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9. A dialética do mutirão e da autogestão na experiência COPROMO
Historicamente – a partir da Revolução Industrial e da emergência do movimento operário –, a prática da autogestão se inspira e se vincula às correntes de pensamento e aos movimentos identificados com as ideias anarquistas e marxistas. Em comum, ambas as tradições elegeram como seu principal alvo o confronto com o Estado, mas precisamente o “Estado burguês”. Contemporaneamente, novas formas de experimentações sociais se associam a redutos de resistência aos modelos capitalistas convencionais, por meio de “grupos informais, associações e empresas de trabalhadores, organizadas em bases associativas e de autogestão” (GAIGER, 2003, apud LOCKS; VERONESE, 2012, p.268), além da formação de estruturas cooperativas. Na América Latina, destacam-se as experiências cooperativas uruguaias, que influenciaram e inspiraram a organização de experimentações cooperativas em São Paulo.
O conceito de autogestão se mantém reconhecidamente polêmico, e permanece até os dias atuais no cerne do debate de diversos pensadores. Entre os teóricos que trataram desse tema, destacam-se Yvon Bourdet e Alain Guillerm, principais “propositores da corrente teórica autogestionária do final da década de 1970” (LOCKS; VERONESE, 2012, p.269). Ademais, a expressão “autogestão” aparece na linguagem acadêmica do ocidente a partir da década de 1950, mas em termos de experiência histórica se mostra bastante anterior (LOCKS; VERSONESE, op.cit.).
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Com base nesse quadro de referências, segundo Locks e Veronese (2012), a definição de autogestão aparece rapidamente conceituada no Dicionário do Pensamento Marxista vinculada à perspectiva econômica do termo, ou seja, no sentido de um modo de organização do sistema produtivo:
A autogestão refere-se à participação direta dos trabalhadores na tomada de decisões básicas da empresa. Os meios de produção são socializados. Em sentido mais geral, a autogestão é uma forma democrática de organização de toda a economia, constituída de vários níveis de conselho e assembleias (MARKOVIC, 2001, p. 22
apud LOCKS; VERONESE, 2012, p.272).
Já a definição de Bourdet e Guillerm se afasta da perspectiva marxista: ao “justificar uma autogestão radical, Bourdet e Guillerm negam toda e qualquer tentativa de transformação a partir das instituições do próprio sistema” (LOCKS; VERONESE, 2012, p. 277). Assim, a definição do conceito de autogestão para Bourdet e Guillerm se mostra como uma “organização nacional que suprime o capitalismo e o estatismo em benefício de um conjunto autogestionário de cooperativas, igualitariamente associadas segundo um plano elaborado pela soma de necessidades e desejos” (GUILLERM; BOURDET, 1976, p. 30 apud LOCKS; VERONESE, 2012, p. 278).
Com uma abordagem mais contemporânea, Albert (2004), didaticamente constrói uma narrativa que ressalta o objetivo máximo da autogestão, a saber, a influência de cada agente envolvido nas decisões a serem tomadas “proporcionalmente ao quanto ele é afetado, sendo entendido como um problema, o fato de se dar a alguns agentes, participação em demasia e a outros, pouca participação” (ALBERT, 2004, p. 25). A isso, o autor acrescenta:
Para chegarmos à autogestão e fazermos com que as decisões sejam satisfatórias, cada agente deve ter fácil acesso às avaliações relevantes dos resultados esperados, e deve ter conhecimento geral e segurança intelectual suficientes para entender as avaliações e desenvolver suas preferências sob sua luz (...). Portanto, para a autogestão, cada indivíduo ou grupo envolvido numa decisão deve possuir meios organizacionais para ter sucesso e tornar suas vontades conhecidas, assim como os meios para controlá-las de maneira sensata, com suas contribuições bem-informadas, tendo influência proporcional adequada (ALBERT, 2004, p. 25).
À luz das experiências de mutirão autogestionário postas em prática ao longo da década de 1990 em território nacional – e principalmente na RMSP – a dinâmica autogestionária se modifica, pois ocorre em um campo de contradições. Assim, “apesar do mutirão constituir prática corrente como cultura de ajuda mútua no Brasil, ele não guarda absolutamente nenhuma referência anterior ao que se compreende por autogestão: gestão autônoma de processos produtivos que implica na organização coletiva e participada dos mecanismos de
administração dos recursos – sejam eles quais forem” (LOPES; RIZEK, 2005, p.12).
