FRITZ LANG: O HORROR ESTÁ NO HORIZONTE

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O poder e “sua” loucura  sobre M., o vampiro de Düsseldorf Roger Dadoun

Publicado originalmente sob o título “Le pouvoir et ‘sa’ folie”. Positif no 188, dezembro de 1976. Traduzido do francês por Luiz Soares Júnior. (N.e.)

As dificuldades encontradas por Lang para realizar em 1931 seu primeiro filme sonoro, M., o vampiro de Düsseldorf (M) — estúdios recusados, cartas de ameaça, abandono do título “Os assassinos estão entre nós” —, já sugerem que semelhante obra ultrapassa seu propósito manifesto, que é o de apresentar uma história policial inspirada num fait divers célebre da época, o caso do “vampiro de Düsseldorf”. Lang se empenhou em fazer, do assassino psicopata de meninas que aterroriza uma cidade inteira, um retrato complexo, uma análise extremamente detalhada e fina (pois podemos, falando rigorosamente, considerar como análise a escolha, a disposição, a articulação e a inserção de formas e de signos constitutivos da imagem); e ao mesmo tempo ele introduziu um terceiro termo para substituir uma polícia e um poder impotentes: a organização dos marginais, que caça o assassino, captura-o e se erige em tribunal para condená-lo à morte. Interditado pelos nazistas e pelos fascistas, o filme só poderá ser visto na Alemanha e na Itália em 1960. Sua perfeição, enquanto narrativa estritamente policial, poderia ter lhe angariado uma adesão quase unânime. Desde sempre sublinhou-se o extraordinário virtuosismo de Lang: a preparação hábil de um clima de medo que assombra uma cidade moderna de quatro milhões de habitantes; a primeira figuração do assassino sob o aspecto de uma sombra que se projeta sobre a coluna Morris, onde está afixado um cartaz com o anúncio de uma recompensa; informações abundantes e precisas sobre os métodos da investigação policial, os costumes dos ladrões e a situação econômico-social da época; o paralelismo meticuloso e extremamente denso entre o Grupo Polícia e o Grupo Marginal; o emprego sistemático e incrivelmente eficaz das figuras sonoras (voz off dizendo o nome de Elsie, a pequena vítima, sobreposta a planos fixos que inventariam a morte da menina; toada assobiada pelo assassino; raccords etc); a caracterização vigorosa dos personagens, mesmo os mais episódicos; a disposição estratégica dos efeitos de suspense etc. Por todas as evidências, se semelhante filme pôde suscitar resistências ferozes ou veladas (violentas no contexto histórico-político do fascismo, veladas nas recusas ulteriores a ultrapassar o quadro narrativo, a intriga policial), é porque ele atinge camadas profundas da sensibilidade — “sensibilidade” designando aqui, inseparavelmente, as forças emocionais elementares que ritmam a vivência individual e as intuições ou percepções difusas por meio das quais uma sociedade capta suas estruturas e movimentos internos e suas variações

históricas. Estas emoções primárias, estas intuições, estes movimentos e estas variações nos são dados a ver por Lang. Da Lei e das Mães Vejamos, por exemplo, dois materiais essenciais de toda sociedade: a Lei, as Mães; a primeira definida por uma distância misteriosa se alçando até a abstração e a transcendência, as segundas sempre ávidas de proclamar sua proximidade concreta, vigorosa, arrebatadora. Assim as trata Lang nas últimas imagens de seu filme: quando os ladrões, reunidos em tribunal, onde acabam de condenar M. à morte e se preparam para pôr as mãos à obra, linchando-o, são imobilizados pela irrupção da polícia no recinto — uma polícia que não vemos; vemos simplesmente uma mão que pousa sobre a espádua de M., jogado sobre o chão, e ouvimos uma voz off pronunciar estas únicas palavras: “em nome da lei”. O olhar elevado para cima de M. e o eixo do braço do policial instituem uma direção vertical da imagem, e designam, portanto, acima e para além desta, a instância superior, invisível, de um Poder. Poder que, aparentemente, acabou por triunfar, porque chegou a colocar a mão em M. Mas se trata de um triunfo puramente formal, que é imediatamente tornado derrisório, achatado, esvaziado de seu sentido (colocar um fim no terror que dominou a cidade), obscurecido ou extinto pelo plano seguinte, o último do filme, que não é nada senão um insistente “plano negro” no qual ressoa a voz grave de uma mulher conclamando as “mães” a permanecer vigilantes, a exercer permanente atenção sobre seus filhos — reafirmação, portanto, de um medo que resiste à atividade legal do Poder, que não tem confiança nele, que o acusa de impotência; que o repudia. Esta frase terminal, conclusiva, cujo efeito ideológico se percebe fácil e fortemente (ela tende a encaminhar o filme para o lado “das mães”; em todo caso, deixa-o suspenso sobre o cimo do abismo maternal), prolonga, reforça e dá sua amplidão extrema e definitiva (é a palavra do fim) à intervenção de uma das mulheres, durante o processo organizado pelos marginais; esta mulher se ergue (literalmente, ou iconicamente falando: ela se levanta e aponta o dedo indicador, e seu movimento é consolidado pelo enlace do corpo de outra mulher, sentada, que lhe serve como uma espécie de suporte patético) contra a argumentação legalista, humanitária e humanista (M. é um doente, é preciso cuidar dele, este é o dever do Estado) desenvolvida pelo advogado-ladrão de M. Contrapondo-se a esta linha de raciocínio, ela invoca a expectativa angustiada das mães, narrando o horror que a invade 87


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