DEZEMBRO 2021
46º Edição
Sketch de Henrique Vogado
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Indíce DEZEMBRO 2021
04 ....... Harrogate | Lícinia Quitério
06 ....... O País precisa da Tap. Sim ou Não? | António Manuel Cunha Lopes
08 ....... E o mar logo ali | Ana Gomes
10 .......Flores na Abíssinia ! Carla Coelho
12 ....... A culpa no cinema de Alfred Hitchcock | Renato Barroso
14 ....... A Mercearia ! Lília Tavares
16 ....... O Perfeito Nazi | Duarte Rodrigues Nunes
18 ....... Cantinho do João ! João Correia
20 ....... Ré em causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira
22 ....... Pano para mangas | Margarida Vargues
24 ....... Pausa para Café |
Quando se começa a olhar para trás
26 ....... Você corta a Etiqueta? | Margarida de Mello Moser
28 .......SKETCHES | Henrique Vogado
DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA DESIGN E PRODUÇÃO: DIOGO FERREIRA INÊS OLIVEIRA SITE: WWW.JUSTICACOMA.COM FACEBOOK: JUSTIÇA COM A
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Editorial
DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA
POSTAL DE BOAS FESTAS Escrito no verso da Capa Lindíssima deste mês
Votos de felizes leituras e se houver cinema, que seja sem culpas, literatura que seja muita, Direitos que não se esqueçam e sempre se batam por eles. Poesia, leiam-na ou escrevam-na, e regressem à infância, nem que seja só à lembrança dos aromas desse tempo. Usem botões de punho, ofereçam presentes inesperados, acreditem no Futuro e repensem posições. Temo temas polémicos. Votos de muitas provocações para as vossas cabecinhas, opiniões diferentes e, já agora, fiquem com água na boca por causa dos textos que começam este ano e só acabam no ano que vem.
Frequentem a Net com critério porque a JustiçA com A é On line Excelente Época de Natal e até já em 2022
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Lícinia Quitério
HARROGATE Eu nunca tinha ouvido falar em Harrogate, mas aconteceu achar-me por lá. Desde então o lugar passou a existir.
Bem enquadrado nas brumas de suas majestades reinantes, rodeada de prados encharcados por águas de todo o ano, a povoação deixa que nos aproximemos e oferece-nos, a nós, transeuntes de fim de tarde, a disponibilidade de um jardim, a solidez da frontaria de um belo edifício vitoriano.
“May I?” A inesperada voz de falsete do empregado fezme soltar um riso desordenado e, em lastimável convulsão, sem conseguir articular um Yes, afastei o tronco para que retirasse o prato. Ainda lhe vi o olhinho seco, traverso, como uma praga. Junto à janela, Miss Marple tamborilava os dedos na mesa e olhava alternadamente para mim e para o empregado.
Eram ali os Banhos, luxos de tempos não muito distantes, lugar de veraneio e descanso de aristocratas de sangue e de pensamento. Hoje, um hotel de gama média, confortavelmente estrelado. Um dos sítios eleitos para sossegos e deambulações de Agatha Christie, a senhora de imaginação prodigiosa, construtora de histórias de crimes imperfeitos desvendados por detectives astutos, de mentes Encontrei-a de novo no dia seguinte, no checknecessariamente mais perversas do que as in do hotel. Segurava um manuscrito de poucas páginas. Pude ver o título: “The Murder of the dos criminosos praticantes. Laughing Guest”. O homem do chapéu de chuva às riscas não acaba de chegar no seu passo de relógio A voz aflautada soou por detrás do meu ombro: desacertado. Estão tão cansados os namorados com os olhos bocejando a compasso.
Good morning!
Não me ri. Sou uma senhora de boas maneiras.