Tal afirmação vem ao encontro não só dos aspectos teóricos da terminologia autogestionária, mas também se dá a partir da contraposição do cenário brasileiro com demais experiências internacionais, como o caso uruguaio (LOPES; RIZEK, op.cit.). Assim, o contexto no qual surgem as primeiras experiências ditas autogestionárias em território nacional, e a conjuntura para os Movimentos Populares Reivindicatórios Urbanos reivindicarem tais procedimentos, durante a década de 1980 e os anos que se seguiram, não se mostram os mesmos das condições sociopolíticas que caracterizaram as formulações e experimentações clássicas de autogestão (LOPES; RIZEK, op.cit.). Nesse sentido, para a compreensão do processo autogestionário do mutirão brasileiro – e principalmente do caso paulista – torna-se fundamental a contextualização socioeconômica desse período: uma sociedade reconhecidamente conflituosa, marcada pela ausência dos dispositivos estatais de proteção social, em que os modos de circulação e distribuição de riqueza se mostravam cada vez mais desiguais, enquanto a crescente mão de obra trabalhadora excedente e a expansão da economia informal traçavam a nova realidade brasileira sob a ótica de um mundo globalizado (TELLES, 2007, p. 195).
Nesse novo contexto, o território urbano passa a ser redesenhado dentro das “trilhas de redes de subcontratação que chegam aos pontos extremos das periferias pelas vias de uma meada inextricável de intermediários e intermediações que reativam o trabalho a domicílio e redefinem o chamado trabalho autônomo” (TELLES, op. cit. p.196). Assim, grande parte da mão de obra localizada nos grandes centros
urbanos em expansão se manteve fora das estruturas convencionais de trabalho; não articulada enquanto classe, desamparada dos dispositivos legais que protegem o trabalhador comum, e refém de um processo de desresponsabilização do Estado (GOHN, 2012, p.297-298), o que conferiu aos centros urbanos um desenho precário e caótico, onde prevaleceu a informalidade tanto no trabalho quando na habitação.
Como medidas paliativas, os programas sociais se multiplicaram nas periferias, e ao seu redor, proliferaram as associações “ditas comunitárias que tratam de se converter à lógica gestionária do chamado empreendedorismo social, se credenciar como ‘parcerias’ dos poderes públicos locais em interação com miríades de práticas associativas e ao lado dos movimentos de moradia e suas articulações políticas, partidos e seus agenciamentos locais e, claro, a quase onipresença de ONGs vinculadas a circuitos e redes de natureza diversa e extensão variada” (TELLES, 2007, p.197).
Em relação ao que Francisco de Oliveira denomina por “Era de indeterminação”, Telles (2007) reafirma que, no que cabe a esse momento, a agenda política se manteve a partir de um ‘Estado de exceção’, onde se observa “(...) o esfacelamento da política agora transformada na administração das urgências” (TELLES, 2007, p.199). Em relação à formulação de Laymert Garcia dos Santos, a autora acrescenta; “a noção de ‘exceção permanente’ (...) aparece como categoria política para caracterizar uma situação em que a política foi implodida por todos os lados, deslizando para a gestão cotidiana combinada com uma coerção renovada” (TELLES, op.cit). No caso específico dos mutirões autogestionários, esta prática se mostra como uma “dialética negativa” (OLIVEIRA, 2006). Assim, diante da necessidade de se administrar a carência habitacional aguda incidente dos centros urbanos em expansão, o mutirão age de forma a não atacar o problema habitacional por meio do capital, mas a partir de uma solução que reside principalmente na mão de obra dos trabalhadores mutirantes. Dessa forma, ao invés de se elevar a contradição do sistema no qual ela se insere, a prática do mutirão autogestionário a rebaixa ao acatar a condição de “sobretrabalho” (OLIVEIRA, 2006, p.72).
Aqui também se insere a problematização acerca da atuação das assessorias técnicas, principalmente no contexto específico da década de 1990, período em que COPROMO se consolida; nesse momento, se realça a dificuldade de delimitação entre a atuação das assessorias técnicas e o caráter assistencialista das demais organizações sem fins lucrativos pertencentes ao terceiro setor, que cresceram em número e em visibilidade nacional no contexto de ascensão da chama “cidadania empresarial” (LOPES, 2018, p.243). Em um processo denominado por Dagnino (2002) de “confluência perversa”, e destacado por Lopes (2018), frente à desresponsabilização do Estado e aumento do protagonismo da sociedade civil, o discurso de participação passa a ser utilizado como “enquadramento da ação heterônoma que interessa ao Estado manter e legitimar” (MIAGUSKO, 2011, p.168).
