FRITZ LANG: O HORROR ESTÁ NO HORIZONTE

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A máquina infernal  sobre Suplício de uma alma Serge Daney

Publicado originalmente como “La machine infernale — L’Invraisemblable verité”, no jornal Libération, 18 de julho de 1981. © Serge Daney /Libération. Traduzido do francês por Calac Nogueira. (N.E.)

O mundo em certo momento foi dividido em dois. Quero dizer o mundo dos amantes de cinema, o pequeno mundo dos cinéfilos. Havia os que zombavam dos últimos filmes de Fritz Lang e aqueles para quem estes filmes figuravam entre os mais belos (sim, mas como provar?). Os segundos viviam sob o medo: medo de ouvir os primeiros soltarem risinhos diante de Suplício de uma alma (Beyond a Resonable Doubt, 1956) ou fazerem troça de O sepulcro indiano (Das Indische Grabmal, 1959). Porque estes filmes vulneráveis, obtusos à força da lógica, tocavam naquilo que chamamos pomposamente de “essência” do cinema. É o que faz com que haja filmes idiotas ao serem descritos e perturbadores quando vistos. É o que faz com que um filme não seja seu roteiro, nem o cinema, a literatura. E, além do mais, estes filmes não tinham boa reputação: as histórias do cinema falavam apenas de Metrópolis (Metropolis, 1927), de M., o vampiro de Düsseldorf (M, 1931), quando muito de Fúria (Fury, 1936), e o establishment crítico da época desdenhava com condescendência do período americano de Lang, um período de infortúnios, de pequenos orçamentos e de filmes cada vez mais B. Era preciso defender estes filmes contra o amplo bom senso dos zombadores, contra o próprio Lang, que não parecia muito orgulhoso deles (não foi ele próprio que falou, a respeito do Tigre de Bengala [Der Tiger von Eschnapur, 1959] e do Sepulcro, como suas “merdas indianas”?). Desconcerto. O velho mestre já tinha este sorriso desiludido que veríamos alguns anos mais tarde em O desprezo (Le Mépris, 1963). O sorriso um pouco superior daquele que sabe (e quem soube melhor do que ele, que poderia ter se tornado o number one do cinema nazista?) que, no entanto, não se deve jamais se sentir superior. Que se sentir superior é o único crime. O sorriso-ricto que os heróis languianos dão nos piores momentos, como Tom Garrett no final de Suplício de uma alma, quando tudo está perdido e ele não sabe o que fazer a não ser dar um passo em direção à mesa para ver mais de perto o recurso de graça em seu favor que o governador não assinará. O roteiro de Suplício de uma alma é a história de um roteiro. De um golpe armado, de um simulacro. Um jornalista influente (Sidney Blackmer) faz campanha contra a pena de morte. Ele 1  Referência ao título que o filme ganhou na França, L’Invraisemblable verité. (N.T.) 2  Les Dossiers de l’écran: programa da televisão francesa composto pela exibição de um filme e de um

quer provar que é perfeitamente possível enviar um inocente para a cadeira elétrica. Sim, mas como provar? Ele tem esta ideia barroca (enfim, ele acredita tê-la tido) de propor a seu futuro genro, Tom Garrett, um escritor (Dana Andrews, mais uma vez rançoso e admirável), se deixar acusar de um assassinato que acaba de ser cometido, de fabricar provas falsas, de se deixar condenar à morte. Neste último momento, deux ex machina, ele desvelará a verdade inverossímil1 e os partidários da pena de morte ficarão envergonhados e tomarão consciência. Esse é seu roteiro, mas no filme ele se dará de maneira diferente. Neste filme, há todo o Lang. O assunto não é tanto a pena de morte. Não seria um filme muito bom para os Dossiers de l’écran.2 O assunto, como sempre em Fritz Lang, é a ideia de responsabilidade. Em seus filmes, há aqueles que sabem que são culpados (é mais forte do que eles, é patológico: de Mabuse a M., passando pelo “lipstick killer” de No silêncio de uma cidade [While the City Sleeps, 1956]) e aqueles que se creem inocentes. Ora, dos seriados mudos aos filmes americanos de encomenda, passando pelas superproduções da UFA, Lang bate sempre na mesma tecla: não há inocentes. Talvez tenha havido, mas não há mais. A inocência é provisória, querer prová-la já é ser culpado. Estar seguro de si, sucumbir à paixão fria das ideias e das ideologias, ter o ar superior e desdenhoso daquele que tudo previu, que tem uma resposta a tudo, que está “cansado de tudo”, é um estado perigoso. Perigoso para os outros. O jornalista que luta contra a pena de morte e o procurador sádico que quer aplicá-la a todo custo são irmãos. Um quer expor um inocente à condenação para melhor inocentá-lo, o outro está pronto para condená-lo inocente. O que eles não previram é que o inocente já é culpado. Não contarei as peripécias de Suplício de uma alma. Já disse demais. Este humor seria menos saboroso se não fôssemos também, enquanto espectadores, a um só tempo inocentes e culpados. Inocentes porque não sabemos de nada, culpados porque acreditamos em tudo. A máquina-Lang é infernal: ela precisa de nós como espectador, testemunha, júri, policial. Nós interpretamos todos os papéis nesta comédia da justiça. Mas, no último plano, seremos ridicularizados, e, se alguns desdenham, será por despeito (nós não gostamos de ser o joguete

debate. Provável ironia ao fato de que o interesse do programa estaria mais nos temas discutidos do que nos méritos propriamente cinematográficos dos filmes. (N.E.)

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