Metrópolis Lotte H. Eisner
Publicado originalmente como um capítulo do livro Fritz Lang. Paris: Cahiers du Cinéma/ Cinemathèque Française, 1976. Cortesia de The Estate of Lotte H. Eisner. Traduzido do francês por Alice Furtado. (N.E.)
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Os Nibelungos (Die Nibelungen, 1924) era um drama do pas— se entrega à cabotinagem e se afasta com um passo pesado sado. Metrópolis (Metropolis, 1927) se pretende um drama do (a montagem da peça de Barlach, Der blaue Booll, por Jürgen futuro, do ano 2000. É por isso que percebemos mais intensaFehling, com o mesmo George, ocorreu apenas alguns anos mente ali o estilo dos anos vinte, dos quais ainda não estamos mais tarde). A cena nas catacumbas, onde a massa sombria, de rostos suficientemente distantes para vê-lo enquanto documento de pálidos, contrapõe-se às cruzes brancas no fundo do quadro e à época, enquanto estilo histórico. doce aparição de Maria, é de extrema intensidade dramática. A Trata-se aqui, sobretudo, de destacar os aspectos positivos narrativa da parábola da Torre de Babel, em que as imagens são do filme, por exemplo sua abertura suntuosa. Neste filme mudo, reenquadradas por raios luminosos nas bordas, e assim isoladas o som foi visualizado com uma tal intensidade que temos a da própria ação, torna-se uma lenda imponente. Os escravos impressão de ouvir o batimento das máquinas e as sirenes da invadem as ruas, que se assemelham aos tentáculos de um polvo usina, com seus raios de luz semelhantes a fanfarras. Movimento de baixo para cima, de trás para a frente: os — mil escravos de cabeça raspada empurram enormes blocos. A luz aqui tem por função tornar o simbólico sensível e pistões das máquinas aparecem num espaço tridimensional, concreto. Os homens que se empinam na escada são como que tangíveis através da bruma preenchida de luz e da sobreimpresrodeados por uma aura, contornos luminosos destacam as formas são que os transformam em gigantescos símbolos do trabalho. tensas de seus corpos. Sentimos a energia de sua vontade diante Movimentos de engrenagem, jogos de pistões: a visão expressionista e surrealista se une às conquistas técnicas da avant-garde. da aparição luminosa do Eleito que os domina. A própria Torre — A equipe de reposição — escravos vestidos de preto, de cabeça inspirada na de Brueghel — se torna assim muito impressionante. Assim é também a perseguição nas catacumbas — mesmo baixa, criaturas anônimas do trabalho que avançam nos corredose, no papel de Maria, uma Brigitte Helm iniciante se entregue a res num passo igual e ritmado, comparável ao dos Sprechchöre (coros falados) dos trabalhadores expressionistas-revolucionários, contorções que já fazem pensar em seu duplo, a falsa Maria. O feixe de luz da lâmpada de Rotwang a aterroriza, revela o horror fileiras de homens nas quais o indivíduo se perde na massa. Na central das máquinas, os operários se transformam em dos locais — esqueletos e cabeças de mortos —, e termina por agulhas de grandes quadrantes, executando em ritmo brusco imobilizá-la. um trabalho misterioso para manter funcionando as gigantesRudolf Klein-Rogge (Rotwang) é o único ator do filme que cas engrenagens. São máquinas, mais do que seres humanos, alcança sem ruptura de estilo uma interpretação extática. Seus mais ainda do que o robô que aparecerá em seguida. gestos quebrados e sem transição são exatamente aqueles Depois, o acidente, visto através do vapor. Figuras sombrias de um mágico, um visionário fora do tempo, possuído por atravessam a atmosfera espessa da sala das máquinas. Diante uma loucura mística. Quando ele assombra seu laboratório, de um Freder aterrorizado — paralisado em uma diagonal rebaixando manivelas e ativando relâmpagos que se elevam nos expressionista, em seu elegante traje de seda branca —, pastubos de ensaio, estamos longe dos laboratórios grotescos de sam em contraluz os corpos dos carregadores de macas com certos filmes de horror norte-americanos. Esse sonho futurista os feridos. A impressão produzida não tem nada de simbólica, é magnificamente executado: os círculos de luz que ascendem seria mais de ordem documental. regularmente em torno do corpo da criatura-máquina são tão Cada vez que esse aspecto documental predomina — mesmo críveis quanto a evocação do demônio em O Golem (Der Golem, quando Lang se esforça para criar representações surrealistas ou 1920) ou Fausto (Faust, 1926). fantásticas —, ele nos permite esquecer o lado pomposo do filme. A aparição dos arranha-céus é esplêndida. Lang fora aos A transformação que intervém em seguida é uma evocação Estados Unidos em 1925 para estudar métodos de produção, a Cabiria (1914), de Pastrone: aos olhos de Freder, a central se e foi sua primeira visão — à noite — dos arranha-céus de torna um Moloch1 de garganta escancarada e olhos reluzentes. Colunas de trabalhadores substitutos continuam avançando e 1 Moloch: deus ao qual os amonitas, uma etnia de são ali devorados. Canaã (povos presentes na península arábica e na No mundo estilizado dos operários, toda visão é igualmente região do Oriente Médio), sacrificavam seus recémforte. Apenas sorrimos quando o capataz — Heinrich George -nascidos, jogando-os numa fogueira. (N.E.)