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A Mercearia Lília Tavares
Lília Tavares
Co-autora na empresa Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen 28 de abril de 2010 até ao presente
Estudou Clinical psychology em Ispa - Instituto Universitário Frequentou de 1984 a 1990
Autora de “Bailarinas de Corda”e “Nomes da Noite”
A Mercearia A Mercearia
Sines era na altura uma vila pequena. A minha mãe pedia-me para ‘fazer um mandado’ (*) que eu tanto gostava de fazer.
«Vai à da Mna. Ermelinda comprar um litro de sal, um litro de feijão-frade e um pacotinho de meio quilo de café de cevada moído com uma quarta de café».
Saía pela porta de trás e lá ia eu à mercearia da D. Ermelinda e do Sr. José Baltazar a balançar uma cesta de verga muito usada. Entrava pela velha porta das traseiras passando por uma divisão onde estava a arca do sal. Cheirava a mar e a salmoura. Era levantada a pesada tampa contra a parede e enchia-se a medida, de madeira envelhecida ou de alumínio para dentro de um cartucho de papel sem cor definida. “Um litro”, dizia, “e agora, o que é que a tua mãe pediu mais?”. Eu respondia e acompanhava o Sr. José, homem de rosto redondo com o cabelo aos caracóis, até à mercearia propriamente dita.
Os aromas mudavam logo ao atravessar a abertura para a área mais luminosa e barulhenta da loja. Estantes altas de madeira até ao tecto mostravam caixas de papelão branco, outras de alumínio com rótulos coloridos. As embalagens amarelas da farinha Maizena, vaidosas, saltavam à vista. E eu mirava os frascos do Pensal, as caixas da farinha Amparo, as latas do Nesquick e quase esbarrava nas garrafas do vinagre e do azeite na prateleira à minha altura. Enquanto pensava para comigo “a mãe disse que me comprava bolachas de baunilha quando pudesse”, sentia a mão suave da Mna. Ermelinda, mulher alta, de tez clara e grossas lentes, a pousar no meu ombro.
Eu dizia num sopro só “A minha mãe pediu um litro de feijão-frade e meio quilo de cevada moída com uma quarta de café.”. “O feijão está aqui, respondia, o café é com o José. Diz à tua mãe que estou à espera de bacalhau”.
Agradecia e aproximava-me da grande máquina rectangular, para mim dourada e mágica, que moía ruidosamente as sementes acastanhadas que o Sr. José para lá deitava. O pó escuro e aromático deslizava de outro orifício que à sua saída encontrava a abertura de um pequeno cartucho que o Sr. José pesava cuidadosamente no prato metálico da balança que apontava o peso num mostrador branco e triangular.
Punha-me em bicos de pés para ler as palavras ‘António Pessoa, Lda.’ escritas numa letra voluptuosa e cor de prata. “Não conheço ninguém que se chame Pessoa”, pensava, abanando a cabeça. Quase tudo se comprava em cartuchos verticais de papel pardo que se fechavam fazendo uma dobra no topo (a fita-cola veio depois).
Enquanto esperava para pagar, via que os embrulhos se atavam com cordel de algodão de cor viva, em cilindros, e pendia de um simples suporte fixado ao tecto para estar a jeito e não atrapalhar. O cordel era cortado com um golpe seco das mãos e poucas vezes com tesoura. Chegava-me ao balcão, estendia as moedas certas para pagar. Abria-se uma gaveta de madeira com espacinhos também de madeira onde as moedas eram separadas e as notas também. Saía para a rua. Tudo vinha na cesta, menos o cartucho do café que segurava na mão, encostado ao nariz. Toda a rua ficava perfumada. Eu guardava aquele aroma até ao deitar. Sonhava com a nova ‘’máquina de moer café no momento’’ que o Sr. José comprara para satisfazer os clientes.