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Gaúcho é um estado de espírito – Marina Prata

Além das galhadas, ferraduras e pinturas de peões penduradas nas paredes, o grande galpão do CTG é decorado com um lustre cheio de frases e termos; dentre eles, tradição. Foi o que presenciei ao visitar o Centro de Tradições Gaúchas Vinte de Setembro, durante uma aula de danças típicas. O salão principal tem capacidade para 600 pessoas, e abriga uma lanchonete ao canto e mesas espalhadas em volta de um grande tablado. Ao chegar, fui recebida pelo professor, um senhor de óculos chamado José. Ou Zé, conforme todo mundo o chama. Ele estava vestido a caráter: com um lenço vermelho no pescoço, botas e bombacha (uma calça típica bem larga). Simpático, ele inteirou sua mais nova aluna sobre o local. O CTG é sustentado pelos bailes e pelas aulas de dança, que ocorrem todas as segundas, quartas e sextas à noite, com valor de 10 reais para não sócios. No último trimestre, foram arrecadados mais de 11 mil reais. O CTG existe desde 1962, e foi um dos primeiros criados fora do Rio Grande do Sul. O nome Vinte de Setembro homenageia o Dia do Gaúcho. Minha conversa com Zé é interrompida a todo momento por alunos que o cumprimentam calorosamente – aliás, todos ali parecem se conhecer muito bem. José está no CTG há dez anos, e é professor voluntário, assim como seus instrutores. Pergunto a ele se é gaúcho mesmo, e recebo uma resposta curiosa: “Gaúcho eu sou, mas sou daqui de Curitiba”. Um ponto de interrogação aparece em minha testa. “É que quem nasce no Rio Grande do Sul é rio-grandense. Gaúcho é quem, independentemente de onde nasceu, vive a cultura gaúcha.” José se envolveu com a dança gaúcha quando trouxe a sobrinha para fazer aulas no CTG e se interessou. Ele estava viúvo havia mais de dez anos, e nas aulas conheceu a atual esposa, que era sua instrutora. Fico curiosa para saber de onde vem todo o amor de José por uma cultura que não é de sua origem. “O CTG é uma grande família. É um ambiente bom, de respeito, como poucos hoje em dia.” Zé enche o peito de orgulho. A aula está para começar, e José me leva para a fila das prendas. Olhando pelo salão, percebo que sou a pessoa mais nova entre as que estão em volta do tablado. O professor demonstra a dança do primeiro

ritmo que vamos aprender, o chamamé. Não parece ser tão difícil: dois passos para a direita, um para a esquerda. A música começa, os casais já formados se encontram no centro do tablado e, do outro lado, eu e as outras mulheres sem par aguardamos um convite dos peões à frente. Quem me tira para dançar com um rodopio é, ainda bem, um instrutor. Leio no crachá que seu nome é David, e logo ele começa a me ensinar o chamamé. Eu queria entrevistá-lo, mas falar e dançar ao mesmo tempo era impossível. Estava concentrada em meus pés e na voz dele, fazendo a contagem para me ajudar: Um, dois, um. Um, dois, um. David era muito simpático e parecia empolgado. Ele disse que eu estava indo bem, não sei se com sinceridade ou apenas para me motivar. Enquanto dávamos a volta no salão, eu me atrapalhei e tivemos que parar a contagem algumas vezes. Conforme dançamos, eu passei a assimilar o movimento coordenado dos pés e a fala simultaneamente, e consegui conhecer um pouco mais sobre o instrutor. David também não é do Rio Grande do Sul, mas se lembra de ouvir música gaúcha com o pai desde pequeno. Sua irmã fazia dança no CTG, e como ele andava muito estressado com o trabalho, decidiu procurar as aulas para se distrair. Normalmente, os alunos se formam após um ano, quando há o baile de formatura. David conta com orgulho que se formou no ano passado, depois de apenas seis meses de aulas, e ainda foi surpreendido com o convite de José para ser instrutor. Ele acredita que a cultura gaúcha remeta ao interior e traz uma sensação de pertencimento, já que a comunidade é muito unida. Por isso, não importa o lugar onde a pessoa nasceu: “Ser gaúcho é um estado de espírito.” Algumas voltas pelo salão, e nos despedimos. De novo na fila das prendas, outro instrutor, Serginho, me tira para dançar. Ele dança mais “firme”, e corrige minha mão esquerda em seu ombro. “Precisa ficar mais para a frente. Se for para as costas, nós ficamos muito próximos, e na dança gaúcha não pode.” Serginho realmente entende sobre os ritmos típicos: ele identificou que uma das músicas não pertencia ao ritmo bugio, que estávamos aprendendo: “Quer ver? Vamos experimentar dois passos e dois. Viu como encaixa melhor?”. E ele tinha razão. Os parceiros de dança trocavam o tempo todo. Dancei com um instrutor de risada engraçada que não me deixava olhar para baixo. Ele pegava no meu pé e dizia: “Não tem nada de bonito no chão, você preci-

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sa olhar para o seu peão!”. Outro parceiro, que era aluno como eu, pisou três vezes no meu pé enquanto dançávamos. Teve um senhor, Olívio, que procurou me motivar ao saber que aquela era minha primeira aula. “Dançar é muito bom, faz bem para o corpo e para a cabeça.” Ao longo da aula, mais um ou dois peões disseram que eu estava indo bem para a primeira experiência, o que me fez dar um pouco de credibilidade ao instrutor David. O que me deixou mais curiosa é que nenhum dos gaúchos com quem conversei durante a noite toda era, de fato, do Rio Grande do Sul. E, enquanto perguntava, fui corrigida ao menos três vezes por usar gaúcho e rio-grandense como sinônimos. Durante o intervalo, aproveitei para conversar com algumas mulheres – e também para descansar, pois as danças eram bem mais difíceis do que pareciam. Me sentei com uma senhora que estava lá pela primeira vez, como eu. Perguntei por que ela tinha vindo. “Eu gosto de tudo que é gaúcho... Principalmente dos peões.” Ela ri. Uma das instrutoras, Adrilene, conta que vem às aulas no CTG há cinco anos, e costuma trazer o marido e a filha de 15 anos. Ela, assim como vários outros, faz questão de ressaltar que a dança do CTG não é como no bailão. “Aqui não tem esfrega-esfrega, é um ambiente de respeito.” O barulho das botas no tablado de madeira ficou mais alto durante o terceiro e último ritmo que aprendemos, a rancheira. Bastaram três voltas trotando pelo salão e aquela dança levou o que restava da minha condição física. Eu havia subestimado as danças gaúchas, e agora meus músculos queimavam. Porém, ninguém me deixava ficar sentada: David, Olívio e outros peões me puxavam de volta para a pista o tempo todo. Somente quando os casais abriram a rancheira (algo semelhante aos túneis da quadrilha de festa junina), consegui parar para descansar. Fiquei observando de longe os casais de gaúchos dançando alegres, cada um do jeito que sabia, exaltando a cultura que escolheram. E, enquanto batia os pés debaixo da mesa, ao ritmo da música, notei que havia acabado de ganhar uma bolha em cada um deles.

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