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O desconhecido monumental – Maria Fernanda Coutinho

Terça-feira nublada em Curitiba. Parada em frente ao imóvel de número 1.510 da Rua João Negrão, procuro no celular a agenda da semana do Templo Maior, sede estadual da Igreja Universal do Reino de Deus no Paraná. Enquanto tento me esquivar do chuvisco insistente que cai do céu, penso se a minha escolha de roupa e personagem foi a melhor alternativa para encarar o horário das 20 horas em uma rua movimentada, porém pouco segura. De bermuda jeans e camisa xadrez, meu intuito é interpretar o papel de uma pessoa que enfrenta problemas com o álcool em um dos cultos mais movimentados do templo, também conhecido como Catedral da Fé. Prendo os cabelos em um coque desarrumado e espalho álcool em gel pelo pescoço, nas maçãs do rosto e nos braços. O cheiro forte se espalha pelo ar e atravesso a rua para iniciar o que seria uma das experiências mais exóticas que já vivenciei. Após caminhar por segundos que pareceram minutos intermináveis, chego ao portão principal da construção com duas imponentes e gigantes torres douradas de cada lado. A estrutura, com 41 mil metros quadrados de área e 35 metros de altura, em tom marfim, equivale a um prédio de nove andares. Ao passar pelas enormes portas de vidro, o espanto é inevitável: a monumentalidade e a nobreza de seu interior conseguem ser ainda maiores que exteriormente. Junto comigo, inúmeros fiéis entram no templo. Fiéis esses que, unidos, somam quase 7 mil pessoas frequentando a igreja semanalmente. A maioria está impecavelmente bem-vestida. Mulheres de saias e vestidos longos. Homens de terno e gravata. Percebo olhares de estranhamento para os meus pés, calçados em sandálias de plástico e com esmalte preto descascado nas unhas. Procuro um lugar para me sentar entre as quase 6 mil cadeiras de couro avermelhado dispostas no salão principal. A movimentação aumenta minuto a minuto. Penso que meu personagem não causará tanto choque quanto o esperado, devido aos olhares ansiosos fixados somente no altar, que oferecem uma explosão de dourado com diversas outras referências judaico-cristãs, como a tábua dos mandamentos em hebraico e uma réplica grande da Arca da Aliança. Minha linha de raciocínio é interrompida quando um segurança, de porte grande e engravatado, sinaliza para uma jovem que não é permitido tirar fotografias lá dentro. Só então consigo reparar nas placas fixadas das paredes com o mesmo aviso, ofuscadas pelas janelas com arcos arredondados e

diversos vitrais coloridos intercalando desenhos bíblicos e do tradicional candelabro judaico com sete braços, a menorá. Posiciono-me na primeira parte do salão, inteiramente separado por um conjunto de divisórias retráteis, que se abrem conforme a quantidade de pessoas que ali estão. Ao meu lado está uma senhora de cabelos trançados, saia longa, meia-calça e camisa de botões. Segurava uma sacola transparente, em que levava uma carteira, dois pacotes de bolacha e uma bíblia. Tentei iniciar uma conversa que não vingou. Passado alguns minutos, a mulher se levantou, deixando o espaço vago para aquela que me acompanhou durante o restante do culto. Cínthia, cujo sobrenome eu me esqueci de perguntar, de 52 anos, frequenta o Templo Maior desde sua abertura, em 2017. Ao sentar-se ao meu lado, acredito que tenha sentido o cheiro de álcool vindo do meu corpo. Perguntei qual era o sermão do dia, tentando encenar uma voz embargada, característica de alguém que acabou de sair do bar, já esperando que ela também trocasse de lugar. Engano meu. A mulher, de cabelos longos e grisalhos, respondeu educadamente que todas as terças-feiras acontece a Corrente dos 70, indicada para os fiéis que procuram milagres e curas de doenças. Antes mesmo de perguntar como funcionava, os graves das caixas de som posicionadas por todo canto começaram a ecoar. Um cântico suave inundou o grande salão, e o pastor se posicionou na frente do altar. Todos os fiéis se levantaram, e o homem, que se identificara como pastor Guilherme Grando, foi ovacionado por todo o ambiente. Entre gritos de “Aleluia” e “Amém”, o homem de aparência jovem, usando camisa xadrez azul e gravata vermelha, pediu silêncio para poder começar a pregação. Com o tom de voz elevado, o ministro pregava sobre a força do Espírito Santo que seria encontrado somente na Igreja. Reforçava, a cada dois minutos, que o poder de Jesus curaria todos os enfermos ali presentes. Com os braços voltados para cima, em sinal de oração, os fiéis se dividiam entre súplicas e canções sobre o Divino. Cínthia, ao meu lado, segurou em minhas mãos e pediu que eu tivesse fé, pois seria curada do meu “vício” naquela noite. Tal frase me causou espanto e medo, tanto que até me esqueci de que estava vivendo um personagem. Em um momento específico, o pastor explicou a razão de a Corrente dos 70 ter essa denominação. “O senhor Jesus escolheu 70 homens e deu