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O País precisa da TAP Sim ou Não? Comandante da TAP Aposentado Muitas histórias para contar
ANTÓNIO MANUEL CUNHA LOPES
Não há reunião social ou debate televisivo em que a emergência do assunto TAP não provoque, de forma apaixonada, acesa controvérsia. É raro, porém, ouvir uma abordagem desinteressada, racional, sustentada, sem preconceitos ideológicos. Também, por isso, não posso deixar de fazer uma declaração de interesses: sou piloto de linha aérea, trabalhei na TAP cerca de 40 anos e sou reformado da TAP. Mas isso não me impede, julgo eu, de analisar de modo isento a questão
que puxei para título desta intervenção. Começo por abandonar todos os argumentos que vejo formulados e que rotulo de românticos: o papel da TAP no regresso dos retornados, a presença dos símbolos nacionais nos aeroportos internacionais, a alegria dos nossos emigrantes ao sentir-se em casa quando entram nos aviões da nossa companhia, e tantos outros que no fundo apontam para a natureza pública da empresa. E faço-o porque não me parece que o esforço dos contribuintes deva ser justificado por considerações desta natureza. Até porque, por razões
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meramente economicistas a TAP há muitos anos “abandonou”, ou não serviu de modo apropriado e equitativo, todas as regiões do País. E por este motivo vem criando uma legião de críticos que, com razão, mostram a sua hostilidade ao suporte orçamental das opções da empresa. Mas se a razão é essa, parece simples a solução: a definição de obrigações de serviço público asseguradas por um plano estratégico e operacional que as contemple. E não se diga que a dimensão do esforço não é equilibrada com o interesse protegido, porquanto os
4 mil milhões de euros necessários têm muito mais a ver com as consequências económicas decorrentes das restrições impostas pela proteção da saúde pública num quadro de pandemia, do que da ineficiente gestão da empresa. Recordese a inexistência de qualquer outra ajuda do Estado desde o fim do século 20, Há cerca de 25 anos que a TAP não beneficia de qualquer outra ajuda pública para além da que está agora em discussão e que relançou o debate. 25 Anos, durante os quais, as contribuições da TAP para a economia nacional e para o Orçamento de Estado excederam, largamente, a ajuda que a sobrevivência da empresa parece exigir. Estas ajudas de Estado ocorreram em muitos outros países europeus e apenas os concorrentes privados, em especial um, contestou a sua razão de ser. Porquê então o ruido que a própria União Europeia tem criado em torno do caso português? Mais uma vez a TAP foi vítima da guerra partidária e dos preconceitos ideológicos que levaram a enfatizar a situação financeira pré-pandemia provocada pela privatização. No entanto, ignoraram-se as razões próximas do desequilíbrio financeiro, gerado essencialmente pelas transformações a que se assistiram no plano estratégico, as dores de crescimento causadas pela introdução de novas rotas com aeronaves desajustadas ou até obsoletas e cuja substituição estava programada para assegurar a rentabilidade dessas rotas. Acresce que a saturação do Aeroporto
de Lisboa condicionou o crescimento da empresa, constituindo uma fonte de irregularidades cujos prejuízos causados não terão andado longe, só em 2019, de cerca de 100 milhões de euros. Claro que tudo isto não importa quando o objetivo é utilizar a situação da empresa como arma de arremesso ideológico fragilizando-se a apresentação em Bruxelas do caso português empolando os efeitos da privatização em vez dos danos gerados pela pandemia. Quando se ganhou consciência do erro, era tarde de mais, tendo como consequência a dramática redução de dimensão que não podia deixar de ter custos sociais enormes e a perda da oportunidade de garantir o sucesso do eixo América do Norte - África, tal como o eixo Europa – Brasil representara o maior fator de sucesso nos primeiros vinte anos deste século. E é esta questão que nos transporta para aquilo que, quanto a nós, é a chave da resposta à questão formulada. É comum ouvir-se que o encerramento da TAP seria irrelevante porque outras operadoras responderiam às necessidades do mercado. Tal é verdade para o mercado português, mas sem uma companhia ”hub” desaparecia cerca de 20% dos passageiros que passam pelos aeroportos portugueses, nomeadamente Lisboa e Porto e que não se destinam ao território português. Perguntar-se-á qual é o interesse de passageiros que apenas passam pelos nossos aeroportos? Sem eles muitas das rotas diretas de que
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hoje Portugal beneficia deixariam de ser viáveis economicamente e seriam encerradas, limitando a qualidade das nossas acessibilidades e deixando de constituir o fator essencial de suporte ao crescimento do nosso Turismo, em especial o segmento dos “short breaks” inviável sem rotas diretas. Não parece ser necessário salientar a importância do Turismo e da sua recente contribuição para o crescimento do PIB nacional e absorção do desemprego gerado pela crise financeira subsequente à queda do Lehman Brothers. Este setor será o grande prejudicado pelo desaparecimento da TAP, mas também todos os portugueses que perderão a disponibilidade de muitas rotas diretas com as consequências em termos de tempo gasto e comodidade das suas deslocações. Não será tempo de, sem preconceitos ideológicos, se fazerem as contas do deve e haver de forma isenta e transparente e se avaliar a real importância da existência de uma companhia “hub”? E se esta é indispensável ao País, porque não a TAP, pública ou privada com obrigações de serviço público?
