5 minute read
O silêncio é infinito como o movimento – Maria
O silêncio é infinito como o movimento Maria Cecília Zarpelon
Muitas pessoas consideram o silêncio incômodo. Eu, pelo contrário, sempre gostei do silêncio. Ele me conforta. Desde pequena, meu pai me dizia que, se eu não tinha algo bom para falar, era melhor ficar quieta. Nunca fui de puxar conversa. O silêncio sempre me foi cômodo, essa é a verdade. Mas não naquele dia. Quando recebi a tarefa de passar um período em um lugar que julgava um dos mais silenciosos da cidade, pensei que seria a coisa mais fácil do mundo. Mas eu estava enganada. No primeiro dia, pensei: “Hoje vou apenas me familiarizar com o ambiente”. Até então, eu estava confiante. Pretendia falar com algumas pessoas no segundo dia. Erro número dois. Fiquei o dia todo perambulando sem nenhuma produtividade pelos 8,5 mil metros quadrados de uma das maiores bibliotecas públicas do país, a antiga – foi fundada em 1857 – e famosa Biblioteca Pública do Paraná. Era a primeira vez que visitava aquela que era uma das bibliotecas mais frequentadas do Brasil. “Vergonhoso”, pensei quando entrei na enorme estrutura branca segmentada por vidraças maiores ainda. Definitivamente, eu não sabia por onde começar. Os três andares que abrigam cerca de 630 mil livros são intimidadores. Fui entrando. Terceiro equívoco. Um segurança simpático do outro lado do detector de metais me avisou que eu deveria deixar a mochila em um dos armários ao lado. Fiz isso. Levei comigo apenas o computador, um caderninho de anotações e uma caneta, tudo dentro da capa do aparelho. Passei pelo detector novamente, e mais uma vez fui parada, agora pela secretária atrás do balcão, logo na entrada. Engano meu. Além de não poder entrar com a capa do computador, deveria fazer uma autorização para entrar com o aparelho. “Comecei bem”, pensei. Finalmente consegui entrar, e então a pior parte. Por onde começar? Depois de passar pelo segurança simpático, que mais tarde descobri que se chama Rodinei, eu me deparei com uma imensa bancada ocupando um terço do hall térreo. Era o balcão de empréstimos de livros. (Durante todos os dias que passei por lá, aquela bancada não ficou vazia nem por um minuto.) Fiquei perdida com tanta informação. Decidi andar. Alternava entre caminhar e me sentar, ao mesmo tempo que via pessoas lendo, pesquisando, escrevendo, vendo TV. Avisos de “proibido falar no celular” espalhados em cada canto. Levei três dias para
Advertisement
criar coragem e falar com alguém. Pelo menos, nesse meio tempo, já conhecia todos os andares da biblioteca de cor e salteado. Sala por sala, inclusive a seção em braile, a de documentos históricos e a gibiteca. O vaivém diário das cerca de três mil pessoas naquele lugar é incessante. Era o meu terceiro dia, e o tempo estava acabando. Precisava abordar alguém. Cheguei. Eram 11 horas da manhã de uma terça-feira. Já sabia os procedimentos. Guardei a mochila, peguei meu caderninho e passei pelo detector de metais. Cumprimentei Rodinei e fui, segura de que encontraria alguma coisa interessante naquele dia. “De dez em dez”, eu pensei. De dez em dez segundos de coragem, eu iria longe. Contei até dez. A primeira pessoa com quem conversei foi a secretária que ficava no balcão antes do detector de metais, aquela que me parou no primeiro dia por causa do computador. Ela trabalha na Biblioteca há sete anos, mas disse que não sabia como ajudar e me “transferiu” para outro funcionário. Foi assim com mais três pessoas. Contei até dez de novo. Depois das várias tentativas falhas de falar com alguém, sentei-me em frente à escadaria que dava acesso ao segundo andar, próxima à seção dos periódicos. Já estava prestes a ir embora. Eram 14h30 e a verdade é que eu estava frustrada. Frustrada por não ter conseguido levantar nenhuma informação sobre aquele local que, naturalmente, tinha tantas histórias. Eu estava tão concentrada pensando em como encontraria uma voz em meio àquele silêncio, que nem percebi quando ela surgiu: “Você faz faculdade, menina?”. Ergui o olhar e vi um senhorzinho enrugado de cabelos brancos, longos apenas na parte de trás, encarando-me curioso. Surpresa, fiz que sim com a cabeça. “Sim, por quê?”, “Já te vi na universidade, faço Economia lá.” Ele tinha me pegado desprevenida. Por alguns instantes, nada sai da minha boca. O senhorzinho de camisa branca de mangas compridas, colete azul de lã, calças jeans e sapato social senta-se ao meu lado. Nelson Souza, Souzinha, para os mais próximos, está cursando o terceiro ano de sua primeira graduação. Confessa que estava em dúvida entre Engenharia e Matemática Financeira, mas que, considerando que o mercado de trabalho não estava favorecendo os engenheiros, optou por Economia. Além da matemática, sua outra grande paixão é o xadrez. Seu Nelson vai à biblioteca pelo menos duas vezes por semana, mas não para ler. Ele vai para jogar xadrez. Enquanto arruma os cabe-
los brancos com um pente que tirou do bolso, ele me convida para uma partida. Fico tensa. “Nunca gostei de xadrez”. Eu tinha aulas de xadrez no Ensino Fundamental com a professora Sílvia, às terças-feiras. Detestava. Quando ela nos organizava em duplas, sabia que meu pesadelo estava para começar. Pode parecer exagero, e nem sei ao certo por que não gostava das aulas. Lembro que chegava a me jogar no chão de pedra drenante do pátio da escola, para assim ralar os joelhos e ser dispensada da aula. Fiquei muito inquieta com o simples convite, mas aceitei. Seu Nelson mostrou o caminho. Entramos na seção de periódicos, repleta de idosos lendo jornais e revistas, passamos pelos multimeios e chegamos a uma escadinha branca escondida no canto esquerdo da sala. Subimos. Na parte de cima, caminhamos até uma grande mesa retangular com vários tabuleiros de xadrez. “Souzinha! Você por aqui!”, diversas pessoas exclamaram. Nos sentamos. Fui logo avisando que não entendia muito do jogo, visto que não praticava havia mais de dez anos. Ele deu de ombros e a partida começou. Admito que não lembrava nem mesmo como cada peça se movia. Seu Nelson me ajudou, mas obviamente eu perdi. Durante o jogo, descobri que ele gostava de conversar. Fiquei sabendo que seus avós vieram da Ilha da Madeira, um pequeno arquipélago no meio do Oceano Atlântico, anexado a Portugal. Instalaram-se no Rio, mas seu Nelson é curitibano, nascido no Hospital São Lucas, mais especificamente. Nunca saiu da cidade. A paixão de seu Nelson por xadrez começou na infância. Há 15 anos ele participa do Clube de Xadrez de Curitiba na Rua XV. O Clube da universidade veio algum tempo depois. Jogamos outra partida. Perdi. O movimento por ali não para. As pessoas vêm e vão dos tabuleiros de xadrez, e seu Nelson conhece todas elas. Jogamos outra. Dessa vez quase ganhei. Passei a tarde inteira com ele e seus colegas, conversando e movendo peões. O universitário de 80 anos se despede porque tem aula à noite. “Para quem não joga há dez anos, você até que sabe o que faz.” Ele sorri. Talvez essa fosse a última coisa que eu pensaria em fazer naquele dia, mas jogar xadrez com um velhinho tagarela foi muito melhor do que persistir no silêncio.