Ademais, as experiências de grupos voltados à assistência técnica, materializados na forma de “práticas compensatórias” conduzidas pelos projetos realizados, se tornam úteis “à perspectiva neoliberal de enxugamento dos deveres do Estado” (LOPES, 2018, p.243), uma vez que esses projetos – ao fomentarem novas formas de sociabilidade e administração autônoma de serviços – passam a negar a intervenção Estatal, “anunciando que dele apenas esperam que
não atrase as parcelas dos financiamentos” (LOPES, op.cit.). Sendo assim, a multiplicação de gestão social a partir de novos dispositivos gestionários assinala o que Telles (2007) denomina como era “pós política” (TELLES, 2007, p. 202).
Essa abordagem permite confrontar as problemáticas e contradições do caso específico do conjunto COPROMO. Assim, se torna possível a construção de um pensamento crítico sobre o tema, tendo como base uma das experiências mais emblemáticas dessa prática. Traçados os elementos que compuseram a argumentação conceitual, retomam-se as definições postas a respeito da experiência autogestionária.
Dessa forma, também se destaca, nesse momento, a contraposição da definição de Albert (2004), frente às experiências brasileiras de autogestão. Segundo a definição deste autor, uma vez que a atuação de cada um dos participantes do processo autogestionário se mantém proporcional ao quanto ele é afetado pela questão abordada, entende-se que o mutirante – que necessita da habitação em primeira instância – deve ser definido como o principal ator dessa dinâmica. Ora, se não é o mutirante o mais afetado pela ausência de habitação, não seria ele a principal voz dentro da dinâmica autogestionária? Essa condição se confirma parcialmente: a carência habitacional dita os termos da relação autogestionária, mas o mutirante não é aquele que pauta as decisões.
No caso específico do Programa de Mutirão UMM, coube ao movimento (e consequentemente ao mutirante, organizado por meio de associações comunitárias) a escolha das assessorias técnicas que se responsabilizariam pelo desenvolvimento do projeto. Contudo, diante
de um quadro de mutirantes formado por indivíduos que possuíam pouco ou nenhum conhecimento a respeito da construção civil, a dependência técnica dos arquitetos e urbanistas participantes das assessorias técnicas manteve a centralidade da tomada de decisões, o que acabou por relativizar a noção de “desenho participativo”. Assim, o trabalho por mutirão se deu a partir de uma estruturação hierárquica, extremamente dependente dos saberes técnicos das assessorias que determinavam a “estrutura, o modo, o ritmo, a divisão das tarefas a serem cumpridas no limite da escassez, elemento determinante do uso do trabalho dos futuros moradores que acabou por se constituir em elemento fundamental do cálculo do investimento nesse tipo de política de habitação” (RIZEK, 2002, p. 33 apud PAOLI, 2007, p.222). Nesse aspecto, se traça um panorama perigoso em relação à atuação das assessorias técnicas. Paoli (2007) ressalta que, nesse cenário, a prática do mutirão autogerido passa a ser dotada pela roupagem de “‘forma consentida, e vista como virtuosa, da gestão da precariedade’, induzida pelo governo da cidade e cada vez mais invadida por uma racionalidade técnica e administrativa que anula as formas autônomas de agir dos mutirantes, em todos os seus aspectos” (RIZEK, 2002 apud PAOLI, 2007, p. 222-223). Nesse sentido:
Assessorias, escritórios técnicos de arquitetura e organizações não-governamentais (ONGs) comandam, em cada caso, desde a administração de recursos e finanças até a competência política da representação dos movimentos. É impossível não pensar que essa ingerência aponta para uma novidade que se anuncia politicamente em contato com o mais velho modo de destituir a capacidade política e social da população, determinando a invenção técnica como meio de substituir movimentos sociais pelas assessorias,
quando não em roubo da fala dos movimentos e associações pelos técnicos que, reunidos em ONGs, se constituem em mediações de atores tanto nessa nova face da política de habitação quanto desses novos modos de gestão, produção e intervenção indireta do Estado no território da cidade (RIZEK, 2002 apud PAOLI, 2007, p.222- 223).