Áustria, 24 de dezembro de 2021
As ideias, meu amigo, são menores nos nossos dias. não importam. as liberdades também fazem isso, uma não importância do que se pensa, porque parece que já nem é preciso pensar. Sabe, é como não termos sequer de pensar na liberdade. é um dado adquirido, como existir oxigénio e usarmos os pulmões. Valter Hugo Mãe, “A máquina de fazer espanhóis”, 2016, Porto Editora
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E O MAR LOGO ALI
Querido Miguel.
Ana Gomes
É a primeira vez que te escrevo. Preferes a videochamada. Hoje é uma surpresa! A tua irmã Helen deve ter umas dezenas de cartas enviadas por mim dos vários lugares por onde passei. Por ela ser mais velha e mais dada à leitura, acabámos por ir comunicando dessa forma quando eu estava em viagem. Desde 2016 que passo o natal fora. Já te posso dizer porquê. Apesar de ter sido muito presente na vossa vida quando eram mais pequenos, esta altura festiva dá-me vontade de fugir em vez de reunir. E assim tem sido, pelos países mais longínquos e diferentes. Os últimos dois anos têm sido estranhos para todos, até para mim que já vi de tudo – corrijo - já tinha visto de quase tudo. Acabei por ficar pela Europa porque – pensei - não deixa de ser uma casa que partilha de um único sistema de valores essenciais, seria como ir à casa do vizinho. Enganei-me. Apanhas-me na Áustria. Isto não é só música … Nas últimas semanas, dezenas de milhar têm marcado
presença em manifestações em protesto contra as medidas restritivas dos direitos, num país onde cerca de 70% já levaram a pica. Noticia-se agora a proibição de manifestações até às seis da tarde para não prejudicar os negócios na época de natal. E depois do levantamento de mais um lockdown, a minoria está impedida de sair livremente e foi anunciada para breve a Impfplicht para maiores de 14 anos, sob pena de multa. Desta vez não estou num daqueles países que não aparece nas televisões. Deves estar a par do que se passa ... Já me esquecia, és um jovem, não vês televisão, nem aprendeste que as normas que preveem os direitos se aplicam a ti e ao teu amigo, a todos. Por favor, não te tornes indiferente.
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Lembras-te quando ainda mal falavas e saía um “É injusto!”, um grito de indignação quando te castigava e deixava a tua irmã ficar acordada até mais tarde ? Pois, reaviva essa memória e fica atento. Regresso em janeiro. Talvez faça aí falta. Aqui, além de faltar o que aí também tinhamos por adquirido, falta o mar. Não há mar, nem fica logo ali … Diz à Helen que também receberá uma carta. Um abraço para ti! (As personagens do texto são as mesmas das apresentadas na edição de dezembro de 2016, assim como a citação de Valter Hugo Mãe. Voltamos sempre à literatura.)
