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A culpa no cinema de Alfred Hitchcock | Renato Barroso
RENATO BARROSO
O mais interessante da minha vida é o que faço fora do direito: este livro do Hitch, as duas participações nos livros de Contos feitos por Juízes (A Contos com a Justiça) e alguma actividade lateral que faço, infelizmente de forma esporádica, de comentários de filmes, quer em salas, quer em escritos.
Aqui vai também uma foto minha, com o livro, à frente da estante com os DVDs do Hitch e a sua máscara no topo, bem como, o boneco da Tippi Hedren, alusivo ao seu filme máximo de reflexão sobre a culpa: Os Pássaros.
A Culpa no Cinema de Alfred Hitchcock
Apaixonado pelo cinema desde que me lembro, fui, bem cedo, frequentador assíduo da Cinemateca Portuguesa, local que, rapidamente, se tornou a minha segunda casa e onde aprendi a amar os clássicos da 7ª Arte e os grandes Autores do Cinema.
Foi, pois, na Cinemateca, que travei conhecimento com Alfred Hitchcock, ao princípio, apenas considerado um mestre exímio no domínio dos mecanismos do suspense e um invulgar manipulador dos domínios narrativos.
Todavia, à medida que fui mergulhando na complexidade da sua obra, nela fui vendo um denominador comum: a noção de Culpa, nas suas múltiplas perspectivas, criminal, ética, moral, social ou comunitária.
Como diz o personagem interpretado por Woody Allen, nesse fabuloso Broadway Danny Rose (O Agente da Broadway), de 1984, realizado pelo próprio, « A culpa é essencial à vida humana, é importante sentirmos culpa, se assim não fosse éramos capazes de fazer coisas horríveis» e esta noção sobre a importância da culpa foi indiscutivelmente sentida por Hitch, que, ao longo da sua longa e frutuosa carreira, nunca deixou, em maior ou menor escala, com mais evidência ou de forma subtil, de a enunciar, de se debruçar sobre ela e de por aí nos deixar fundos e complexos motivos de reflexão. A verdade, é que a Culpa, como conceito, sempre me interessou. Sendo ateu e não tendo tido qualquer educação religiosa, é indiscutível que a culpa, no sentido judaico-cristão que enforma a nossa sociedade, está connosco em cada minuto da nossa vida, remete-nos na essência, para o mais fundo da nossa civilização. Culpa pelo que fazemos e pelo que não fazemos, pelo que dissemos e pelo que devíamos ter dito, culpa por isto e por aquilo, a culpa, sempre a culpa.
Talvez por isso, sempre preferi o Direito Criminal como ramo de direito e assim que pude, logo optei pela especialização da minha vida de magistrado em tribunais criminais até aos dias de hoje.
Ora, para um juiz criminal, há tantos anos habituado a decidir culpas e a definir sanções, nada mais aliciante do que me perder em cada filme de um Autor genial e nele procurar descobrir a presença clara ou os vestígios difusos da Culpa: da sua aparência, da sua transferência, da sua permutabilidade ou da sua ausência.
O que o Cinema de Hitchcock nos ensina é que, por detrás do mais óbvio criminoso, se pode esconder um outro responsável, que, por esta ou aquela razão, escapa impune. O que os filmes de Hitch nos demonstram é que a noção comum de culpa, aliada à ideia de reprovação existente em qualquer sistema penal, pode ser profundamente insuficiente para julgar comportamentos não
no Cinema de Alfred Hitchcock
reconhecidos juridicamente como culposos, mas que o são socialmente.
Ao longo de toda a sua obra, Alfred Hitchcok analisou a temática da culpa sob inúmeras perspectivas, colocandose, a si próprio, diversas possibilidades sobre a questão de saber quem é, efectivamente, o verdadeiro culpado de um determinado crime, sendo múltiplas as hipóteses hitchcokianas. A assunção de culpa, a ausência de culpa, real ou fictícia, a transferência de culpa, foram matérias que Hitch tratou, incansavelmente, pois o que sempre lhe interessou, neste mundo cinzento, foram os recantos da culpabilidade, os lugares onde esta se esconde, onde se revela em pormenores, onde se descobre, a ambiguidade das noções de culpa e de inocência, a tensão entre a ordem e o caos, o quadro em que todos representamos papéis, verdadeiros ou falsos, os mecanismos da culpa, de como se culpa o inocente e de como o inocente é culpado, até se desmontar esse mecanismo incriminatório.
Educado num colégio de jesuítas, aqui se estruturou a sua noção de medo, maximizada, quer pelo receio da polícia - profissão que Hitch dizia ter sido a única que nunca lhe passou pela cabeça desempenhar - quer pelos castigos corporais então aplicados com profusão e que lhe desenharam os seus sentimentos de culpa pelo perigo de estarem associados a algo de mal ou a algo de errado.
Muito organizado na vida privada, com uma necessidade de controlo sobre a sua personalidade pública e profissional, com uma vida pessoal aparentemente banal, Hitch vingouse, elaborando uma excepcional obra, densa, complexa, enigmática, sobre o lado negro da alma humana e onde, simultaneamente, se revelou e se escondeu.
É igualmente certo que Hitch nunca demonstrou, na sua obra, particular consideração por juízes, ou seja, por quem tem por profissão a avaliação das culpas dos outros.
Na verdade, para quem a noção de culpa é algo de tão difuso, para quem sempre viveu entre falsos inocentes e culpados ausentes, não pode ser muito apreciado quem tem certezas sobre estas matérias e quem, com autoridade, condena com a segurança de saber que a culpa pode ser atribuída.
Mas o fascínio pelo seu universo
“A verdade, é que a Culpa, como conceito, sempre me interessou. Sendo ateu e não tendo tido qualquer educação religiosa, é indiscutível que a culpa, no sentido judaico-cristão que enforma a nossa sociedade, está connosco em cada minuto da nossa vida, remete-nos na essência, para o mais fundo da nossa civilização. “
cinematográfico, absolutamente único na História do Cinema, levaram-me a um exercício que me deu um enorme gozo: ver toda a sua Obra, pelos olhos da Culpa.
Ver em cada filme onde está a culpa hitchcockiana, seja ela criminal, social, ética, comunitária, moral, ou mesmo, metafísica.
E daí nasceu o livro intitulado “A Culpa no cinema de A. Hitchcock”, editado por Letras Encantadas, um calhamaço de mais de 500 páginas, onde depois de três capítulos iniciais (uma breve biografia do realizador, um capítulo jurídico sobre a noção de culpa no direito português e outro em que relaciono, de forma geral, os seus filmes com esta temática), analiso toda a obra hitchcockiana, sob os olhos, como se disse, da Culpa, sendo certo que, para Hitchcock, quem diz Culpa, diz Inocência.
Cinquenta e dois filmes, vinte episódios que dirigiu para a televisão e as duas curta-metragens que realizou em tempo de guerra. Uma obra fabulosa de um cineasta inesgotável.
E a verdade, é que no fim de tudo, e tentando responder à pergunta inicial do livro: Alfred Hitchcock, Culpado ou Inocente? não sou capaz de decidir como juiz.
Mas já como cinéfilo, só lhe consigo dizer: