FRITZ LANG: O HORROR ESTÁ NO HORIZONTE

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Dicionário Fritz Lang

Publicado originalmente sob o título “Dictionnaire”, em Trois lumières, coletânea de textos e documentos organizada por Alfred Eibel. Paris: Flammarion, 1989, pp. 238-246. Traduzido do francês por Bruno Andrade. (N.E.)

Arte Uma coisa é certa. A arte deve ser crítica; é sua força e sua razão. Essa crítica deve ser uma crítica social, mas não unicamente. Há neste mundo muitas coisas que devem ser criticadas. Não se pode propor soluções, mas deve-se sempre lutar para se designar o mal. Assim, meus filmes policiais americanos são, antes de tudo, uma crítica dirigida contra a corrupção policial e, portanto, contra toda corrupção. Às vezes ocorre que um criador descubra em si mesmo coisas de que não gosta, e então ele deve criticar essas coisas. L’Avventura Eu vi A aventura (L’Avventura, 1960) e não gostei. Para início de conversa, entediei-me. Em segundo lugar: qual a necessidade de se fazer esse filme? Dizem-me que ele quer mostrar que a moral está morta. Já sabíamos isso. Não existe razão alguma para mostrá-lo. Câmera Todos sabem que os filmes serão ainda mais divertidos para o público se este tiver o sentimento de participar daquilo que se passa na tela. Pode-se obter esse resultado por meio de uma utilização apropriada da câmera. O espectador do teatro está sempre na posição de um homem que observa por um vão. Ele só pode olhar para a frente e, se os atores viram as costas, ele fica restrito a vê-los de costas, ignorando o que podem estar tramando. O teatro, como campo de expressão do ator, foi expandido e substituído pelo cinema. A câmera pode apresentar um grande número de ângulos diferentes. A câmera pode mostrar a ação exatamente como a imaginava e a visualizava o autor enquanto escrevia sua história. Da mesma forma que o leitor visualiza a história que lê, a câmera, que é um olho universal, possui um poder pelo qual o público é transportado para além da fileira e acaba participando da ação. Cartas na mesa Encontrei algo que hoje é bastante interessante para mim, e que acredito ser verdadeiro: em todos os meus filmes, eu coloco as cartas na mesa. Creio que isso é muito mais interessante do que os filmes policiais ingleses em que não se sabe quem é o assassino, ou o culpado. Acredito que é bem mais interessante mostrar, como num tabuleiro de xadrez, o que cada um faz.

Censura Não faço parte das pessoas que tomam as leis próprias a Hollywood como desculpa para um eventual insucesso crítico. É claro, dois encenadores invisíveis entram no jogo aqui com mais importância do que no resto do mundo: a necessidade de se obter sucesso financeiro e a censura, cuja importância diminui de ano para ano. Não faz tanto tempo que os grandes estúdios ainda podiam se permitir rodar filmes de prestígio que, dadas as circunstâncias, não eram sucessos de bilheteria. As firmas de produção detinham também a propriedade da maior parte dos cinemas e podiam deixar por várias semanas em cartaz um filme com dificuldades financeiras, mesmo quando ele não deslanchava de imediato. Hoje em dia, o divórcio entre as companhias produtoras e as salas está quase que completamente concluído. Mas ao invés do efeito esperado, que seria melhorar a qualidade dos filmes em função do aumento da concorrência, é precisamente o contrário que se produz. Para obter os favores do distribuidor, os produtores lançam mão cada vez mais das cartadas mais garantidas. E a censura? Você realmente crê que eu poderia ainda hoje rodar um filme como Fúria (Fury, 1936), meu primeiro trabalho nos Estados Unidos, uma acusação da histeria coletiva? Não vivemos hoje num período semelhante? O filme atacava a lei não escrita do linchamento. O que aconteceria a um cineasta que tentasse uma descrição semelhante de um problema contemporâneo? Você lê os jornais; você pode responder por si mesmo. Cultura Crê-se, em geral, que é possível colocar a cultura americana no mesmo plano que a da Europa. É um erro profundo. Do outro lado do Atlântico a cultura é mais técnica, mais vasta, talvez mais interessante. No que me diz respeito, tendo frequentado as duas culturas, eu gostaria de conseguir realizar uma mescla feliz das duas concepções. Dizer Não faço filmes para a geração de Fritz Lang. Eu comecei minha carreira em 1918, e as pequenas coisas que tenho a dizer, creio que é necessário repeti-las para todas as gerações. É necessário somente repeti-las em outros termos, enriquecidas de sua própria experiência. São em geral coisas bastante simples, como “o dinheiro não é a coisa mais importante do mundo”, “o amor é uma grande descoberta”, “encontrar-se a si mesmo é o mais alto valor”. São ideias elementares que nada têm de 71


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