Presente Inesperado FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho
Abri a caixa do correio e vi o embrulho. Inesperado. Não encomendei nada e por estes dias apenas por lá encontro contas e publicidade não solicitada. O remetente é um notário com escritório em Berlim. O que me poderá querer? Observo o pequeno embrulho em papel pardo, interrogando-me como foi possível colocá-lo dentro da caixa do correio. Um exercício de esforço e delicadeza combinados de certeza. O nome do destinatário coincide sem dúvida com o meu. Verifico todos os lados da embalagem, tem selo e demais arrebiques administrativos e a indicação de que é uma oferta. Arregalo os olhos. Nada há a celebrar. O meu aniversário passou e para o de Jesus Cristo ainda faltam umas semanas. Para as crianças do meu tempo estas são as duas datas em que se esperam presentes. E também quando passamos de ano, vá, com sorte e alguma generosidade parental. De qualquer forma e seja qual for a ocasião do ano não vejo que presente possa vir de um notário. Não gosto de surpresas, muito menos das que vêm pelo correio. Por isso, é com o coração em desatino que entro em casa e sem tirar o casaco sento-me na sala preparada para abrir o embrulho.
Quantos filmes e livros começam com este enredo, afastando-se do lugarcomum pela diversidade dos conteúdos e mestria de quem narra a história. O que vou encontrar? Droga? Estremeço só de pensar em como poderei explicar esse envio à polícia. Quem vai acreditar que sou vítima de um logro ou de um criminoso que confundiu as ruas ou os números da porta? Documentos secretos? Mas quais e porquê? Ocorre-me um filme antigo em que um incauto cidadão se vê envolvido numa intriga internacional, pondo em risco a vida e a liberdade. Não me apetecia mesmo nada, diga-se. Fotografias comprometedoras? Faço um esforço de memória tentando lembrar alguma situação vagamente embaraçosa que possa agora estar contida no embrulho que de tesoura em punho vou abrindo. Sintome desiludida comigo mesmo perante a simplicidade dos acontecimentos da minha vida. Nada a registar, nada a apontar. Pelo menos, tanto quanto a minha memória e a minha imaginação alcançam, claro. Afasto o papel pardo que revela pequeno saco de veludo azul escuro fechado com uma corrente dourada. Por cima, um envelope com timbre profissional.
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Abro-o e leio:
casino, jogar poker ou blackjack (não são a mesma coisa, certo?), mas isso é fruto de muitas horas a ler romances de espionagem. Observo baralho de cartas que acabo de herdar. É antigo, disso não há dúvidas, apesar de estar primorosamente conservado. As ilustrações são muito bonitas e delicadas. Enquanto as observo apercebo-me de que se trata de um baralho de tarot o que apenas aumenta a minha surpresa. Os baralhos começaram a surgir em meados do século XV e serviam essencialmente para jogo. Mais tarde, a partir do século XVIII foram progressivamente utilizados para práticas divinatórias. E isto é tudo o que sei sobre esta matéria.
“Exma. Senhora, Na sequência da abertura de testamento da Senhora D. Carole Ava Mostraem e por expressa e última vontade desta e em memória da ocasião em que se encontraram, aqui lhe enviamos a lembrança que lhe deixou em herança. Estamos à disposição para qualquer esclarecimento adicional e permitimo-nos apresentar os melhores e mais fervorosos cumprimentos, antecipando também os melhores desejos natalícios. Ludwig Brandsteim”.
Quem é esta Carole Mostraem? Onde a encontrei e que ocasião partilhámos? E porque motivo me envia um baralho de tarot? Uma das cartas vem separada, envolvida num pedaço de papel antigo.
