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2. Arquitetura Nova e o mutirão em debate

No final da década de 1970 e ao longo da década de 1980, o Brasil transitou pelo processo de redemocratização política, que coincide com a crise da dívida externa e a consequente redução de gastos públicos (USINA, 2008). Paralelamente ao processo de abertura democrática, o país conviveu com a crise terminal do modelo desenvolvimentista, o que determinou uma repactuação econômica com órgãos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, cujos acordos de modo geral acentuaram o arrocho fiscal do Estado.

Nesse cenário de escassez de investimentos públicos em políticas sociais, a autoconstrução de moradia se revelou a forma de “solucionar o grave déficit habitacional pelos próprios usuários, ou seja, as camadas populares” (MIAGUSKO, 2010, p.171). Por conseguinte, segundo Tatagiba (2015), diante da pressão exercida sobre os governos nacionais para tratarem de maneira imediata o crescente déficit habitacional em um cenário econômico desfavorável, tem-se pela primeira vez a institucionalização da autoconstrução como política pública em território nacional.

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Assim, o governo do estado de São Paulo se aproximaria da adoção da autoconstrução nos programas habitacionais como política pública a partir da eleição de Franco Montoro em 1982. Essa mudança simbolizaria um novo período da gestão estadual, recheado de inovações em diversas áreas e marcado pelo estabelecimento de diálogo do poder

público com os movimentos populares (TATAGIBA, 2015). Contudo, mesmo apresentando casos bem-sucedidos, as políticas habitacionais alternativas continuariam a simbolizar momentos isolados, residuais e altamente sujeitos “às descontinuidades decorrentes das mudanças das coalizões políticas à frente dos executivos” (TATAGIBA op.cit. p. 93). Apesar dessa inflexão no poder público, a presença de movimentos sociais que tinham como pauta a reinvindicação pela habitação social se mostraria constante, mesmo com atuações distintas conforme o período. Em um panorama em que a ocupação e a autoconstrução se mostram como modalidades de ação coletiva dos grupos pauperizados, na ausência de um Estado de bem-estar social que lhes garantisse o direito à moradia (TATAGIBA, 2015), consolidase a pauta habitacional como demanda constante da agenda de reivindicações dos movimentos sociais. A essa característica se soma o questionamento às políticas habitacionais aplicadas no ciclo anterior (SACHS, 1999 apud MIAGUSKO, 2010), a partir do fomento da participação comunitária, da defesa de medidas de descentralização das políticas habitacional e urbana, e da revisão da legislação urbanística (BONDUKI, 2004).

A partir dessa perspectiva, vale ressaltar a destacada atuação de Luiza Erundina como prefeita de São Paulo. É a partir de sua ascensão à Prefeitura da capital paulista em 1989, e da atuação combinada dos

fundos públicos com as assessorias técnicas, que o desenvolvimento de

novas formas de gestão dos empreendimentos habitacionais (presentes

na forma da autogestão e da cogestão) entrariam em pauta. Esse

momento reconheceu pela “primeira vez que o mutirão autogestionário

se convertia de fato em programa habitacional e que os movimentos

eram reconhecidos como atores do processo de implementação da

política” (TATAGIBA, 2015, p.94). Além de contar com uma maior

proximidade com os movimentos sociais, a gestão de Erundina seria

marcada pela presença de um corpo técnico repleto de intelectuais e

militantes vinculados e comprometidos com as teses que marcaram a

agenda da reforma urbana 2 . Entre 1989 e 1992, portanto, o mutirão

encontrou um campo fértil para seu desenvolvimento teórico e prático: “quando organizado de modo autogerido, com o apoio de arquitetos e engenheiros independentes e tendo acesso aos fundos públicos, foi capaz de introduzir mais inovações técnicas e assegurar mais segurança ao trabalhador do que as obras de empreiteiras” (ARANTES, 2002, p.220).

Segundo Carvalho (2007), a gestão de Erundina na Prefeitura de São Paulo se classificaria como fase “heroica” da experiência do mutirão, quando foi criada uma “estrutura de funcionamento com fonte de financiamento (o Funaps – Fundo de Atendimento à População Moradora em Habitação Subnormal), gestão compartilhada através do tripé formado por prefeitura/organização popular/assessoria técnica, fluxo de recursos e regras para sua utilização... Isto é, deixou de ser um ‘programa alternativo’, pontual, para se incorporar oficialmente na política habitacional de São Paulo” (CARVALHO, 2007, p.218).

