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Flores na Abíssinia Carla Coelho

Presente Inesperado Presente Inesperado

FLORES NA ABISSÍNIA

Carla Coelho

Abri a caixa do correio e vi o embrulho. Inesperado. Não encomendei nada e por estes dias apenas por lá encontro contas e publicidade não solicitada.

O remetente é um notário com escritório em Berlim. O que me poderá querer? Observo o pequeno embrulho em papel pardo, interrogando-me como foi possível colocá-lo dentro da caixa do correio. Um exercício de esforço e delicadeza combinados de certeza. O nome do destinatário coincide sem dúvida com o meu. Verifico todos os lados da embalagem, tem selo e demais arrebiques administrativos e a indicação de que é uma oferta. Arregalo os olhos. Nada há a celebrar. O meu aniversário passou e para o de Jesus Cristo ainda faltam umas semanas. Para as crianças do meu tempo estas são as duas datas em que se esperam presentes. E também quando passamos de ano, vá, com sorte e alguma generosidade parental. De qualquer forma e seja qual for a ocasião do ano não vejo que presente possa vir de um notário. Não gosto de surpresas, muito menos das que vêm pelo correio. Por isso, é com o coração em desatino que entro em casa e sem tirar o casaco sento-me na sala preparada para abrir o embrulho. Quantos filmes e livros começam com este enredo, afastando-se do lugarcomum pela diversidade dos conteúdos e mestria de quem narra a história. O que vou encontrar? Droga? Estremeço só de pensar em como poderei explicar esse envio à polícia. Quem vai acreditar que sou vítima de um logro ou de um criminoso que confundiu as ruas ou os números da porta? Documentos secretos? Mas quais e porquê? Ocorre-me um filme antigo em que um incauto cidadão se vê envolvido numa intriga internacional, pondo em risco a vida e a liberdade. Não me apetecia mesmo nada, diga-se. Fotografias comprometedoras? Faço um esforço de memória tentando lembrar alguma situação vagamente embaraçosa que possa agora estar contida no embrulho que de tesoura em punho vou abrindo. Sintome desiludida comigo mesmo perante a simplicidade dos acontecimentos da minha vida. Nada a registar, nada a apontar. Pelo menos, tanto quanto a minha memória e a minha imaginação alcançam, claro.

Afasto o papel pardo que revela pequeno saco de veludo azul escuro fechado com uma corrente dourada. Por cima, um envelope com timbre profissional.

Abro-o e leio:

O bilhete adensa o mistério. Não conheço nenhuma Carole Ava Mostraem, Tem de haver aqui um engano. Também acho estranha a referência a fervorosos cumprimentos da parte de alguém que não conheço.

Ainda assim, decido abrir o pacote, talvez a única forma de perceber que situação é esta, afinal. Desamarro a corrente dourada e cai-me em cima da mesa um velho baralho de cartas. Agora tenho a certeza de que só pode ser um erro. Não jogo cartas, nunca joguei. Tenho uma vaga fantasia de entrar num casino, jogar poker ou blackjack (não são a mesma coisa, certo?), mas isso é fruto de muitas horas a ler romances de espionagem.

Observo baralho de cartas que acabo de herdar. É antigo, disso não há dúvidas, apesar de estar primorosamente conservado. As ilustrações são muito bonitas e delicadas. Enquanto as observo apercebo-me de que se trata de um baralho de tarot o que apenas aumenta a minha surpresa. Os baralhos começaram a surgir em meados do século XV e serviam essencialmente para jogo. Mais tarde, a partir do século XVIII foram progressivamente utilizados para práticas divinatórias. E isto é tudo o que sei sobre esta matéria.

Quem é esta Carole Mostraem? Onde a encontrei e que ocasião partilhámos? E porque motivo me envia um baralho de tarot?

Uma das cartas vem separada, envolvida num pedaço de papel antigo.

“Exma. Senhora,

Na sequência da abertura de testamento da Senhora D. Carole Ava Mostraem e por expressa e última vontade desta e em memória da ocasião em que se encontraram, aqui lhe enviamos a lembrança que lhe deixou em herança.

Estamos à disposição para qualquer esclarecimento adicional e permitimo-nos apresentar os melhores e mais fervorosos cumprimentos, antecipando também os melhores desejos natalícios.

Ludwig Brandsteim”.

“Esta é a sua carta, uma e outra vez. Esteja atenta. Com estima, Carole.”

Observei o valete de copas que está ao contrário.

Não percebi nada senão isto: não me parece que venha aí coisa boa. Mas talvez seja apena o meu pessimismo metódico a falar. Certo é que este não é um presente que possa ignorar ou reciclar, embrulhando-o e enviando-o a outrem. E daí …

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