O bilhete adensa o mistério. Não conheço nenhuma Carole Ava Mostraem, Tem de haver aqui um engano. Também acho estranha a referência a fervorosos cumprimentos da parte de alguém que não conheço. Ainda assim, decido abrir o pacote, talvez a única forma de perceber que situação é esta, afinal. Desamarro a corrente dourada e cai-me em cima da mesa um velho baralho de cartas. Agora tenho a certeza de que só pode ser um erro. Não jogo cartas, nunca joguei. Tenho uma vaga fantasia de entrar num
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“Esta é a sua carta, uma e outra vez. Esteja atenta. Com estima, Carole.” Observei o valete de copas que está ao contrário. Não percebi nada senão isto: não me parece que venha aí coisa boa. Mas talvez seja apena o meu pessimismo metódico a falar. Certo é que este não é um presente que possa ignorar ou reciclar, embrulhando-o e enviando-o a outrem. E daí …
RENATO BARROSO O mais interessante da minha vida é o que faço fora do direito: este livro do Hitch, as duas participações nos livros de Contos feitos por Juízes (A Contos com a Justiça) e alguma actividade lateral que faço, infelizmente de forma esporádica, de comentários de filmes, quer em salas, quer em escritos. Aqui vai também uma foto minha, com o livro, à frente da estante com os DVDs do Hitch e a sua máscara no topo, bem como, o boneco da Tippi Hedren, alusivo ao seu filme máximo de reflexão sobre a culpa: Os Pássaros.
A Culpa no Cinema de Alfred Apaixonado pelo cinema desde que me lembro, fui, bem cedo, frequentador assíduo da Cinemateca Portuguesa, local que, rapidamente, se tornou a minha segunda casa e onde aprendi a amar os clássicos da 7ª Arte e os grandes Autores do Cinema. Foi, pois, na Cinemateca, que travei conhecimento com Alfred Hitchcock, ao princípio, apenas considerado um mestre exímio no domínio dos mecanismos do suspense e um invulgar manipulador dos domínios narrativos. Todavia, à medida que fui mergulhando na complexidade da sua obra, nela fui vendo um denominador comum: a noção de Culpa, nas suas múltiplas perspectivas, criminal, ética, moral, social ou comunitária. Como diz o personagem interpretado por Woody Allen, nesse fabuloso Broadway Danny Rose (O Agente da Broadway), de 1984, realizado pelo próprio, « A culpa é essencial à vida humana, é importante sentirmos culpa, se assim não fosse éramos capazes de fazer coisas horríveis» e esta noção sobre a importância da culpa foi indiscutivelmente sentida por Hitch, que, ao longo da sua longa e frutuosa carreira, nunca deixou, em maior ou menor escala, com mais evidência ou de forma subtil, de a enunciar, de se debruçar sobre ela e de por aí nos deixar fundos e complexos motivos de reflexão.
A verdade, é que a Culpa, como conceito, sempre me interessou. Sendo ateu e não tendo tido qualquer educação religiosa, é indiscutível que a culpa, no sentido judaico-cristão que enforma a nossa sociedade, está connosco em cada minuto da nossa vida, remete-nos na essência, para o mais fundo da nossa civilização. Culpa pelo que fazemos e pelo que não fazemos, pelo que dissemos e pelo que devíamos ter dito, culpa por isto e por aquilo, a culpa, sempre a culpa. Talvez por isso, sempre preferi o Direito Criminal como ramo de direito e assim que pude, logo optei pela especialização da minha vida de magistrado em tribunais criminais até aos dias de hoje. Ora, para um juiz criminal, há tantos anos habituado a decidir culpas e a definir sanções, nada mais aliciante do que me perder em cada filme de um Autor genial e nele procurar descobrir a presença clara ou os vestígios difusos da Culpa: da sua aparência, da sua transferência, da sua permutabilidade ou da sua ausência. O que o Cinema de Hitchcock nos ensina é que, por detrás do mais óbvio criminoso, se pode esconder um outro responsável, que, por esta ou aquela razão, escapa impune. O que os filmes de Hitch nos demonstram é que a noção comum de culpa, aliada à ideia de reprovação existente em qualquer sistema penal, pode ser profundamente insuficiente para julgar comportamentos não
