46 Edição ~Justiça com A

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RENATO BARROSO O mais interessante da minha vida é o que faço fora do direito: este livro do Hitch, as duas participações nos livros de Contos feitos por Juízes (A Contos com a Justiça) e alguma actividade lateral que faço, infelizmente de forma esporádica, de comentários de filmes, quer em salas, quer em escritos. Aqui vai também uma foto minha, com o livro, à frente da estante com os DVDs do Hitch e a sua máscara no topo, bem como, o boneco da Tippi Hedren, alusivo ao seu filme máximo de reflexão sobre a culpa: Os Pássaros.

A Culpa no Cinema de Alfred Apaixonado pelo cinema desde que me lembro, fui, bem cedo, frequentador assíduo da Cinemateca Portuguesa, local que, rapidamente, se tornou a minha segunda casa e onde aprendi a amar os clássicos da 7ª Arte e os grandes Autores do Cinema. Foi, pois, na Cinemateca, que travei conhecimento com Alfred Hitchcock, ao princípio, apenas considerado um mestre exímio no domínio dos mecanismos do suspense e um invulgar manipulador dos domínios narrativos. Todavia, à medida que fui mergulhando na complexidade da sua obra, nela fui vendo um denominador comum: a noção de Culpa, nas suas múltiplas perspectivas, criminal, ética, moral, social ou comunitária. Como diz o personagem interpretado por Woody Allen, nesse fabuloso Broadway Danny Rose (O Agente da Broadway), de 1984, realizado pelo próprio, « A culpa é essencial à vida humana, é importante sentirmos culpa, se assim não fosse éramos capazes de fazer coisas horríveis» e esta noção sobre a importância da culpa foi indiscutivelmente sentida por Hitch, que, ao longo da sua longa e frutuosa carreira, nunca deixou, em maior ou menor escala, com mais evidência ou de forma subtil, de a enunciar, de se debruçar sobre ela e de por aí nos deixar fundos e complexos motivos de reflexão.

A verdade, é que a Culpa, como conceito, sempre me interessou. Sendo ateu e não tendo tido qualquer educação religiosa, é indiscutível que a culpa, no sentido judaico-cristão que enforma a nossa sociedade, está connosco em cada minuto da nossa vida, remete-nos na essência, para o mais fundo da nossa civilização. Culpa pelo que fazemos e pelo que não fazemos, pelo que dissemos e pelo que devíamos ter dito, culpa por isto e por aquilo, a culpa, sempre a culpa. Talvez por isso, sempre preferi o Direito Criminal como ramo de direito e assim que pude, logo optei pela especialização da minha vida de magistrado em tribunais criminais até aos dias de hoje. Ora, para um juiz criminal, há tantos anos habituado a decidir culpas e a definir sanções, nada mais aliciante do que me perder em cada filme de um Autor genial e nele procurar descobrir a presença clara ou os vestígios difusos da Culpa: da sua aparência, da sua transferência, da sua permutabilidade ou da sua ausência. O que o Cinema de Hitchcock nos ensina é que, por detrás do mais óbvio criminoso, se pode esconder um outro responsável, que, por esta ou aquela razão, escapa impune. O que os filmes de Hitch nos demonstram é que a noção comum de culpa, aliada à ideia de reprovação existente em qualquer sistema penal, pode ser profundamente insuficiente para julgar comportamentos não

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