Ao fim, a valorização exacerbada da técnica – e, portanto, do técnico – mostra uma lógica perversa, pois o perigo reside na produção figurativa – a partir do controle social e da violência –, ou seja: da “incompetência política da população, especialmente quando esta se organiza, se movimenta, aparece autonomamente. Por seu lado, as técnicas sociais de administração e controle apoiam-se necessariamente na degradação dos espaços públicos, produzida pelo predomínio das regras de mercado sobre os valores e direitos de cidadania e pelo fechado e parcial sistema de decisões políticas e econômicas adotado desde a década de 1990, que destituiu a capacidade de questionamento e de ação organizada” (PAOLI, 2007, p.224-225).
No caso da COPROMO, esta foi capaz de manter um alto grau de independência; o trabalho conjunto da administração da diretoria da Associação e da assessoria técnica responsável tornou possível a organização dos grupos de trabalho, das atividades complementares ao canteiro de obras, da experimentação construtiva – por meio de um processo participativo – e o fomento da discussão sobre o protagonismo dos mutirantes. A conquista de melhorias qualitativas no processo de trabalho do conjunto se deu por meio da definição coletiva das relações de produção entre os agentes participantes desse processo (PETRELLA, 2012). Contudo, o poder de decisão da assessoria técnica Usina Ctah ainda assim se manteve central: atuando como um serviço contratado pela associação, se depositou na assessoria técnica a responsabilidade de elaboração do desenho projetual e mesmo de gestão da obra.
Contribuições posteriores à formulação do projeto, vindas dos mutirantes, foram bem-vindas e muitas vezes acatadas pela assessoria, mas ao fim, o projeto se manteve sob o controle da assessoria Usina e de seus autores. Ao todo, essa dinâmica não se mostrou de forma negativa, pois, sem o estudo prévio da Usina, a elaboração do projeto se tornaria muito demorada, o que poderia até inviabilizar a obra.
O resultado dessa dinâmica apareceu na inovação presente na elaboração de seu projeto. As 1000 U.H. construídas significaram um marco arquitetônico, com alta qualidade arquitetônica e urbanística, que caracterizou o primeiro conjunto entregue pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) no munícipio de Osasco e que se opôs “aos ‘grandes conjuntos’ produzidos por empreiteiras, de precária qualidade ambiental” (PETRELLA, 2012, p.19). Contudo, ainda é fundamental ressaltar como sua qualidade arquitetônica superior se deu às custas de enorme esforço coletivo – pelo menos em um primeiro momento – uma vez que, diante da inexistência de uma rede organizativa à nível local ou nacional que fornecesse suporte a esse processo, “o êxito restringe-se aos que participam, relegando àqueles que não conseguem se inserir nos processos de mutirão – e são muitos – os velhos mecanismos de provisão habitacional: filas, produtos de péssima qualidade, inacessibilidade em virtude dos altos custos acessórios etc.” (LOPES; RIZEK, 2005, p.19- 20).
Dessa forma, traçadas as questões estruturais, se torna possível
constituir uma análise mais crítica voltada ao agente principal
dessa relação, o mutirante, partindo da constituição do seu perfil
socioeconômico. Assim, no que se refere ao mutirante do processo da
COPROMO, não se confirma a descrição de Oliveira (2006) de que
a maior parte dos mutuários se encontra abaixo da linha da pobreza,
ganhando menos de R$ 2 por dia, quando empregados. (OLIVEIRA,
2006, p.72). Mesmo contando com um quadro de trabalhadores
mutirantes desempregados, dados oriundos da própria assessoria
técnica Usina Ctah indicam que o número de famílias situadas na
faixa de 0 a 3 salários mínimos (condição de vulnerabilidade social)
se mostrou inferior a 60% do total de famílias analisadas 67 . Ademais,
muitos dos participantes da Associação possuíam condições financeiras que lhes permitiam o autofinanciamento para agilizar as obras. Aqui não se entra no mérito da economia de gastos familiares estabelecidos para se viabilizar o autofinanciamento, mas entende-se que em uma situação formada por mutirantes abaixo da linha da pobreza, essa possibilidade não existiria. Fato é que a posição socioeconômica das famílias envolvidas não era homogênea, e as diferenças de renda certamente tiveram impacto nas formas de financiamento e aquisição dos imóveis.
