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Ciclo de boas ações – Anna Padilha

Um dia de calor em Curitiba é raridade, e traz frutos que podem ser considerados dignos de um mundo melhor. A senhora que passa por mim na calçada sorri ao som dos passarinhos cantantes. O motorista do Uber oferece a opção de um ar gelado e condicionado, o qual recuso, para aproveitar completamente a experiência de algumas horas naturalmente felizes na capital paranaense. No centro da cidade, em meio aos edifícios antigos e escuros que combinam com o típico cinza dos céus, um muro tão alegre quanto o sol, com desenhos coloridos, é convidativo o suficiente para que uma fila se forme ao seu lado. O templo Hare Krishna em Curitiba está lá há décadas, tentando colorir a paisagem e a vida daqueles que também veem as ruas da cidade como morada. Do meio-dia às 13 horas, os responsáveis pelo templo distribuem comida aos moradores de rua. Uma boa ação que não depende do clima – acontece todos os dias. Ainda não estava na hora, então eu poderia ajudar. “Toque a campainha”, informa um bilhete escrito à mão, colado no muro. Obedeci, e esperei o suficiente para ficar com medo de que estivessem tão ocupados a ponto de não atenderem à porta. A resposta finalmente veio, e o medo se tornou curiosidade. “Hare Krishna”, saudou um homem de meia-idade que usava uma camiseta azul combinando com o muro. Eu o cumprimento com um “Oi” tímido, sem muita certeza do que dizer. Digo que gostaria de realizar um trabalho voluntário no almoço, e ele não hesita em abrir espaço para que eu entre. Uma vez lá dentro, surpreendo-me com uma garagem. Bem no meio, um carrinho que poderia vender qualquer coisa ocupa quase todo o espaço. Mas isso não é tão significativo quanto o cheiro forte de verduras com algo parecido com manteiga. Em uma parte mais elevada, uma cozinha funciona a todo vapor, com grandes panelas de aço comandadas por dois homens. O simpático senhor da camisa azul diz que, por ali, no preparo do almoço, já estão bem encaminhados. “Pode subir as escadas para ir lá no templo. Fale com as monjas, elas podem precisar de algo.” Depois de me certificar duas vezes de que estaria indo ao lugar correto, encontrei-me em uma sala escura, com um colchão encostado à parede do fundo e, como se completasse o local, uma mulher encolhida se afastou

quando entrei. Eu a cumprimentei, e perguntei se precisaria subir mais para encontrar o templo. Ela acenou, “Sim”. “Preciso tirar os sapatos?”, eu não sabia ao certo como perguntar. Ela acenou mais uma vez, mas agora com um “sim” audível. Me encaminhei até uma pilha de sandálias na qual meu All Star branco parecia um intruso. Antes que eu terminasse de desamarrar os cadarços, ouço “Hare Krishna”, de uma voz mais jovem desta vez. “Você veio fazer trabalho voluntário? Desculpe a bagunça, estamos correndo para preparar o almoço. Você já conhece o templo?”. Embora parecesse estar em casa, o homem com vestes brancas, cabelos ralos e argila no rosto parecia tão curioso quanto eu. “E, só por curiosidade, por que o Hare Krishna?”. Ele parece se contentar com minha explicação: “Uma experiência para a faculdade”. Gustavo narra de forma rápida, sem pausa e quase tão ansiosamente quanto as suas perguntas anteriores que conheceu a religião por meio de uma ex-namorada. “Comecei a ler as coisas só para irritar ela, para contradizer. E fui vendo: ah, isso faz sentido. Olha só, isso faz sentido também...” Posso chamar de coincidência, ou destino. Gustavo define como “chamado de Krishna”. Ele me guia até o andar de cima, e o cheiro de comida fica ainda mais forte. O cardápio das 250 refeições distribuídas diariamente é vegetariano, para agradar Krishna – que não aprova a crueldade necessária para comer um animal. “Ele gosta de coisas naturais, da terra”, o sorriso no rosto de Gustavo denota certo orgulho por ele acreditar no mesmo que sua divindade. Passamos por uma cozinha, onde o cheiro é mais forte. Três jovens mulheres limpam os utensílios de um almoço que está prestes a ser servido. A melhor das porções vai para Krishna, em oferenda no altar. O templo tem o espaço de um quarto grande, com duas estátuas encostadas à parede. Gustavo explica que elas existem a partir da imaginação dos seres humanos. Krishna, como está sendo representado na estátua, é a Suprema Personalidade de Deus, “a Verdade Absoluta”. “É a forma mais elevada e original de Deus”, ele compara a representação em imagem com a da Igreja Católica, como uma forma de me familiarizar com a nova cultura.