Dessa forma, percebe-se a importância dada ao contexto no qual se fortalece o mutirão, ao qual se associa a retração das políticas sociais em curso ao longo da década de 1990 (SCHWARZ, 1993 apud MIAGUSKO, 2011, p.172), com a ampliação das políticas neoliberais de desresponsabilização do Estado, introduzidas na gestão de Fernando Collor e intensificadas na gestão de Fernando Henrique Cardoso à frente da presidência da República, por meio da criação de um ambiente favorável aos fluxos financeiros internacionais e reformas econômicas (CAMARGO, 2017).

Simultaneamente ao cenário de privatizações e da liberalização econômica, o país assistia ao crescimento da participação popular e de políticas sociais postas em prática pelo campo progressista (MIAGUSKO, 2011), reafirmados na gestão de Luiza Erundina em São Paulo e reverberados na RMSP:

Esse caráter mítico da noção de autogestão e participação dos futuros usuários é tão mais significativo quanto mais a produção de habitação por mutirões autogeridos ganhava o estatuto de uma proposta que deveria se transformar em política, ou mais precisamente, em “quase” política habitacional. Esse “quase” diz respeito ao truncamento do financiamento de políticas públicas e

2 Alguns nomes de destaque ocuparam cargos nessa gestão: Ermínia Maricato foi titular da Secretaria de Habitação; Raquel Rolnik, diretora de Planejamento; Nabil Bonduki, Superintendente de Habitação Popular. Na gestão Erundina o projeto de Mutirões envolveu parceria com 108 entidades comunitárias e outras 24 de assessoria técnica, tendo beneficiado 60 mil pessoas com recursos do Fundo Municipal de Habitação. Além destes, Paul Singer ocupou a Secretaria de Planejamento e Lúcio Gregori, a Secretaria de Transportes, quando foram gestadas as propostas “Tarifa Zero” e “Projeto de Municipalização do Transporte Público”.

sociais de habitação que, ao final da década de 1990, apontaram para outros rumos, tais como a tentativa de reinserção de habitação social nos centros metropolitanos vistos como degradados ou mesmo os esforços de regularização fundiária dos territórios periféricos, o que parece ter sido um dos eixos da política habitacional da última gestão do PT em São Paulo (RIZEK, BARROS, 2006, p.377-378).

Dessa perspectiva, a prática do mutirão autogestionário não estaria isenta de críticas. Sendo assim, a temática encontraria no seio da discussão teórica brasileira um cenário atrelado a diversas ambiguidades e paradoxos, evidenciando os meandros de um tópico recheado de grande multiplicidade de interesses de análise (MIAGUSKO, 2011). Dentre as ambiguidades vinculadas à reflexão sobre o mutirão autogestionário, tem-se a sua condição simultânea de dependência dos fundos públicos destinados à habitação e a sua recusa da intervenção oriunda do aparelho estatal como agente implementador, negando dessa forma uma dinâmica impositiva de cima para baixo (USINA, 2008). Dessa maneira, a aplicação da autogestão no cenário brasileiro a partir da segunda metade da década de 1970 apareceria atrelada a um campo de semi-autonomia (USINA, op.cit.). Ademais, o caráter paradoxal do mutirão vincula-se ao que Oliveira (1972) coloca como a capacidade de expansão do capitalismo pela introdução de novas relações dentro de antigos moldes, denominadas como “arcaicas”, e, portanto, pela reprodução desse arcaísmo sob novas conformações.

Segundo Kowarick (1979), esse fenômeno se destaca pela permanência de unidades produtivas arcaicas de tipo manufatureiro em quase todos os ramos da economia, ao mesmo tempo em que se assiste à substituição da confecção de bens para a autossubsistência nas cidades brasileiras. Essa dinâmica “é inerente à mercantilização da economia, em que o consumo decorre da produção realizada através da extração de mais-valia, forma que consubstancia o processo de valor de troca a partir do qual a mercadoria assume a sua plena dimensão” (KOWARICK, 1979, p.56).

Por conseguinte, às características arcaicas presentes na dinâmica do mutirão – oriundas do passado rural e relacionadas, portanto, ao meio folclórico (MARICATO, 1978) – somaram-se no campo urbano as técnicas encontradas pelos estratos mais pobres para solucionar o crescente déficit habitacional oriundo dos fortes fluxos migratórios a partir das décadas de 1970-80 e da formação de sedes do novo ciclo de expansão urbana a partir do crescimento econômico brasileiro. Sendo assim, pode-se tratar da prática do mutirão como um processo no qual se evidencia uma “simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários, em que o chamado “moderno” cresce e se alimenta da existência do “atrasado” (OLIVEIRA, 1972, p.9).

