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5. O panorama da década de 1990
Assiste-se, na década de 1990, a um novo realinhamento político ideológico em nível internacional, marcado pela agenda neoliberal e pelos impactos sociais e econômicos da década anterior (1980), a “década perdida”. Essa crise resultou no crescimento do setor informal (PEREIRA, 1994 apud GOHN, 2012, p.297), constituindo-se como uma alternativa sustentada por políticas econômicas conservadoras que observaram nessa mão-de-obra um grande potencial antes inexplorado, e que se sustentando nesse setor, traçaram a estratégia para o reestabelecimento do crescimento econômico (GOHN, 2012, p.297). Esse setor se consolidou como uma condição de subsistência: os trabalhadores pertencentes a esse segmento não só contavam com uma remuneração mais baixa, como também se encontravam desarticulados enquanto classe trabalhadora, não se filiando a sindicatos e com direitos sociais restritos, incluindo-se nesse cenário a ausência do direito à habitação. Ademais, a condição de informalidade penalizava os trabalhadores pois os mesmos não eram cobertos pela rede de proteção institucional (previdência, diretos trabalhistas etc.).
Em território nacional, se observava um cenário de extrema pobreza e de violência crescente, que passou a alimentar essa dinâmica, uma vez que obrigava o trabalhador brasileiro à submissão a condições de trabalho cada vez piores (GOHN, 2012, p.300) e, portanto, forçava a subordinação do trabalhador à precarização de trabalho. Nesse sentido, a promoção do setor informal se configurou como mecanismo de desresponsabilização do Estado frente à proteção social, ao passo que o Estado, ao normatizar o setor informal, redefinia a condição de informalidade tanto no trabalho quanto na habitação, de modo a se tornar imperceptível o caráter excludente dessa condição (GOHN, 2012, p.297-298).
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Os grandes centros urbanos e as principais regiões metropolitanas se tornaram, por excelência, palcos dessas transformações e desses embates. Sendo assim, o avanço de políticas econômicas ortodoxas e a prioridade absoluta dada à estabilização e ao controle inflacionário, o caráter autoritário, centralizado e burocrático da estrutura estatal brasileira, marcado como locus de circuitos viciosos (CAMARGO, 2013, p.79) e o processo de desresponsabilização desse mesmo Estado contrastaram com o avanço de discursos progressistas e em focos de resistência de movimentos sociais.
Para Gohn (2012), a pressão popular, ainda presente em organizações e movimentos remanescentes, acabaria por alimentar o processo de desresponsabilização desse mesmo Estado, a partir da transferência de responsabilidades para a iniciativa privada, uma vez que o cenário de agravamento dos problemas sociais e a crise assistida do setor público brasileiro fomentariam o questionamento do caráter centralizador e excludente do Estado frente os beneficiários de suas
políticas públicas, e sua capacidade de responder às demandas sociais (TATAGIBA, 2002, p. 47).
Dessa forma, os chamados Movimentos Populares Reivindicatórios Urbanos que caracterizaram as lutas populares por melhores condições de vida nos centros urbanos na década de 1980 (ROYER, 2002, p. 105) observariam uma inflexão da conjuntura nacional na década seguinte, a partir de uma nova concepção de sociedade civil, e de uma nova relação entre a sociedade e o Estado, tida como reflexo dos ajustes estruturais oriundos das políticas neoliberais implantadas, o que promoveu o agravamento das desigualdades sociais e econômicas e mesmo consequências sobre a capacidade de mobilização e organização políticas da sociedade civil (DAGNINO, 2002, p. 11).
