Fritz Lang, o exemplar Gérard Legrand
Trecho do capítulo “Fritz Lang l’exemplaire”, em Cinémanie, de Gérard Legrand. Paris: Stock Cinéma, 1979. Traduzido do francês por Calac Nogueira. (N.E.)
Pensei em dedicar este livro à sua memória. Isso quer dizer que eu só saberia posicioná-lo muito acima. “Evidentemente” não declarado ou subconsciente no início, o princípio de sua mise en scène é o mais ambicioso possível. Trata-se de substituir o cineasta não tanto por um “demiurgo” platônico, ou mesmo romântico, mas pelo próprio destino, porém um destino lúcido, capaz de piedade ou de ironia, incapaz de se deter na constituição de um Universo. “Aquele que crê ter uma vocação de cineasta deve se sentir seriamente como estes grandes pioneiros que exploram terras desconhecidas.”1 Explora-se verdadeiramente apenas aquilo que se inventa, e reciprocamente. Cada “segmento” de filme é ao mesmo tempo descoberta e construção. Fechado deve ser este universo, cujas fissuras são incansavelmente reparadas. Esse princípio é buscado desde o período alemão, à roda de uma primeira tentativa de “triangulação” (A morte cansada [Der müde Tod, 1921]).2 Exercícios erráticos ligados ao contexto de uma época: cenografia geométrica (Os Nibelungos [Die Nibelungen, 1924]), aventuras folhetinescas (As Aranhas [Die Spinnen, 1919], Os espiões [Spione, 1928]) ou não (A mulher na lua [Frau im Mond, 1929]), “expressionismo”, enfim, que fez tanto (mal) para a reputação do cineasta (e que ele critica por meio de uma frase de Mabuse). Pouco a pouco, através dos avatares da “crítica social”, à qual Lang se agarra como que para não ser ultrapassado por sua própria potência, a figura do demiurgo — que o destino toma como máscara, depois rejeita ao abismo uma vez que sua tarefa é concluída — emerge do anonimato das confrarias secretas como a potência de um criminoso louco (Mabuse, derrotado essencialmente por sua própria loucura), e depois de um mecanismo social inteiro, que despedaça um criminoso desta vez menos fascinante do que fascinado (M., o vampiro de Düsseldorf [M, 1931]). “Paralelamente”, se desembaraça a articulação central da mise en scène, a articulação dialética: Lang é um dos raríssimos diretores a quem podemos aplicar esse termo perigoso. Articulação entre a continuidade do olhar — cada plano de uma sequência idealmente se ordena em torno de uma linha de força do plano precedente ou do abscesso “ideal” dessa linha 1 Frase do próprio Lang (ver o texto “Dicionário” neste catálogo). (N.E.) 2 Este não é um jogo de palavras com o título francês do filme [Les Trois lumières, As três luzes — N.T.]: existem “três luzes”, mas também três personagens fundamentais: a Morte (palavra masculina em alemão), ou seja, o Pai ou Cronos, o comedor de crianças; a Mãe e a
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— e a relativa margem de apreciação deixada ao espectador pelo emprego de um enquadramento milimetricamente calculado, “impessoal”, ou seja, falsamente objetivo, na realidade a assinatura de uma megalomania, “modesta” ou não. No período americano, como que em virtude de uma “adesão” profunda à democracia, a vontade demiúrgica é dispersada entre vários personagens. O cineasta permanece o único mestre do tempo e do espaço em que esses personagens, cada vez mais ativos, tentam se revoltar (contra as forças que os esmagam) ao mesmo tempo em que lutam (uns contra os outros): Os corruptos (The Big Heat, 1953) corrige os “erros” de Metrópolis (Metropolis, 1927) — não há “falsa Maria”, mas uma única mulher, meia-sombra, meia-luz. A questão do combate interessa ao cineasta apenas secundariamente, pois não se triunfa sobre o Destino senão com a ajuda do próprio Destino — e aparentemente filme nenhum no mundo pode fechar este círculo.3 (…) Lang resiste a todas as tentativas de anexação. Diante da evidência de seu ateísmo,4 Henri Angel, em seu pequeno livro sobre os grandes cineastas, renuncia a ver nele um blasfemador ameaçado pela graça, e conclui um breve elogio técnico comparando-o (cito de memória) a um gênio na lua, capaz de observar in vitro as condutas humanas com a calma de um entomologista. O diretor é certamente sincero quando declara preferir M., Fúria (Fury, 1936) e No silêncio de uma cidade (While the City Sleeps, 1956) porque são filmes fundados numa “crítica social” e também quando diz ter encontrado em Berlim, por volta de 1930, um elemento que lhe faltava em Os espiões, neste caso, o “desenvolvimento dos personagens”, em suma, a análise psicológica. Mas é tão óbvio que ele utiliza a análise psicológica, ou mesmo a psicanálise, e a crítica social apenas como materiais de outra coisa! Da mesma forma, Lang recomenda que se ofereça a Bertolt Brecht a chance de escrever Os carrascos também morrem (Hangmen Also Die!, 1943). Mas, quando o roteiro se transforma
Criança. E o esquete central é um “retorno” tipicamente languiano em sua estrutura dramática, que funciona sobre o triângulo tradicional (esposa ciumenta, mulher infiel, amante). (N.O.) 3 Sobre A morte cansada e Metrópolis, cf. meu artigo na Positif, no 73, p. 31. Sobre Fritz Lang, cf. também Positif, no 188, 1977. (N.O.)
4 Ateísmo dissimulado, como era a regra então, em “agnosticismo”. A um infeliz (de resto, “vidente” profissional…) que o perguntava o que ele pensava da comunicação com o além, Lang respondeu educadamente citando a frase de Hamlet: “Há mais coisas entre o céu e a terra…”, resposta evasiva, se for o caso. Cf. Belline, La Troisième oreille. Paris: Laffont, 1973. (N.O.)