãe não acreditou na filha. “Ela achou que nós não estávamos aceitando o namoro dela, por isso eu havia inventado aquilo”, disse. Os abusos, então, continuaram. “Minha mãe nunca desconfiou que poderia ser verdade o que eu tinha lhe contado.” Logo depois, Marcia descobriu que o mesmo acontecia com sua irmã, mas que a menina, ainda mais nova do que Marcia, não teria tido coragem de contar para a mãe. Desesperada, Marcia chegou a relatar os abusos para uma professora, mas a mulher também não lhe deu muita importância, além de que tinha medo de fazer algo, já que o homem era conhecido como valente. Assim, os anos se passaram. O padrasto de Marcia tirou as enteadas da escola e as levava para o trabalho pesado na roça. Um dia, ele fez a família se mudar para uma fazenda de difícil acesso. “A ideia dele era nos manter como reféns”, conta Marcia. Lá, a menina e sua mãe tive ram inclusive que fazer trabalhos criminosos. Sob ameaças, o padrasto

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obrigou-as a ajudar na queima dos corpos de uns vizinhos que ele havia matado. “Nossos calçados ficaram sujos de sangue”, conta Marcia. Na tentativa de fugir, o padrasto obrigou Marcia, sua irmã e sua mãe a cair na estrada, a pé e sem destino. Foram 12 dias e 12 noites de peregrinação rumo ao incerto. Conseguiram, então, chegar a uma fazenda e ter abrigo e emprego. Mas, por causa das noitadas do padrasto, o emprego não durou muito. “Às vezes, não conseguíamos chegar em casa. Dormíamos nas estradas e íamos no outro dia para casa. Não trabalhávamos direito. O patrão nos mandou embora”. Apesar da vida nômade, os abusos sexuais continuavam. Assim que encontraram outro lugar para viver, porém, a vida de Marcia sofreu o que talvez seria o pior de todos os golpes. O padrasto de Marcia disse que ia visitar um parente e insistiu em levar a menina que, na época, tinha 13 anos. Chegando lá, ele fez um anúncio: não voltariam mais para casa. Agora, seriam somente os dois. “Eu estava só no mundo. Ele falava para todo mundo que eu era a sua mulher e mentia a minha idade.” Não demorou muito para a menina perceber que algo estava errado com ela. Seu corpo estava mudando. Estava grávida, e deu à luz uma menina saudável. “Éramos só nós e Deus, em um barraco de pau a pique. Quando ele chegava em casa, brigava comigo se eu estivesse dormindo, e me acusava: ‘O que você fez, e com quem?’, e eu apenas estava cansada de cuidar da menina. E ele falava que eu estava com homem em casa, me batia, ‘me procurava’ e ficava brigando a noite toda”. A vida de refém continuava. Três anos depois, mais uma gravidez. Outra menina. “Completei meus 15 anos sendo obrigada a manter relações sexuais com esse homem. Preferia ceder quieta, assim o sofrimento acabava mais rápido”, disse. Não se passava um dia em que Marcia não chorasse muito. Nas noites frias e escuras, enquanto esperava o padrasto chegar, olhava para o céu e pensava: “Será que minha mãe está olhando para a lua também, e pensando onde está sua filha?”. Durante os anos de sofrimento, Marcia conta que nunca pensou em tirar sua vida. Mas, a do padrasto, sim. “Um dia, ele estava bebendo na casa de um amigo, e eu estava lá com ele. Foi quando ele começou a olhar uma arma pra comprar. Gostava de andar armado, pra todos