Por conseguinte, observa-se na década de 1990 um intenso movimento de “atores e forças sociais envolvidos com a invenção partilhada de novos formatos e desenhos de políticas” (TATAGIBA, 2002, p. 47), simultaneamente às novas delimitações nas relações Estado-sociedade. Assim, admitia-se como legítima a existência de instituições situadas em um novo espaço, situado entre o mercado e o Estado, que tinham como finalidade exercer a mediação entre coletivos de indivíduos organizados e as instituições do sistema governamental. Segundo Gohn (2012), em território nacional, esse novo espaço seria preenchido pelas Organizações Não Governamentais (ONGs), pertencentes ao chamado terceiro setor, e por alguns movimentos de caráter cidadão, que passaram a se revelar como estruturas capazes de “desempenhar papéis que as estruturas formais, substantivas, não têm conseguido exercer enquanto estruturas estatais, oficiais, criadas com o objetivo e o fim de atender a área social” (GOHN, 2012, p.305).
Simultaneamente a esse processo, assiste-se à passagem da década de 1980/1990 à reformulação de pautas oriundas de movimentos sociais de caráter heterogêneo, entre elas as comunidades de base, os movimentos de moradia, as ocupações de parcelas de terra de periferias, os movimentos de igrejas e correntes religiosas e as experiências de autogestão e assessorias técnicas politizadas (CAMARGO, 2013, p.79). Surgem também novos núcleos associativos e o fomento de novas práticas de gestão, nos quais se enquadram as assessorias técnicas e os movimentos sociais por moradia (CAMARGO, op.cit. p.80). Nesse aspecto, destaca-se no campo habitacional a trajetória a União dos Movimentos de Moradia (UMM), fundada em 1987 e que reuniria “(...) diversos grupos de moradia – sobretudo na Zona Leste de São Paulo – que se articulavam em torno de lideranças ligadas às Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica. ” (CERQUEIRA, 2016, p. 35).
Segundo Tatagiba (2015), a UMM se transformaria no embrião da União Nacional por Moradia (UNMP) – criada posteriormente à UMM, em 1989 – e que seria responsável pela articulação de movimentos por moradia em diversas regiões do país (CAMARGO, 2013, p. 83). Assim como a UNMP, passariam a atuar no plano nacional outras quatro organizações articuladoras voltadas ao campo habitacional: a Central de Movimentos Populares (CMP), a Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM), o Movimento Nacional de Luta Por Moradia (MNLM) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) (TATAGIBA, 2015, p. 86).
A fragilidade da máquina estatal na década de 1990, por sua vez, se comprova dentro do campo habitacional frente ao longo período de
crise dos programas federais até então vigentes, decorrentes da extinção do Banco Nacional de Habitação (BNH) em 1986, e da crise estrutural do Sistema Financeiro da Habitação (SFH). Após o desmonte do BNH, o campo habitacional não só se encontrava em um cenário de ausência de políticas públicas, como também sofria reestruturações profundas; em suma, assistia-se à retração das políticas promovidas diretamente pela estrutura estatal e a incorporação das antigas atribuições do BNH à Caixa Econômica Federal (CEF), evidenciando a ausência de uma proposta concisa para o setor (SHIMBO, 2010, p. 64-65).
Na esfera federal, enquanto a administração de Fernando Collor (1990-1992) pouco inovou “em relação à administração anterior no referente a mudanças no Sistema Financeiro da Habitação” (AZEVEDO, 2007, p. 19), a administração seguinte, de Itamar Franco (1992-1995), atuaria de forma a apostar em novos desenhos políticos e gestionários, além de acrescentar uma tímida, porém presente, possibilidade de atuação conjunta entre o Estado e a sociedade civil.