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“A verdade, é que a Culpa, como conceito, sempre me interessou. Sendo ateu e não tendo tido qualquer educação religiosa, é indiscutível que a culpa, no sentido judaico-cristão que enforma a nossa sociedade, está connosco em cada minuto da nossa vida, remete-nos na essência, para o mais fundo da nossa civilização. “
d Hitchcock reconhecidos juridicamente como culposos, mas que o são socialmente. Ao longo de toda a sua obra, Alfred Hitchcok analisou a temática da culpa sob inúmeras perspectivas, colocandose, a si próprio, diversas possibilidades sobre a questão de saber quem é, efectivamente, o verdadeiro culpado de um determinado crime, sendo múltiplas as hipóteses hitchcokianas. A assunção de culpa, a ausência de culpa, real ou fictícia, a transferência de culpa, foram matérias que Hitch tratou, incansavelmente, pois o que sempre lhe interessou, neste mundo cinzento, foram os recantos da culpabilidade, os lugares onde esta se esconde, onde se revela em pormenores, onde se descobre, a ambiguidade das noções de culpa e de inocência, a tensão entre a ordem e o caos, o quadro em que todos representamos papéis, verdadeiros ou falsos, os mecanismos da culpa, de como se culpa o inocente e de como o inocente é culpado, até se desmontar esse mecanismo incriminatório. Educado num colégio de jesuítas, aqui se estruturou a sua noção de medo, maximizada, quer pelo receio
cinematográfico, absolutamente único na História do Cinema, levaram-me a um exercício que me deu um enorme gozo: ver toda a sua Obra, pelos olhos da Culpa. da polícia - profissão que Hitch dizia ter sido a única que nunca lhe passou pela cabeça desempenhar - quer pelos castigos corporais então aplicados com profusão e que lhe desenharam os seus sentimentos de culpa pelo perigo de estarem associados a algo de mal ou a algo de errado.
Ver em cada filme onde está a culpa hitchcockiana, seja ela criminal, social, ética, comunitária, moral, ou mesmo, metafísica.
Muito organizado na vida privada, com uma necessidade de controlo sobre a sua personalidade pública e profissional, com uma vida pessoal aparentemente banal, Hitch vingouse, elaborando uma excepcional obra, densa, complexa, enigmática, sobre o lado negro da alma humana e onde, simultaneamente, se revelou e se escondeu.
E daí nasceu o livro intitulado “A Culpa no cinema de A. Hitchcock”, editado por Letras Encantadas, um calhamaço de mais de 500 páginas, onde depois de três capítulos iniciais (uma breve biografia do realizador, um capítulo jurídico sobre a noção de culpa no direito português e outro em que relaciono, de forma geral, os seus filmes com esta temática), analiso toda a obra hitchcockiana, sob os olhos, como se disse, da Culpa, sendo certo que, para Hitchcock, quem diz Culpa, diz Inocência.
É igualmente certo que Hitch nunca demonstrou, na sua obra, particular consideração por juízes, ou seja, por quem tem por profissão a avaliação das culpas dos outros.
Cinquenta e dois filmes, vinte episódios que dirigiu para a televisão e as duas curta-metragens que realizou em tempo de guerra. Uma obra fabulosa de um cineasta inesgotável.
Na verdade, para quem a noção de culpa é algo de tão difuso, para quem sempre viveu entre falsos inocentes e culpados ausentes, não pode ser muito apreciado quem tem certezas sobre estas matérias e quem, com autoridade, condena com a segurança de saber que a culpa pode ser atribuída.
E a verdade, é que no fim de tudo, e tentando responder à pergunta inicial do livro: Alfred Hitchcock, Culpado ou Inocente? não sou capaz de decidir como juiz.
Mas o fascínio pelo seu universo
Obrigado, Hitch!
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Mas já como cinéfilo, só lhe consigo dizer:
Lília Tavares Co-autora na empresa Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen 28 de abril de 2010 até ao presente Estudou Clinical psychology em Ispa - Instituto Universitário Frequentou de 1984 a 1990 Autora de “Bailarinas de Corda”e “Nomes da Noite”
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A Mercearia Sines era na altura uma vila pequena. A minha mãe pedia-me para ‘fazer um mandado’ (*) que eu tanto gostava de fazer.
à minha altura. Enquanto pensava para comigo “a mãe disse que me comprava bolachas de baunilha quando pudesse”, sentia a mão suave da Mna. Ermelinda, mulher alta, de tez clara e grossas lentes, a pousar no meu ombro.
