FRITZ LANG: O HORROR ESTÁ NO HORIZONTE

Page 24

M Lotte H. Eisner

Publicado originalmente como um capítulo do livro Fritz Lang. Paris: Cahiers du Cinéma/ Cinemathèque Française, 1976. Cortesia de The Estate of Lotte H. Eisner. Traduzido do francês por Lúcia Monteiro. (N.E.)

“Pois o crime de morte, sem ter língua, Falará com o milagre de outra voz.” Shakespeare, Hamlet, ato 2, cena 2.1 O filme deveria inicialmente chamar-se Mörder unter uns [Os assassinos entre nós]. Lang queria alugar o hangar de dirigíveis de Staaken, que havia sido convertido em estúdio de cinema, para ali filmar as cenas de multidão, como o tribunal da marginália. Para sua surpresa, o diretor do estúdio respondeu negativamente, dizendo que o próprio Lang devia saber o motivo da recusa, e acrescentando que aquele filme sequer deveria ser rodado. Atônito, Lang perguntou-lhe por que um filme sobre um assassino de crianças não deveria ser feito. Então se tratava de um assassino de crianças? Bem, neste caso, Lang teria o estúdio, foi a resposta que recebeu. O cineasta entendeu o que havia acontecido quando, no calor da discussão, segurou seu interlocutor pela gola, descobrindo que ele usava, escondida no avesso do casaco, a insígnia nazista. Os nazistas pensavam que o título original do filme se referia a eles. Em um artigo de 1947, “Why I am interested in Murder”2 (“Por que eu me interesso por assassinato”), Lang expôs o caminho que o conduzira de M., o vampiro de Düsseldorf (M, 1931) — “o desejo do assassino de crianças” — a Fúria (Fury, 1936) — “as tensões internas que fazem um homem decidir matar” —, a Um retrato de mulher (The Woman in the Window, 1944) — “os medos reveladores do homem que matou” — e enfim a O segredo da porta fechada (Secret Beyond the Door…, 1947): A questão poderia tranquilamente ser mudada para ‘Por que nós nos interessamos por assassinato?’. Porque, no fim das contas, milhões de cidadãos norte-americanos pacíficos e respeitosos das leis e dos seres humanos são fascinados pelo assassinato. Basta pensar nos jornais, que reportam homicídios com detalhes escabrosos em abundância; nos romances policiais, que possuem um enorme público. Os leitores experimentam a fascinação de fundir a cuca para aproximar as provas do suspeito. É como um quebra-cabeça que põe à prova a acuidade da inteligência. 1  Tradução de Anna Amélia Carneiro de Mendonça. In: William Shakespeare, Hamlet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 85. O original em inglês: “For murder, though it have no tongue, will speak with most miraculous organ.” (N.T.) 2  Lang não se lembrava mais de onde este artigo fora

22

Para Lang, porém, tudo isso não passa de “um aspecto marginal da questão”. O criminoso havia desrespeitado brutalmente um código bem estabelecido da sociedade. No início, as pessoas ficam “horrorizadas e enojadas”. Em seguida, “envolvem-se emocionalmente”, pensando no “caráter sagrado da vida humana”; é a “autopreservação da sociedade” que está em jogo. E, depois, num processo mental típico de Lang, começamos a sentir algo que se parece com compaixão, no sentido estrito da palavra. Lang cita neste artigo seu epigrama sânscrito favorito, “Tat Wam Asi”: Aqui estou, pela graça de Deus.3 Ele retorna a isso diversas vezes: “Em circunstâncias precisas, cada um de nós poderia tornar-se um assassino.” Teria uma experiência pessoal levado Lang a tal pensamento? Suspeitou-se de um assassinato cometido por Lang quando sua primeira mulher se suicidou, depois de encontrar Thea von Harbou, que estava escrevendo um roteiro com Lang, nos braços dele. Assim, o cineasta se dava conta, pela primeira vez, de como as circunstâncias e os motivos de suspeita podem ser precários. Data deste incidente o hábito que ele tinha de anotar todos os eventos de seu dia.4 Ele dizia que, depois de alguns dias, seria impossível saber o que aconteceu neste ou naquele momento, a menos que tudo tenha sido anotado com precisão. Ao mesmo tempo, Lang buscava uma “explicação do comportamento humano”, sobretudo no que concerne à sexualidade: A civilização pode muito bem nos ter aprisionado, ter dobrado nossos desejos destruidores em favor dos interesses da sociedade. No entanto, sobrevive ainda na maioria de nós muito da criatura selvagem e sem inibição, o suficiente para que possamos nos identificar momentaneamente com o fora da lei. O desejo de machucar e o desejo de matar são estreitamente ligados à necessidade sexual, sob o império da qual nenhum homem age de modo razoável. Nossa própria repugnância é a prova da angústia subjacente de que cada um de nós pode se transformar num assassino; do medo que, um dia, uma vez — sob o império das circunstâncias que corroerão a barreira edificada por séculos de civilização — você ou eu, nós poderemos ser esta pessoa.

publicado. Ele conservava apenas uma cópia em papel-carbono de seu texto datilografado. (N.A.) 3  A expressão, mais comumente grafada como “Tat Tvan Asi”, costuma ser traduzida por “isto és tu”. (N.T.) 4  Desta época em diante, Lang manteve um espesso volume no qual anotava os eventos de seu dia: cada

telefonema, cada visita e até o cardápio de cada refeição. Durante minha estadia em Beverly Hills, ele me incitou a fazer o mesmo e, de uma maneira comovente, passou suas noites anotando tudo comigo. (N.O.)


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook

Articles inside

filMOGRafia

53min
pages 115-161

A máquina infernal Suplício de uma alma Serge Daney

21min
pages 107-114

A mão Suplício de uma alma Jacques Rivette

11min
pages 102-106

O verdadeiro culpado Vive-se uma só vez Jean Douchet

4min
page 99

Amar Fritz Lang Os corruptos

7min
pages 100-101

O poder e “sua” loucura M., o vampiro de Düsseldorf Roger Dadoun

24min
pages 89-96

Liliom: uma vez é nenhuma vez João Bénard da Costa

7min
pages 97-98

Metrópolis

19min
pages 80-88

Metrópolis descoberto Fernando Martín Peña

30min
pages 61-70

Dicionário Fritz Lang

12min
pages 73-78

Brecht por Lang/Lang por Brecht

6min
pages 71-72

M

33min
pages 24-33

O artista e o assassino: o cinema da mão de Fritz Lang Joe McElhaney

22min
pages 41-49

Trajetória de Fritz Lang Michel Mourlet

12min
pages 50-53

Fritz Lang, o exemplar Gérard Legrand

19min
pages 54-60

Conheça John Doe: Lang chega à América Tom Gunning

24min
pages 34-40

Entrevista com Fritz Lang

16min
pages 14-20

Fritz Lang senta-se à mesa de Goebbels Bernard Eisenschitz

5min
pages 22-23

Fritz Lang, ou o homem duplo Inácio Araújo

3min
page 21
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.