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1. Revisitando a literatura
Há largo consenso na literatura especializada de que o processo de desenvolvimento urbano brasileiro se caracterizou pela segregação socioespacial, a clivagem centro-periferia como foi nomeado este modelo. Na raiz desse padrão está a adoção do modelo de desenvolvimento orientado pelo desenvolvimentismo e pela substituição de importações que promoveram a industrialização do país no centro-sul a partir da ascensão do varguismo. Não por acaso, a acelerada urbanização do século XX também foi acompanhada de expressivos fluxos migratórios internos na direção do Sudeste e por políticas habitacionais erráticas e insuficientes, as quais não atenderam a população de baixa renda dos centros urbanos. O que esse cenário evidencia, por sua vez, é o acirramento da pobreza paralelamente ao processo de desenvolvimento técnico-industrial brasileiro ao longo do século XX.
Segundo Valladares (1994) pode-se dividir o processo de acirramento da pobreza no Brasil em três períodos principais, sendo eles; a virada dos séculos XIX-XX, as décadas de 1950-60, e as décadas de 1970-80. Tais períodos, por sua vez, pautam não só a forma como a pobreza é tratada em nível social e econômico, como também simbolizam a transição espacial marcada pelas alternativas habitacionais encontradas pela população marginalizada, nos quais se pode assimilar a passagem do cortiço na virada do século para a favela nas décadas
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de 50-60, seguidos pela formação das periferias nas décadas de 1970- 80. A diferenciação terminológica e a divisão em recortes temporais, por sua vez, têm como finalidade ressaltar a situação de constante conflito dentro dos territórios urbanos brasileiros ao longo do século XX, situação essa marcada fortemente pelo discurso ideológico e pela segregação socioespacial.
Sendo assim, diante do apelo ideológico das classes dominantes, da noção modernizadora e higienista e quando tratada como classe perigosa no “processo de transição da sociedade brasileira para uma ordem capitalista, com a gradual passagem das relações sociais de tipo senhoril-escravista para as relações sociais de tipo burguês-capitalista” (VALLADARES, 1994, p.83), os estratos populares foram reduzidos a espaços marginalizados do território urbano brasileiro, sendo o cortiço a primeira delas.
Tal clivagem, por sua vez, se acirrou ao longo do século XX, pautando nas décadas de 1950-60 a organização socioespacial conhecida como “favela”, a qual passaria a se impor cada vez mais nas cidades em expansão. Esse fenômeno marcou o modelo de desenvolvimento econômico desigual evidenciado pela acelerada urbanização e industrialização que prevaleceram no período pós-30. Ainda segundo Valladares (1994), assim como o cortiço, a favela seria marcada como
o local de residência dos estratos marginalizados e estigmatizados da sociedade, agora conhecidos como “bandidos”, o que supostamente daria a esse lugar um caráter marcado pela violência.
A consolidação da periferia urbana a partir da década de 1970 não representa a substituição da configuração da favela, mas se soma a ela como outra solução habitacional popular frente ao cenário de crescente miséria assistido nas décadas de 1970-80. Dessa forma, ambas as configurações espaciais (favela e periferia) passam a existir simultaneamente no território urbano, muitas vezes se mesclando. Assim se chegou ao ponto de se medir a importância quantitativa das favelas nas áreas urbanas no Brasil com o crescente índice de casas próprias construídas por meio da força de trabalho das classes populares (MARICATO, 1987).
A esse processo relacionam-se elementos ideológicos que reproduzem a propagação da mesma ideologia conservadora ligada à casa própria encontrada nos países centrais e transposta para os países periféricos do capitalismo (HARVEY, 1982 apud MARICATO, 1987). Dessa maneira, a consolidação da periferia urbana localizada nas franjas das cidades brasileiras adiciona ao cenário de segregação socioespacial a inserção de um novo agente dentro do contexto urbano: o do proprietário de baixa renda.