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a eles a autoridade para curar todo tipo de enfermidade, quebrar todo tipo de maldição e expulsar todo tipo de espírito maligno que habita em ti.” Após a explicação, as luzes diminuíram e 70 homens se posicionaram aos pés do palanque em duas filas. Os 70 escolhidos, todos de paletó e gravatas vermelhas, ergueram as mãos para cima, em sinal de oração. O pastor, já bastante exaltado, gritava “Amém?” repetidamente enquanto os fiéis ressoavam na mesma entonação. Ao mesmo tempo, testemunhos de pessoas que haviam sido curadas na corrente eram transmitidos nos telões atrás do altar. Os vídeos mostravam um homem paralítico que tinha voltado a andar, uma mulher recuperada de um câncer na laringe, uma criança com má-formação cardíaca que estava devidamente curada. Segundo o pastor Guilherme, a medicação para todas as doenças era Jesus. A minha curiosidade para saber como funcionava a corrente já estava gritando quando finalmente o reverendo convidou os enfermos da noite para irem até os pés do palco. Os 70 escolhidos formaram uma ponte com as mãos e inúmeros fiéis levantaram-se de seus assentos e correram para dentro da corrente. “Passa fogo nesse lugar!”, gritava o pastor enquanto os religiosos deslocavam-se um por um no meio dos homens. Todos acreditavam que, ao chegar ao fim da corrente, estariam curados de qualquer doença ou dificuldade. Uma senhora de vestido simples e bengala apareceu no telão. Com um microfone na mão, ela alegava que havia cinco minutos era cega. Passou pela corrente e voltou a enxergar. Aos gritos de “Aleluia, Jesus!”, o pastor comemorava, e a Igreja estava em polvorosa. Cínthia perguntou se eu tinha interesse em passar pela corrente. De cabelos em pé, não consegui esboçar reação alguma. A mulher, que estava sozinha, me puxou pela mão até entrarmos na fila. Ao transitar pelo meio do túnel de mãos, os 70 homens oravam e profetizavam em prol dos “doentes”. Ao chegarmos ao fim, Cínthia estava muito emocionada. Eu ainda tentava entender o que havia acabado de acontecer. Voltei para o meu assento encarando o piso e seus detalhes em mármore com granito. O pastor Guilherme Grando fez uma oração final agradecendo pela vida de todos os enfermos que haviam sido curados naquela noite. Cínthia perguntou como eu me sentia após a cura. Ainda atordoada com os últimos acontecimentos, respondi que

me sentia bem. Com um sorriso no rosto, ela pediu que eu continuasse seguindo o caminho de Deus e que, se possível, voltasse para um próximo culto. Ao me afastar, me pego refletindo sobre a “missão falha” do meu personagem. Ao tentar encenar um comportamento polêmico, esperava represálias e ataques dos fiéis. Ao invés disso, conheci alguém especial que me acolheu caridosamente. Então talvez a missão não tenha sido falha. Talvez eu realmente tenha me curado da desconfiança e da cisma por algo desconhecido. Sucesso.

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