Mesmo não alterando o quadro de crise do SFH, a gestão de Itamar Franco introduziu programas que atuariam em duas frentes: as linhas de financiamento tradicionais, como o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e recursos oriundos do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), e a valorização dos órgãos municipais, a partir da elaboração de programas como o Habitar e o Morar Município. (AZEVEDO, 2007, p. 21). Tais programas, por sua vez, eram capitaneados pelo Ministério do Bem-Estar Social e necessitavam de duas estruturas: (i) um Conselho Estadual ou Municipal de Bem-Estar Social, composto por membros indicados pelo governo, e representantes da sociedade civil; e (ii) um Fundo Estadual ou Municipal responsável
por canalizar os recursos e permitir um fluxo de verbas constante para a produção habitacional do programa (AZEVEDO, op.cit. p.21-22). No que diz respeito à construção de moradias ou melhorias habitacionais, o programa especificava que o regime de trabalho a ser adotado deveria ser o de “ajuda mútua ou ‘auto-ajuda’, enquanto caberia ao governo estadual ou municipal a obrigação de prestar assistência técnica, através de equipe interdisciplinar (...). No caso de obras de infra-estrutura e equipamentos comunitários, além das modalidades citadas, eram permitidos administração direta ou contrato de empreitada a firmas particulares” (AZEVEDO, op.cit. p. 21). Tais programas, mesmo apresentando avanços e incentivando uma política descentralizadora, encontrariam dificuldades, em razão da inexistência de um fundo federal único, o que forçava a dependência de verbas orçamentárias ou de recursos provisórios (IPMF), situação que acabaria por fragilizá-los institucionalmente. (AZEVEDO, op.cit. p. 22).
Já a partir da primeira administração de Fernando Henrique Cardoso, a máquina estatal continuava a transferir aos municípios parte das responsabilidades e dos encargos relativos à provisão habitacional de baixa renda, de forma a “reforçar o papel dos governos municipais como agentes promotores da habitação popular, incentivando-os inclusive a adotar linhas de ação diversificadas, voltadas para urbanização de favelas e recuperação de áreas degradadas” (AZEVEDO, op.cit. p.23). Contudo, a administração de FHC trouxe consigo um novo paradigma para a política habitacional, a partir da introdução de princípios de mercado na provisão habitacional (ARRETCHE, 2002 apud SHIMBO, 2010, p. 66).
Segundo Santos (1999), os documentos “Política Nacional de Habitação (1996)” e “Política de Habitação: Ações do Governo Federal” de Jan./95 a Jun./98, da Secretaria de Política Urbana do Ministério do Planejamento e Orçamento do Brasil, explicitam a condição do modelo de provisão habitacional anterior, caracterizado como: esgotado, regressivo e insuficiente. (SANTOS, 1999, p.22). Frente a esse cenário, a reformulação de programas da Política Nacional de Habitação no governo FHC direcionou a atuação dos programas federais em três frentes, sendo elas:
(i) atuação no financiamento (a fundo perdido ou subsidiado) a estados e municípios para a reurbanização de áreas habitacionais muito degradadas com melhoria das habitações existentes/ construção de novas habitações e instalação/ampliação da infraestrutura dessas áreas, ocupadas principalmente pelas camadas populacionais de renda inferior a três salários-mínimos mensais; (ii) atuação na provisão de financiamentos de longo prazo para a construção/melhoria de habitações destinadas principalmente à população de renda mensal até doze salários-mínimos mensais; e (iii) políticas voltadas para a melhoria da performance do mercado habitacional (ou enabling market policies), tanto na reformulação da legislação quanto no desenvolvimento institucional e tecnológico do setor (SANTOS, 1999, p.22).
Nesse aspecto, as reformulações propostas por FHC mantinham uma lógica de funcionamento baseada em investimentos habitacionais provenientes de recursos onerosos, como o FGTS e Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), enquanto que os recursos a fundo perdido do Orçamento Geral da União (OGU), necessários para a formação de programas habitacionais que abrangem a população de baixa renda por meio da promoção pública, eram diminuídos (MARICATO, 1998, p.6). Dessa forma, tornou-se possível observar na gestão de Fernando Henrique Cardoso, elementos que ressaltavam a priorização dada pela “regulação dos recursos financeiros onerosos visando melhor desempenho do mercado” (MARICATO, op.cit. p. 2). Sendo assim, evidencia-se no campo federal a confluência entre o Estado e o mercado dentro das políticas habitacionais ao longo da década de 1990, ao passo que em um segundo momento, o capital financeiro seria acrescentado a essa relação (PAULANI, 2008 apud CAMARGO, 2013, p.81). Obviamente, essa reorientação das políticas públicas do governo federal para a habitação, no período de FHC, condicionariam e impactariam tanto a moldura institucional quanto os investimentos efetivos em habitação social.