Cabe também tratar da confrontação da disponibilidade de tempo por meio do mutirante para contribuição na obra. Com relação a esse aspecto, o trabalho realizado pelo mutirante se mostra como invisível, uma vez que esse trabalho não é passível de ser mensurado ou contabilizado (MIAGUSKO, 2011) o que pressupõe, para Oliveira (2006), que “a maior parte da força de trabalho esteja desempregada e possa, portanto, utilizar as horas de folga para construir a própria habitação” (OLIVEIRA, 2006, p. 72). Nas palavras de dona Raimunda, moradora do primeiro conjunto de prédios construídos: “a gente trabalhava a semana todinha e no sábado e no domingo a gente estava aqui, então a mocidade da gente foi embora e a gente não via. Trabalhava de dia e de tarde eram as palestras, e no outro dia trabalho, e assim foi”. Além desse aspecto, outras configurações do canteiro autogerido mostraram controvérsias. Nesse cenário, questões como a vigilância, a punição e a dominação – dimensões observadas no modo de produção capitalista convencional – passaram a ser reproduzidas mesmo dentro do espaço do canteiro autogerido. Sobre esse fenômeno:
Não há dúvida que a transformação mais profunda das relações de produção acarreta problemas enormes. Nós carregamos, nas costas de cada um, séculos de exploração, dor, violência. Nós não nos desembaraçamos desta carga que no formou e teceu a rede completa de nossos hábitos. Em qualquer transformação há crises, disputas, divisões. Que no seio dos movimentos autogeridos possam aparecer problemas, é evidente – e mesmo talvez desejável, porque estes problemas provocam interrogações, mudanças talvez até positivas, etc. E não há que generalizar depressa demais. Há casos urgentes, outros que podem ser mais bem planejados, mutirões simples, combinados, autogeridos, etc. Não simplifiquemos a questão. (...) há que considerar que a autogestão hoje está cercada por
67 Segundo levantamento de dados realizado pela Usina Ctah e divulgado por Cerqueira (2016), o espectro de famílias analisadas pela pesquisa se mantinha na ordem de 926 famílias, e não 1000 (total de famílias residentes no conjunto).
seu inverso. E, como em toda oposição, os polos se contaminam um pelo outro (...) não há como culpar somente as experiências autogeridas por algumas eventuais deformações: sem justifica-las completamente, é preciso considerar que promovem em parte do entorno hostil (FERRO, 2010, p.51-52).
Ademais, para o estabelecimento de um espaço de produção “virtuoso” no mutirão autogestionário, é necessário um alto grau de coerção dentro do movimento envolvido, materializado por uma ‘ilusão necessária’ (OLIVEIRA, 2006, p.73). Para que se configure um elo entre os mutirantes, se constitui a ideia de comunidade, composta por todos os indivíduos que se encontram na mesma situação, isto é, indivíduos que necessitam de habitação. Nesse cenário, a presença contínua de figuras políticas dotadas de uma forte liderança se tornou fundamental – em um primeiro momento – para a noção de coletividade do conjunto. A isso, se atribui principalmente a atuação de Reginaldo Oliveira de Almeida, “Didi”; a presença do vereador agregou ao movimento a capacidade de interposição de dificuldades impostas pela administração municipal de Osasco, que demandava da Associação grande mobilização, que acabaria por consumir “até mais que o necessário para se investir no próprio processo” (LOPES; RIZEK, 2005, p.21).
A fragilidade por trás da noção de comunidade, por sua vez, se dá uma vez que, quando concluídas as casas, nota-se o esvaecimento desta coletividade, presente anteriormente nas mobilizações iniciais do movimento (OLIVEIRA, 2006). Sobre nesse ponto, Arantes (2002) desenvolve pensamento similar ao traçar as limitações internas aos mutirantes, diante do desafio de se prolongar a organização popular posteriormente à conquista da terra, financiamento e construção dos conjuntos. Nesse momento, se observa a regressão da organização popular, e os mutirantes, após escolherem suas casas, se recolhem e deixam de participar dos espaços de discussão coletivos, permanecendo nos espaços de discussão e nos movimentos uma ínfima minoria dos que participaram dos mutirões (ARANTES, 2002). Ademais, constituise a necessidade de um alto nível de organização dos movimentos sociais envolvidos (TATAGIBA, 2015), os quais, muitas vezes, ficam exauridos no momento em que a obra é finalizada.