«Vai à da Mna. Ermelinda comprar um litro de sal, um litro de feijão-frade e um pacotinho de meio quilo de Eu dizia num sopro só “A minha café de cevada moído com mãe pediu um litro de feijão-frade uma quarta de café». e meio quilo de cevada moída Saía pela porta de trás e lá ia eu à mercearia da D. Ermelinda e do Sr. José Baltazar a balançar uma cesta de verga muito usada. Entrava pela velha porta das traseiras passando por uma divisão onde estava a arca do sal. Cheirava a mar e a salmoura. Era levantada a pesada tampa contra a parede e enchia-se a medida, de madeira envelhecida ou de alumínio para dentro de um cartucho de papel sem cor definida. “Um litro”, dizia, “e agora, o que é que a tua mãe pediu mais?”. Eu respondia e acompanhava o Sr. José, homem de rosto redondo com o cabelo aos caracóis, até à mercearia propriamente dita. Os aromas mudavam logo ao atravessar a abertura para a área mais luminosa e barulhenta da loja. Estantes altas de madeira até ao tecto mostravam caixas de papelão branco, outras de alumínio com rótulos coloridos. As embalagens amarelas da farinha Maizena, vaidosas, saltavam à vista. E eu mirava os frascos do Pensal, as caixas da farinha Amparo, as latas do Nesquick e quase esbarrava nas garrafas do vinagre e do azeite na prateleira
com uma quarta de café.”. “O feijão está aqui, respondia, o café é com o José. Diz à tua mãe que estou à espera de bacalhau”. Agradecia e aproximava-me da grande máquina rectangular, para mim dourada e mágica, que moía ruidosamente as sementes acastanhadas que o Sr. José para lá deitava. O pó escuro e aromático deslizava de outro orifício que à sua saída encontrava a abertura de um pequeno cartucho que o Sr. José pesava cuidadosamente no prato metálico da balança que apontava o peso num mostrador branco e triangular. Punha-me em bicos de pés para ler as palavras ‘António Pessoa, Lda.’ escritas numa letra voluptuosa e cor de prata. “Não conheço ninguém que se chame Pessoa”, pensava, abanando a cabeça. Quase tudo se comprava em cartuchos verticais de papel pardo que se fechavam fazendo uma dobra no topo (a fita-cola veio depois). Enquanto esperava para pagar, via que os embrulhos se atavam com cordel de algodão de cor viva, em
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cilindros, e pendia de um simples suporte fixado ao tecto para estar a jeito e não atrapalhar. O cordel era cortado com um golpe seco das mãos e poucas vezes com tesoura. Chegava-me ao balcão, estendia as moedas certas para pagar. Abria-se uma gaveta de madeira com espacinhos também de madeira onde as moedas eram separadas e as notas também. Saía para a rua. Tudo vinha na cesta, menos o cartucho do café que segurava na mão, encostado ao nariz. Toda a rua ficava perfumada. Eu guardava aquele aroma até ao deitar. Sonhava com a nova ‘’máquina de moer café no momento’’ que o Sr. José comprara para satisfazer os clientes.
Esta memória escrita ao correr da pena é dedicada a Maria do Céu Baltazar Lopes Paulo e ao poeta Joaquim Pessoa
Duarte Rodrigues Nunes
Bruno Langbehn, O Perfeito Nazi O livro O Perfeito Nazi foi escrito pelo cineasta e escritor britânico Martin Davidson, filho de um escocês e de uma alemã .
O livro descreve a biografia do seu avô materno alemão, Bruno Langbehn (1906-1992), odontologista e, mais tarde, dentista de profissão, no que concerne à sua ligação, primeiro ao movimento (1925-1933) e depois ao regime nazi (1933-1945), enquanto membro, sucessivamente, do Frontbann, das SA (Sturmabteilung) e das SS (Schutzstaffel) e, dentro das SS, do SD (Sicherheitsdienst). E também no que tange ao modo como usufruiu da sua condição de “proto-nazi” e dos cargos que exerceu durante o regime nazi (incluindo a obtenção de um consultório de dentista pertencente a um judeu que se suicidara em 1942 para “escapar” à Shoha para que Bruno Langbehn – presidente da organização representativa dos odontologistas de Berlim – e a sua sogra, igualmente odontologista, aí exercessem a sua atividade profissional) e às suas démarches (bem sucedidas) para escapar aos processos de desnazificação na Alemanha do pós-Guerra. O livro retrata ainda a personalidade autoritária, a fidelidade à causa nazi e a nostalgia do regime hitleriano até ao fim da vida, bem como o pacto de silêncio de toda uma família acerca do passado nazi do seu avô materno durante mais de quarenta anos (só quebrado após a sua morte, em 1992).