Dessa perspectiva, a noção de propriedade privada da casa acaba por ter um papel central frente ao controle social das classes mais pobres. Não só os estratos populares são mais uma vez marginalizados na dinâmica urbana como se encontram diante de uma lógica que combina as condições de exploração da mão de obra com a justificativa e a defesa da propriedade privada não só quanto à moradia, como também em outras esferas, inclusive dos meios de produção (MARICATO, 1987). Para tanto, tem-se a propagação da noção de segurança e de progresso pessoal pela conquista da casa própria pelo trabalhador, ao mesmo tempo em que se constitui um elemento de fragmentação da classe trabalhadora (MARICATO, op.cit.). Nesse sentido, deve-se atentar para os motivos que tornam a casa própria a principal saída para a população trabalhadora que, por sua vez, deseja evitar a favela (que se torna associada a estigmas e preconceitos) e a insegurança do despejo (MARICATO, op.cit.). Dentre esses motivos, atribui-se o papel da manutenção de um amplo exército industrial de reserva (BONDUKI, ROLNIK, 1978) à estagnação dos salários a um nível baixo, tendo como resultado a impossibilidade de pagamento de aluguéis (MARICATO, 1987) e o impedimento da aquisição da casa própria dentro do preço convencional de mercado. Ademais, segundo Valladares (1994), a crescente desigualdade encontrada no cenário urbano brasileiro desse período pode ser ilustrada pelos dados que indicam que, em 1970, 53% das famílias residentes das áreas urbanas já possuíam renda per capita inferior a meio salário-mínimo. Na década de 1980, 60% dessa mesma população residente nos centros urbanos só recebia até um salário mínimo (ABRANCHES, 1985 apud VALLADARES, 1994). Somado a tais dados, segundo o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em 1981, na Região Metropolitana de São Paulo, a obtenção da casa própria entre as famílias de baixa renda já compreendia 48% do total da população (BONDUKI, 2004). Nesse sentido, pode-se concluir que a casa própria surge como “um elemento de segurança objetiva contra a rotatividade no emprego
(ou desemprego aberto) e contra o baixo poder aquisitivo, já que os salários mal chegam a cobrir as despesas de alimentação, saúde, transporte, etc.” (MARICATO, 1987, p.26).
Dessa maneira, afirma-se a conjuntura em que o modo de produção capitalista passa a exercer sua dominação não somente no local de trabalho, mas também no local de moradia, sendo que, para tanto, se mantém necessária a determinação (por meio da lógica acumulativa) do modo de vida da força de trabalho nos termos habitacionais, construtivos e nos meios coletivos de consumo (MARICATO, 1987). Nesse sentido, “convém mencionar que o sistema capitalista pressupõe a destruição dos meios autônomos de vida, basicamente, na expropriação da terra e dos instrumentos produtivos” (KOWARICK, 1979, p.55), gerando condições de consumo alimentadas pela venda da força de trabalho das camadas populares. Sendo assim, “a casa, a habitação, é uma mercadoria como não importa qual outra, que é produzida tendo por objetivo a finalidade geral da produção capitalista, isto é, o lucro. ” (SINGER, 1962, p. 29 apud FERRO, p. 105). Por conseguinte – frente ao cenário de “aburguesamento da economia pré-capitalista brasileira” (IMPÉRIO apud FERRO, p. 37) e diante da propagação da noção de propriedade (noção burguesa) pelo fomento da ideia de segurança vinculada à propriedade individual (a casa própria) –, o proprietário urbano de baixa renda acaba por tornar sua habitação, antes essencialmente valor de uso (FERRO, 1969 apud MARICATO, 1987), em um elemento de extração de renda, por meio da possibilidade de extração de alugueis ou da valorização pelo efeito das obras públicas em seu entorno. Disso resulta a diminuição do poder de contestação da parcela da classe trabalhadora que é proprietária, fomentando-se dessa forma a disputa pelos espaços onde se encontram os investimentos públicos em obras e equipamentos urbanos (MARICATO, 1987).
Frente a esse cenário, a cidade se torna palco de um processo conflituoso constante, marcado pelo antagonismo entre o capital e o trabalho, que, por sua vez, serve de pano de fundo para a luta em torno do ambiente construído (HARVEY, 1982 apud MARICATO, 1987). Desse modo, a aquisição da casa própria pelo morador de periferia diante do chamado “problema” habitacional se relaciona a dois processos interligados: o primeiro, referente às condições de exploração do trabalho propriamente ditas; e o segundo, decorrente do processo anterior, a espoliação urbana, caracterizada pela somatória de “extorsões que se operam através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência e que agudizam ainda mais a dilapidação que se realiza no âmbito das relações de trabalho” (KOWARICK, 1979, p.59).
Nesse sentido, a busca pela casa própria do trabalhador de baixa renda encontra na prática da autoconstrução uma solução para sua carência, não em termos de economia de gastos, mas sim em termos de subsistência. A partir dessa perspectiva, consolida-se o “autoempreendimento da casa própria” (BONDUKI, 2004, p.276), condição essa vinculada à custa de um enorme esforço familiar, que diz respeito à ocupação de áreas, levantamento de barracos e autoconstrução em terrenos clandestinos (GOHN, 1991).