Quando confrontado com a experiência COPROMO, o quadro de “comunidade ilusória” se confirma: depois de finalizadas as 160 unidades habitacionais do conjunto, e após as primeiras rupturas do quadro político interno do movimento (composto pela diretoria e parceiros externos), se dão as primeiras divergências de posicionamento que resultaram no afastamento da Assessoria Técnica Usina Ctah e substituição por outra assessoria técnica (Teto). Assim, a dinâmica de mutirão observada na primeira etapa da COPROMO foi alterada ao longo do demais anos de construção dos edifícios. A idealização da estrutura cooperativa se tornou insustentável, assim como o mutirão não foi mais a única modalidade construtiva posta em prática dentro dos limites do conjunto, uma vez que os mutirantes optaram pela contratação direta de mão de obra qualificada para agilizar a construção. Dessa forma, segundo Lopes (2018) o imaginário inicial incidente em experiências como aquelas orquestradas pela Usina Ctah não se confirmou em sua totalidade quando confrontado com a realidade. Tal ideal se traduz em vários aspectos: construção de uma “consciência de autonomia” e de um “desejo autodeterminado de autodeterminação” dentre os mutirantes, negando “a submissão a
um poder que lhes é externo, que não emana de si mesmos”; adoção da “construção livre e autônoma de sua própria existência” uma vez finalizadas às obras e “abrigados os corpos e instalados os desejos particulares sob o teto produzido coletivamente e a partir do esforço próprio” (LOPES, 2018, p.241). Nesse sentido, destaca-se o exercício da autocrítica: arquitetos como João Marcos Lopes, que participaram diretamente da obra COPROMO, assim como outras experiências de mutirão, dedicaram seu tempo em discorrer sobre esse tema, de forma a rever princípios e modelos, quando confrontados com a realidade das periferias brasileiras.
Ao fim, as críticas se transpõem para o produto dessa relação: a habitação por mutirão. Nesse contexto, Oliveira (2016) aponta que, diante da mercadoria “casa”, o valor de troca se mostra inexistente, uma vez que esse produto se resume a seu valor de uso, que nada mais é do que a finalidade de ser habitada (OLIVEIRA, 2006, p.72). Com base nesse entendimento, a habitação popular não conta com valor de troca porque é impedida pelo rebaixamento dos custos, uma vez que ela se constitui unicamente sobre a força de trabalho do mutirante, e esse aspecto permite a instauração do paradoxo de que a habitação não constitui uma mercadoria no sentido autenticamente capitalista, ou seja, não cria valor (OLIVEIRA, op. cit.). Arantes (2002), por sua vez, reafirma que justamente por se apresentar como uma mercadoria “diferente”, baseada na produção de valor de uso para a própria família do construtor dessa habitação, evidencia seus aspectos positivos. Nesses termos, uma vez que a habitação passa a ser feita com base no consumo próprio e não é destinada ao mercado, o tempo despendido pelo mutirante é unicamente gasto para seu proveito e não atrelado à venda de sua força de trabalho, como em uma condição convencional de produção (ARANTES, 2002, p.190).
Contudo, no caso COPROMO, observa-se um caminho inverso. Segundo Cerqueira (2016), após a finalização do conjunto, e a partir da ocupação dos edifícios, observa-se a transformação gradativa do perfil socioeconômico do conjunto. Sendo os apartamentos disponibilizados para venda e/ou aluguel, inicia-se um processo “de substituição dos mutirantes por uma população com renda superior – capaz de arcar com o custo de compra ou locação dos imóveis depois de terem sido valorizados” (CERQUEIRA, 2016, p.109), sendo os apartamentos vendidos por valores estimados entre R$ 150 mil e R$ 200 mil. Assim, as perspectivas traçadas originalmente para o processo do conjunto COPROMO – de um projeto cooperativo e solidário, destituído de objetivos mercadológicos – são modificadas a partir da comercialização das unidades.
Conclui-se, então, que a experiência COPROMO deve seu êxito a uma somatória de fatores que incluem tanto o nível de engajamento da assessoria técnica, uma sólida estrutura interna da Associação Pró Moradia de Osasco e o apoio de lideranças políticas fortes, que impulsionaram a realização do conjunto. Assim, por mais que o mutirão autogestionário tenha a capacidade de conferir um padrão habitacional melhor do que o convencional disponibilizado pelo setor de provisão habitacional vinculado às empreiteiras, “não parece existir qualquer determinismo entre modelo e resultado: tudo depende da instrução e condução do processo, capacidade organizacional do grupo, existência de entidades qualificadas para assessoramento técnico, disposição
e infra-estrutura institucional instalada para a gestão partilhada dos recursos” (LOPES; RIZEK, 2005, p.24). Tais elementos se relacionam em um cenário complexo, contraditório e repleto de imposições e conflitos.
Fonte: acervo pessoal da autora