Ademais dessas colocações, deve-se atentar para a noção de “sobretrabalho” discorrida ao longo da obra de Oliveira (1972). Segundo o autor:

A habitação, bem resultante dessa operação, se produz por trabalho não pago, isto é, supertrabalho. Embora aparentemente esse bem não seja desapropriado pelo setor privado da produção, ele contribui para aumentar a taxa de exploração da força de trabalho, pois o seu resultado – a casa – reflete-se numa baixa aparente do custo de reprodução da força de trabalho – de que os gastos com habitação são um componente importante – e para deprimir os salários reais pagos pelas empresas. Assim, uma operação que é,

na aparência, uma sobrevivência de práticas de ‘economia natural’ dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem com um processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa exploração da força de trabalho (OLIVEIRA, 1972, p.28).

Logo, a dinâmica descrita por Oliveira (1972) acabaria por simbolizar um fenômeno no qual se observa a sobrevivência de práticas de “economia natural” nas cidades, onde se tem a convivência simultânea desse fenômeno juntamente ao processo de expansão capitalista, “que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa exploração da força de trabalho” (OLIVEIRA, op.cit. p.28). A essa exploração, Kowarick (1979) ressalta a economia de gastos para se tornar possível a construção da casa própria em detrimento da qualidade de vida da família empreendedora.

Nesse cenário, a prática do mutirão acabaria por “reproduzir a força de trabalho a baixos custos para o capital”, além de constituir um elemento que “acirra ainda mais a dilapidação daqueles que só tem energia física para oferecer a um sistema econômico que de per si já apresenta características marcadamente selvagens” (KOWARICK, 1979, p.62). Dessa forma, a autoconstrução evidenciaria a condição de desgaste completo das parcelas sociais que se proporiam a construir a casa própria.

Em contrapartida, intelectuais da corrente de pensamento relacionada à “Arquitetura Nova” apresentaram seus argumentos acerca do processo de autoconstrução e da prática do mutirão de perspectiva diversa. Entre eles, Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império se destacaram como porta-vozes de uma corrente teórica que tinha como ponto central a valorização da produção artística e arquitetônica democrática. Sendo assim, a nova arquitetura a ser formulada deveria conter um “caráter programático e militante”, servindo também como uma arquitetura de laboratório, ensaiando dessa forma “inúmeras possibilidades técnicas e espaciais, numa atitude de espera e estímulo de transformações sociais profundas” (FERRO, 2006, p.39).

Logo, a partir do processo de redemocratização brasileira, o campo da arquitetura passaria a abarcar a prática da autoconstrução, e mais especificamente o mutirão como ato social dentro da profissão, evidenciando a formação de um novo tipo de vínculo entre arquitetos e assistentes sociais e os movimentos sociais. Essa relação seria manifestada na forma de uma militância prática-cotidiana (USINA, 2008).

Para Lefèvre (1981), o mutirão se configuraria praticável como modelo utópico aplicável em uma fase transitória entre a dinâmica produtiva capitalista e um momento posterior, reafirmando a noção de canteiro como escola e espaço experimental. Sendo assim, a corrente de pensamento por trás da “Arquitetura Nova” passaria a ilustrar a noção de esgotamento do modo de produção arquitetônico presente até então, uma vez reconhecido os limites do desenvolvimento desse modo produtivo (FERRO, 2006).

Dessa forma, frente a tal cenário de suposto esgotamento dos moldes produtivos até então vigentes, caberia ao arquiteto, consciente de seu papel social em sua atuação profissional, o trabalho de criação de um novo conjunto de condições físicas, que, segundo Lefèvre (1981), teriam como resultado modificações nos cenários abordados. Por conseguinte, a atuação do profissional juntamente com os movimentos

sociais e indivíduos diretamente afetados pelo déficit habitacional serviria como amálgama para a produção de novos cenários urbanos no contexto brasileiro.

O mutirão autogestionário, segundo Arantes (2002), passaria a simbolizar um espaço diferenciado dentro da dinâmica produtiva convencional, indicando um pequeno vislumbre do que poderá vir a ser outra forma de produção. Logo, seu caráter experimental no canteiro de obras passaria a iluminar as “contradições das relações sociais capitalistas, cuja violência e alienação impostas ao trabalho passam a ser questionadas por outra prática” (ARANTES, op.cit.). Dessa forma, seria evidenciada a prática do mutirão autogestionário como fonte inovadora frente aos exercícios arquitetônicos anteriores, pois agora passaria a se basear nos princípios da ajuda mútua, diferenciando-se, dessa forma, das relações capitalistas de compra e venda da força de trabalho (MARICATO, 1976).