Por conseguinte, a conformação espacial das regiões periféricas (onde se incluiu o município de Osasco) organiza-se pela lógica da
“reprodução da força de trabalho na etapa recente de expansão do capitalismo no Brasil” (BONDUKI, ROLNIK, 1978, p.118). Isto ocorre por meio da dupla exploração da mão de obra de baixa renda, presente tanto nas altas taxas de acumulação quanto no esforço despendido para construção de suas moradias no “tempo livre” do trabalhador, caracterizado por Kowarick (1988) como “sobretrabalho”, e detalhado na obra de Oliveira (1975).
Esse fenômeno resulta em um intenso crescimento espacial medido pela construção de pelo menos um milhão de casas na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) nos últimos cinquenta anos, simbolizando grande quantidade de recursos monetários, materializados na forma de mão de obra vinculada ao processo de produção habitacional (BONDUKI, 2004).
A esse processo somam-se os interesses específicos do capital imobiliário e dos proprietários de terra (HARVEY, 1982 apud MARICATO, 1987), que, na posição de realizadores de loteamentos das localidades periféricas, acabam por viabilizar a venda de terrenos por preços reduzidos frente à inexistência de investimentos em infraestrutura em tais localidades. Bonduki (2004) descreve esse processo a partir da venda de pequenos terrenos de zona rural na forma de lotes localizados em áreas urbanas, resultando dessa maneira em vazios entre a zona já urbanizada e os novos loteamentos. Logo, segundo Maricato (1976), observa-se a relação direta entre a prática da autoconstrução e à especulação imobiliária.
Dentro desse cenário, portanto, a figura do loteador se aproxima do empreendedor capitalista frente ao seu objetivo de lucro tendente à taxa de lucro média (BONDUKI, ROLNIK, 1978) o que implica a adoção de medidas que contornem o cumprimento de exigências legais no processo de loteamento, visando dessa forma à redução do preço final do lote e evitando a diminuição da demanda solvente.
Sendo assim, em função da “diminuição da demanda solvente, condicionada, em última instância, pelos baixos rendimentos percebidos pelos trabalhadores, são numerosos os empreendedores que não submetem seus loteamentos à aprovação, causando o que genericamente se costuma chamar de ‘loteamentos clandestinos’” (BONDUKI, ROLNIK, 1978, p.126).
Nesses termos, “as periferias urbanas de São Paulo se desenvolveram, assim como a maior parte do Brasil, (...) como uma arena de conflitos por terra na qual as distinções entre ocupação legal ou ilegal são temporárias e as relações entre elas, perigosamente instáveis” (HOLSTON, 2013 apud ROLNIK, 2015). Por fim, consolida-se dentro dessa perspectiva o processo denominado como periferização, no qual se observa:
Crescimento rápido e desordenado das franjas metropolitanas a partir de processos de parcelamento do solo levados a cabo por pequenos e médios agentes imobiliários que se especializaram em “driblar” a legislação urbanística, criando loteamentos irregulares,
muitas vezes clandestinos (VALLADARES, 1994, p.102).
A viabilidade desse modelo só se tornou possível frente à grande quantidade de terra disponível destinada ao assentamento popular nas regiões periféricas nos grandes centros urbanos. Pois foi graças à disponibilidade de terra que o “lucrativo processo de expansão periférica pôde se alastrar sem limites, pelo menos até a década de
1970, garantindo novas áreas de loteamentos nos quais a população de baixa renda conseguia adquirir um lote popular e construir suas casas” (BONDUKI, 2004, p.313).
Com relação às políticas públicas destinadas a provisão habitacional, a década de 1970 assistiu à orientação dos recursos oriundos do Banco Nacional de Habitação (BNH) rumo ao “financiamento de governos estaduais e municipais na produção de obras de infraestrutura urbana, tais como implantação ou melhoria do sistema de abastecimento de água e esgoto sanitário, do sistema viário, da rede de distribuição de energia elétrica, de transporte e outras” (MARICATO, 1987, p.33).
A atuação centralizadora do BNH a partir do modelo desenvolvimentista teve como resultado a difusão de um modelo de intervenção que seria aplicado em quase todo o território do país, sem levar em consideração as peculiaridades urbanas, sociais e culturais de cada lugar. Ademais, foi na década de 1970 que o BNH passaria a funcionar como um banco de segunda linha (MARICATO, 1987). Logo, a operacionalidade do BNH acabaria por caracterizar um modelo autoritário em suas concepções políticas; centralizador em sua gestão e que acabaria por negar qualquer tipo de participação popular em qualquer nível, caracterizando dessa maneira o modus operandi do próprio órgão. Dessa forma, percebe-se o papel fundamental do Estado frente à sua consolidação como figura responsável pela estabilidade do modelo de acumulação vigente, ao mesmo tempo em que se buscava garantir o controle e a contenção de movimentos reivindicativos para a efetivação do mesmo modelo em questão. (KOWARICK, 1979).
