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Uma tarde tranquila na Boca Maldita – Luana Perdoncini
Eu tenho 20 anos de idade, e faz 20 anos que vivo em Curitiba. Desde pequena eu passeio pelas ruas do centro da cidade, encantada pelas movimentações e lojas por todos os cantos, mas confesso que essa foi a primeira vez que efetivamente reparei nos senhores que ficam sentados nos bancos da famosa Boca Maldita. Para mim, era algo tão costumeiro aquelas presenças ali que nunca cheguei a me questionar o que tanto eles conversam durante tardes inteiras sentados em um banco duro de madeira. Localizada no centro de Curitiba, a Boca Maldita é um reduto majoritariamente masculino e é considerada uma tribuna livre, onde existe liberdade para quaisquer comentários ou críticas. Lá, reúnem-se os “Cavaleiros da Boca Maldita de Curitiba”. A confraria existe para debater e criticar tudo e todos sem qualquer restrição; expressar as vontades e indignações populares. Entre seus confrades, reúnem-se pessoas das mais diversas opiniões e diferentes setores, como artistas, profissionais liberais, políticos, esportistas e aposentados. O local foi institucionalizado em 1966, dez anos após a sua criação, e tem como lema: “Nada vejo, nada ouço, nada falo”. Tomei coragem de ir até lá numa segunda-feira. Era um dia nublado e muito frio, então saí de casa com a certeza de que não encontraria ninguém. Até porque, quem tem vontade de sair de casa com um tempo ruim desses? Mas eu estava errada. Desci do ônibus e fui caminhando em direção ao calçadão da XV, já refletindo sobre o motivo de eu ter saído de casa num tempo tão inoportuno. Mas, assim que viro a esquina, vejo lá aqueles senhores aposentados, sentados, conversando, ignorando completamente o frio que estava fazendo naquele dia. O povo curitibano estava certo, faça chuva ou faça sol, os “Cavaleiros da Boca Maldita” estão sempre lá, conversando sobre a atual conjuntura da política do país. Mas algo chamou particularmente a minha atenção. Em meio a tantos homens, lá nos últimos bancos da avenida me deparo com um grupo diferente. Eram quatro homens, vestidos de forma parecida, calças bege ou marrons e blusa de tricô com estampas diferentes; junto a eles, três mulheres, vestidas de forma similar. Fiquei um pouco confusa, pois julgava que apenas homens tinham o costume de ir àquele lugar. Resolvi então abordá-los, e, para que não estranhassem a minha aproximação, contei uma história falsa
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de que eu era de Medianeira e tinha vindo fazer faculdade em Curitiba. Expliquei que sempre passava por ali e me chamou atenção o fato de sempre haver senhores conversando naquele ponto da calçada, e perguntei o motivo daquilo. “A senhorita não conhece a história da Boca Maldita?”, questionou uma senhorinha de cabelos grisalhos curtos, olhos azuis e um sorriso simpático que lembrava o da minha avó. Mesmo tendo conhecimento da tradição do lugar, respondi que não e perguntei se ela poderia me explicar. “Bom, querida, desde muito tempo este lugar reúne homens para jogar conversa fora. Eles dizem que é para falar sobre política, mas é tudo balela, 90% das nossas conversas são besteiras e 10% são sobre política”. Eu dei risada e questionei: “Se são apenas homens, como a senhora chegou aqui?”. Ela sorriu, como se eu tivesse feito a pergunta certa. Nesse momento, um senhor nos interrompeu. Parecia desconfiado de alguma forma por eu estar ali e perguntou o porquê de tantas perguntas. Eu apenas disse que estava curiosa. O senhor com cara ranzinza disse que eu não devia estar ali, que aquele era um lugar para relaxar e que eu estava atazanando a vida deles. Eu me senti muito mal com aqueles comentários e comecei a pedir desculpas pelo incômodo. Então, um senhor baixinho com aparência acolhedora olhou para mim e para o senhor ranzinza e disse: “Pelo amor de Deus, Sergio, pare de ser chato e deixe a menina conversar com a gente! Se você está incomodado, vá embora, a gente nem te quer aqui!”. Sergio simplesmente ficou em silêncio e sentou-se no banco, sem me olhar no rosto novamente. Até me senti um pouco culpada, mas ele tinha sido grosseiro sem motivo, então decidi simplesmente ignorar o ocorrido e continuar a abordagem. O senhor acolhedor, que depois se identificou como Marcio, me falou que as três senhoras ali eram esposas de amigos próximos e, após a morte dos maridos, elas resolveram frequentar a Boca Maldita para distrair a cabeça. Fiquei quase duas horas ouvindo histórias sobre a vida deles, e me senti de certa forma numa sessão de terapia, fazendo o papel de psicóloga. Após um tempo, comecei a observar em torno, para perguntar sobre os outros grupos de conversa que estavam ali. Marcio reparou na minha observação. “Tá vendo aquele grupo ali?”, pergun-
tou ele, apontando para um grupo de senhores de terno tomando chocolate quente, sentados em uma mesa em frente ao Café Avenida. Eu confirmei com a cabeça e ele me advertiu: “Não fale com eles! São uns metidos, se acham só porque são ricos. E eles votaram no Bolsonaro. Você tem cara de ser uma menina sensata que não gosta desse tipo de homem”. Eu sorri e confirmei a informação. Passei quase cinco horas na companhia daqueles senhores, e jamais imaginaria que seria tão bem tratada. Durante a conversa, eu me senti como se fosse a neta deles. Mas precisava ir embora, pois já estava tarde. Na despedida, fui convidada para voltar lá quando pudesse, e garanti que voltaria. Sergio aproveitou a oportunidade para mostrar que nem era tão ranzinza assim, e, quando se despediu, disse que eu era muito simpática. Surpresa, apenas agradeci, sem abraços nem beijos, apenas olhando-o com respeito e mantendo uma distância esquiva. Foi assim que terminou a minha tarde tranquila na Boca Maldita.