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E o mar logo ali Ana Gomes

Áustria,

24 de dezembro de 2021

As ideias, meu amigo, são menores nos nossos dias. não importam. as liberdades também fazem isso, uma não importância do que se pensa, porque parece que já nem é preciso pensar. Sabe, é como não termos sequer de pensar na liberdade. é um dado adquirido, como existir oxigénio e usarmos os pulmões.

Valter Hugo Mãe, “A máquina de fazer espanhóis”, 2016, Porto Editora

Querido Miguel.

É a primeira vez que te escrevo. Preferes a videochamada. Hoje é uma surpresa!

A tua irmã Helen deve ter umas dezenas de cartas enviadas por mim dos vários lugares por onde passei. Por ela ser mais velha e mais dada à leitura, acabámos por ir comunicando dessa forma quando eu estava em viagem.

Desde 2016 que passo o natal fora. Já te posso dizer porquê. Apesar de ter sido muito presente na vossa vida quando eram mais pequenos, esta altura festiva dá-me vontade de fugir em vez de reunir. E assim tem sido, pelos países mais longínquos e diferentes.

Os últimos dois anos têm sido estranhos para todos, até para mim que já vi de tudo – corrijo - já tinha visto de quase tudo. Acabei por ficar pela Europa porque – pensei - não deixa de ser uma casa que partilha de um único sistema de valores essenciais, seria como ir à casa do vizinho.

Enganei-me.

Apanhas-me na Áustria. Isto não é só música … Nas últimas semanas, dezenas de milhar têm marcado

E O MAR LOGO ALI

Ana Gomes

presença em manifestações em protesto contra as medidas restritivas dos direitos, num país onde cerca de 70% já levaram a pica. Noticia-se agora a proibição de manifestações até às seis da tarde para não prejudicar os negócios na época de natal. E depois do levantamento de mais um lockdown, a minoria está impedida de sair livremente e foi anunciada para breve a Impfplicht para maiores de 14 anos, sob pena de multa.

Desta vez não estou num daqueles países que não aparece nas televisões. Deves estar a par do que se passa ... Já me esquecia, és um jovem, não vês televisão, nem aprendeste que as normas que preveem os direitos se aplicam a ti e ao teu amigo, a todos.

Por favor, não te tornes indiferente. Lembras-te quando ainda mal falavas e saía um “É injusto!”, um grito de indignação quando te castigava e deixava a tua irmã ficar acordada até mais tarde ? Pois, reaviva essa memória e fica atento.

Regresso em janeiro. Talvez faça aí falta. Aqui, além de faltar o que aí também tinhamos por adquirido, falta o mar. Não há mar, nem fica logo ali …

Diz à Helen que também receberá uma carta.

Um abraço para ti!

(As personagens do texto são as mesmas das apresentadas na edição de dezembro de 2016, assim como a citação de Valter Hugo Mãe. Voltamos sempre à literatura.)

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