Paralelamente, políticas públicas voltadas à habitação (materializadas na atuação do BNH) visando atender às camadas
populacionais mais pobres, optaram por “rebaixar a qualidade da construção e tamanho da unidade, financiando moradias cada vez menores, mais precárias e distantes” (BONDUKI, 2004, p.320). Em nível federal, houveram programas de financiamento como “Profilurb (Programa de Financiamento de Lotes Urbanizados, 1975), Promorar (Programa de Erradicação de Sub-Habitação, 1979) e João de Barro (Programa de Autoconstrução assistida, 1984) ” (TATAGIBA, 2015, p.92); e estes acabaram por fomentar a autoconstrução como solução para o problema da habitação popular (BARAVELLI, 2007 apud TATAGIBA, 2015, p.92). Entretanto, os resultados de tais programas se tornariam quantitativamente inexpressivos frente às poucas unidades construídas por todo o país.
Sendo assim, se evidencia a insuficiência e a incapacidade de garantir o acesso à habitação da camada popular de baixa renda, que, “sem alternativas, continuou a auto empreender a construção da casa, de modo cada vez mais improvisado, em loteamentos precários ou em favelas” (BONDUKI, 2004, p. 320).
Dessa forma, no final da década de 1970 e no início da década de 1980 constata-se não só a ineficácia da atuação estatal nas políticas públicas de provisão habitacional destinada à população de baixa renda, como também a retração de sua capacidade produtiva em um cenário de “esgotamento do modelo técnico-industrial gerado pelo processo substitutivo de importações” (KOWARICK, 1994, p.57).
As consequências dessa crise tiveram impacto direto nas camadas populares: ao longo da “década de 80, coube à classe trabalhadora o ônus do ajuste estrutural, tendo como cenário privilegiado a Metrópole Paulista” (KOWARICK, 1994, p. 59). Tome-se como exemplos a
contenção salarial, a extensão da jornada de trabalho ou simplesmente o número crescente de desempregados sem qualquer tipo de assistência estatal.
Dessa maneira, cristaliza-se no início da década de 1980 a retração de políticas sociais relacionadas à provisão habitacional, ao mesmo tempo em que se dá a consolidação da autoconstrução como prática comum das camadas de baixa renda. Por conseguinte, somado ao processo de expansão da autoconstrução, segundo Maricato (1976), tem-se o processo de abstenção do poder público frente ao déficit habitacional.
A renúncia estatal se evidencia como ato consciente, uma vez que “as condições habitacionais resultantes desse modo de produção, de casa e espaço urbano, são bastante conhecidas e fartamente reconhecidas pelos relatórios técnicos oficiais (isto é, dos órgãos do governo)” (MARICATO, 1976, p.91). Os levantamentos da época indicam que 50% das casas do município de São Paulo, onde a renda média é mais baixa, foram realizadas pela autoconstrução (EMPLASA apud MARICATO, 1976).
A conjuntura do final da década de 1970 – refletida na atuação do Estado frente à crise do regime militar e na retração de políticas públicas – resultou na formação de um cenário extremamente combativo, com a emergência de vários movimentos sociais. A repressão policial e o modus operandi da política de Estado revelou a dificuldade de se buscar alternativas que prezariam pelo reconhecimento da legitimidade dos atores individuas e coletivos presentes nesses cenários periféricos e ambientes de vulnerabilidade social (FELTRAN, 2005).
Sendo assim, com o “fim do BNH em 1986 e a desestruturação posterior da política habitacional em nível nacional, novas perspectivas puderam se abrir para repensar a habitação social, apesar de sensível redução de recursos ” (BONDUKI, 2004, p.319). Dessa forma, a partir do crescente desgaste dos programas habitacionais tradicionais destinados à habitação popular, “surgem as propostas alternativas onde se articulam o povo – lideranças populares, técnicos assessores dos movimentos, técnicos estatais, políticos e administradores públicos” (GOHN, 1991, p.165).
Em suma, o fim do regime autoritário também assinala o colapso daquela forma centralizadora e ineficaz de se implantar políticas de desenvolvimento urbano e de habitação social, cujo principal ícone institucional havia sido o BNH em seus 26 anos de existência (1964- 1986). A escassez de moradia, a crise econômica com grandes impactos sociais, a periferização, a segregação socioespacial, o ambiente político da redemocratização e a emergência de movimentos sociais (com destaque para o Movimento Nacional pela Reforma Urbana) pressionavam ainda mais o Estado a oferecer soluções para as crises urbana e habitacional.