terem medo dele. O facão, ele só tirava da cintura pra dormir. Ele pegou a arma e, na frente de todo mundo, falou: ‘Se você der uma de louca, eu te mato’. Meu sangue ferveu. Peguei um facão e avancei para o pescoço dele. Ele se desviou e eu o acertei no braço. Cortou em dois lugares, bem profundo”, ela conta. Marcia atribui sua coragem a um motivo: estava grávida de seu terceiro filho, um menino. A partir daquele dia, as coisas mudaram um pouco. Ele também começou a temer Marcia. Logo ela conheceu um rapaz. A essa altura, já estava com 18 anos. Munida de forças que nem ela mesma sabia de onde vinham, Marcia tinha apenas uma ideia em mente: livrar-se do “porco imundo”. Só que, para isso, teria que pagar um preço muito alto. Deixar suas filhas para trás. Com o coração despedaçado, Marcia fugiu com o rapaz. Colocou as filhas para dormir e saiu. Só levou o filho caçula, que era menor. “De longe eu ouvia as crianças chamarem: ‘mãe, mãe’. Aqueles gritos cortavam meu coração, mas eu não aguentava mais sofrer. Fui chorando. Nesse dia, quis muito morrer”, ela conta. Marcia foi procurar a mãe. Depois de muita busca, encontrou a casinha no pé da serra que provavelmente seria seu paradeiro. Ali, o reencontro aconteceu. “Ficamos muito felizes em nos reencontrar. Nos abraçamos, conversamos muito, era muita saudade. Parecia um sonho!” Mas, infelizmente, logo as coisas mudaram. A semelhança do filho de Marcia com o padrasto incomodava sua mãe, que batia na criança e lhe negava comida. Além disso, mais um bebê estava a caminho: Marcia engravidara do rapaz com quem havia fugido. Quando descobriu a gravidez, porém, ela já não o amava mais. Eles acabaram terminando e Marcia se viu sozinha, grávida e com um filho pequeno. Resolveu, então, tomar uma atitude. Foi até a polícia e contou tudo o que havia acontecido. O sequestro, os estupros, tudo. “Na mesma hora, foram buscar aquele homem, e minhas meninas foram para o Conselho Tutelar. Pelo menos agora, eu sabia que aquele homem estava preso e minhas filhas, protegidas.” Por não aguentar mais as humilhações da mãe, logo Marcia também entregou os outros dois filhos para o Conselho Tutelar. “O pequenininho estava com um mês de vida e o maior, que não estava entendendo nada, apenas gritava: ‘Mãe, eu não quero ir sem você’. Eu não sabia mais

o que falar ou fazer. Eu me sentia um monstro”. A família, enquanto isso, não ajudava. “Me chamavam de cadela, porque eu abandonava meus fi lhos. Parecia que eles tinham se esquecido de que, quando eu precisei de ajuda, ninguém me ajudou.” Hoje, Marcia vive uma vida diferente. Logo se mudou para Curitiba para tentar a sorte sendo diarista e conheceu um moço – seu atual marido. Mesmo sofrendo para se ressocializar, aos poucos sua vida foi entrando nos eixos. Casou-se, teve dois filhos saudáveis, voltou a estudar e tem mil planos em mente. Vive uma vida feliz. “Se eu pudesse defini-la com uma palavra, seria ‘corajosa’”, conta Wagner, seu marido. Ele diz que o passado de Marcia nunca o impediu de amá-la – pelo contrário, o fez sentir admiração. O pequeno Rafael, o filho de 7 anos do casal, também demonstra orgulho pela mãe. “Ela é muito boa comigo e com a minha irmã. A gente sai, vai passear, ela ajuda a gente no dever de casa... Se eu pudesse dar um presente pra ela, seria um abraço. Bem grande.” O menino não faz ideia de tudo o que a mãe viveu. Marcia chegou a reencontrar suas filhas mais velhas, que foram adotadas. A mais velha estava com leucemia, e queria vê-la. Os dois filhos, no entanto, ela nunca mais viu. “Nunca tenha medo de tentar. Hoje está ruim? Parece que não há saída? Como se não tivesse fim? Tem, com certeza, tem. Se não tivesse fim, não haveria começo!”, ela brada, feliz. Feliz como nunca achou que seria um dia.

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