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Em um canto, uma estátua do homem responsável por levar o movimento Hare Krishna para Curitiba, Sua Divina Graça A.C. Bhaktivedanta Swami Prabhupad, é posta de frente para o altar, como se ele ainda estivesse ali para adorar após tanto tempo. Os pufes do fundo da sala são convidativos para a leitura dos livros que estão em uma pequena estante encostada à parede. Histórias que contam as gloriosas batalhas de Krishna na Índia. Gustavo explica que o mais importante na religião pode ser resultado do carma: tudo o que vai, volta para você. “É mais complexo do que boas e más ações, mas fazer o bem é simples de entender.” Voltando à cozinha, Gustavo nos deixa com as três meninas. Uma delas, Juliana, se apresenta com o nome. As outras, com sorrisos acolhedores. Enquanto Juliana procura algo em que eu possa ajudar, uma senhora sobe ao templo – sem argila no rosto ou cabelo raspado, mas com fé nos olhos. “Hare Krishna” mais uma vez, como cumprimento. Juliana também tem a cozinha sob controle, mas é simpática o suficiente para aceitar um trabalho voluntário curto e limitado. Ela sai da cozinha com um pequeno recipiente de plástico, cheio de algodão. “Se você puder fazer chaminhas.” Ela não espera uma resposta, e começa a explicar imediatamente o que isso significa: “Nós enrolamos o algodão e o mergulhamos em óleo para acender depois”. Algo simples e pequeno, como uma vela. Mas natural, “porque Krishna gosta”. Sentei- -me à uma pequena mesa em frente à escada e comecei a enrolar os pedacinhos de algodão. Enquanto pego a prática e tento me acostumar com o cheiro – que, além da comida, também está nas chaminhas e em todo o local –, Gustavo sobe as escadas com um homem segurando um bebê. A menininha deve estar em seu segundo ano de vida, mas já tem as mesmas marcas de argila no rosto e nos braços. Sua fé veio antes da fala, ou das caminhadas sem cair. A garotinha sobe ao templo com o pai, e eu não consigo deixar de pensar que religiões são uma coisa só. Não existe uma que pregue coisas ruins. Todas buscam por meio da adoração a um criador ou a uma divindade fazer o bem, e incentivar o mundo a fazer o mesmo. O Deus que vem dos céus pode ter um nome diferente, com leis diferentes, mas a mensagem é a mesma. E a ajuda de direcionamento para

compreender o motivo de estarmos todos em uma bola gigante, azul e flutuante no espaço é bem-vinda. Uma hora depois, todo o algodão já havia se transformado em chaminhas. Agradeço a Juliana, que não me deixa ir sem um dos salgados que estava fazendo. Coloco meu All Star e a pilha continua intacta, como se o par de tênis não fosse um intruso, mas um visitante. Do lado de fora, debaixo do sol de meio-dia, a fila chega a dobrar o quarteirão. Pessoas simples, olhando para baixo, aguardando sua porção de boa ação do dia. Aqueles que já pegaram o prato vegetariano se sentam do outro lado da rua, na pouca sombra que os outros prédios fazem. Não sei ao certo como cada pessoa toca a vida da outra ou se o mundo pode melhorar com uma boa ação por vez. Sei que aquelas chaminhas serão acesas três vezes ao dia, todos os dias, e iluminarão pedidos por um mundo bondoso em orações, que resultarão em pessoas com esperança que fazem coisas boas, como distribuir comida aos moradores de rua, ou dar um simples sorriso a um estranho na calçada ao som dos pássaros cantando. De certa forma, sinto que fiz minha parte no ciclo de boas ações do universo.

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