É, portanto, a partir da construção da crítica contra o desenvolvimentismo a partir dos anos 1970, e de sua repercussão no campo da produção intelectual, que a imagem do mutirão passa a receber seu caráter mitológico: “vinculando áreas diversas entre si, tais como a discussão da arquitetura, de seu lugar social, de suas possibilidades de democratização e a compreensão dos movimentos e lutas sociais urbanas” (RIZEK, BARROS, 2006, p.380). Ademais, para o praticante dessa dinâmica, enquanto morador/produtor, vislumbra-se a possibilidade de estabelecimento de maior contato com a habitação produto, permitindo-lhe, “uma visão integrada do processo produtivo e, portanto, um contato desalienante com o produto, já que o morador acompanha, decide e executa os mínimos detalhes da própria habitação” (MARICATO, 1976, p.72).

Em contraposição, Miagusko (2011) ressalta a crítica feita ao próprio processo participativo no qual se relativiza a possibilidade de democratização da relação do morador com a casa, uma vez que “as condicionantes técnicas e o repertório dos mutirantes determinam o campo restrito de possibilidades e tipologias” (MIAGUSKO, 2011, p.172). Dessa forma se estabelece uma relação de dependência da capacidade profissional das entidades de assessorias técnicas.

Deve-se atentar ainda para a diferenciação presente na literatura desenvolvida sobre o tema a partir da década de 1970, em relação às noções de custo e valor que permeiam a produção habitacional realizada por meio da prática do mutirão. Segundo Arantes (2002), a aplicação de técnicas racionalizadas vinculadas à prática da arquitetura moderna, somada à gestão democrática da obra, seriam responsáveis por grande economia de gastos da edificação, mesmo depois de acrescentado o valor das horas trabalhadas pelos mutirantes, o que representa uma vantagem para o morador/produtor. Contudo, mesmo apresentada a tática arquitetônica como elemento indispensável para o barateamento da obra, ressalta-se que “a produtividade do trabalho na autoconstrução da casa não é significativamente menor do que aquela apresentada pela indústria da construção civil residencial” (BONDUKI, ROLNIK, 1978, p.128), contudo, a produção da habitação se apresenta como valor de uso, e, portanto, se torna vantajosa para o trabalhador.

Observa-se que a diferenciação das noções de “valor de uso” e de “valor de troca” – assim como discussão sobre a dimensão da força de trabalho no processo do mutirão – faz uso de uma fundamentação crítica que se aproxima da teoria marxista. Integram este debate autores

como Oliveira (1972), Lefèvre (1981), Maricato (1987), Carvalho (2004), Miagusko (2011), entre outros.

Segundo Lefèvre (1981), as horas excedentes que o trabalhador gastaria para construir sua própria casa não seriam destinadas à produção de mercadorias para o capitalista que emprega esse trabalhador, e dessa forma o proletário só produz valor de uso para si. Ademais, Carvalho (2004) ressalta que, mesmo transformada em valor de troca, tal valor será transformado com base na troca a serviço dos próprios trabalhadores envolvidos no processo, e não em função do capital.

Contudo, os mutirões não escapam do debate sobre a noção de sobretrabalho: “a despeito dos contra-argumentos de que no mutirão o trabalhador se encontra com o produto do seu trabalho, ou de que a produção individual não é voltada para o mercado, dá à casa um valor de uso” (CARVALHO, 2004, p.169).

Ademais, Miagusko (2011) ressalta como o trabalho realizado pelo mutirante se tornaria invisível, uma vez que seu trabalho não poderia ser mensurado ou contabilizado, assim como não conta com estatutos de regulação política ou jurídica. Dessa forma, para efeito dos custos finais da produção de moradia, o custo do trabalho não seria contabilizado; ou seja, não se torna possível um controle do tempo gasto pelo mutirante para a realização da obra enquanto o mesmo não se apresenta como dono de seu próprio tempo.

Trata-se, enfim, de um “processo contraditório”, tendo em vista a articulação da lógica da racionalidade presente no que os grupos de mutirão buscam à relação custo-benefício e à solidariedade encontrada dentro dos grupos populares (GOHN, 1991). Sendo assim, mesmo consolidando processos que garantem aos participantes um

aprendizado político, mobilização, organização e consciência da realidade, os mutirantes se encontram em uma situação de grande extração de suas reservas monetárias, sem contar com o desgaste da própria força de trabalho. Ao mesmo tempo, a “visão mistificadora” antes indicadora da natureza do mutirão “como eloquente exemplo de solidariedade de classe” (BONDUKI, ROLNIK, 1978, p.132) acaba por não ser mais corrente frente à caracterização desse processo como “uma contraprestação de serviços, onde um morador ajuda o outro na expectativa de ser auxiliado quando necessitar” (BONDUKI, ROLNIK, op.cit.). Dessa forma, a discussão sobre a “mitologia emancipatória” se aproxima do cenário ambíguo no qual o mutirão autogestionário se insere (MIAGUSKO, 2011).

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