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O autor, Martin Davidson, com o seu avô materno Bruno Langbehn
A história de Bruno Langbehn retrata realidades muito frequentes no pósSegunda Guerra Mundial, como sejam a fidelidade aos ideais nazis e a nostalgia do regime hitleriano, muitas vezes acompanhadas do negacionismo ou, no mínimo, da apresentação de justificações que chegam a roçar os limites do ridículo para os crimes inequivocamente executados ou desencadeados pelos dirigentes nazis, auxiliados por toda uma coorte de funcionários subalternos dispostos a obedecer cegamente às ordens criminosas que lhes eram sistematicamente dadas, tanto por fervor ideológico/racista como por oportunismo. Outra realidade igualmente muito frequente foi/é o pacto de silêncio que, muitas vezes, se estabeleceu nas famílias de antigos nazis (sejam eles dirigentes, “meros” simpatizantes, colaboradores subalternos ou indivíduos que, de uma forma ou de outra, retiraram benefícios da sua participação ou simpatia pelo regime hitleriano), seja por imposição desses “patriarcas” (muitos deles possuidores de uma personalidade autoritária e dominadora, como era o caso de Bruno Langbehn) seja pela ignorância deliberada dos demais familiares e que, a dada altura (muitas vezes após a sua morte), acabaram por ser descobertas, conduzindo a descobertas chocantes como a que é relatada no livro de Martin Davidson. Esta história (verídica) possui algumas similitudes com o enredo do filme O
enigma da caixa de música, escrito por Joe Eszterhas, baseando-se, de certa forma, no caso real de John Demjanjuk e na sua própria história de vida, dado que, aos 45 anos de idade, descobrira que o seu pai, o Conde István Esterházy, tinha estado envolvido no Partido fascista e racista húngaro das Cruzes Flechadas ou Frechadas – Movimento Húngaro (Nyilaskeresztes Párt – Hungarista Mozgalom) liderado por Ferenc Szálasi, organizado queimas de livros e lançado propaganda antissemita do mais vil que se pudesse imaginar; por esse facto, Joe Eszterhas cortara relações com o seu pai, com quem jamais se reconciliou. De acordo com o enredo do filme, uma advogada criminalista americana bemsucedida, Anne (protagonizada por Jessica Lange), toma conhecimento de que o seu pai, um imigrante húngaro, Mike Laszlo (protagonizado por Armin Müller-Stahl), foi acusado de crimes de guerra praticados durante a Segunda Guerra Mundial. O pai, argumentando que se trata de um erro acerca da sua identidade e afirmando a sua inocência, convence Anne a assumir a sua defesa (contra o conselho do seu sogro, igualmente advogado), para o que também contribuiu o amor e a admiração profundos que o seu filho nutre pelo avô. Anne dedica-se de corpo e alma à defesa do seu pai, embora, à medida que as testemunhas vão depondo, Anne comece a duvidar da sua inocência. As testemunhas não hesitam em acusar
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Laszlo de ser o criminoso conhecido por “Mishka”, o líder de um esquadrão da morte do Partido das Cruzes Flechadas (fascistas húngaros), que colaborava com os nazis e, durante o cerco de Budapeste pelas tropas soviéticas, perseguiu, torturou e matou judeus, ciganos e pessoas que os auxiliassem. E, após uma viagem a Budapeste, Anne descobre finalmente que o seu pai, que, entretanto, fora absolvido por falta de provas, era realmente um criminoso de guerra. As situações não são totalmente idênticas, uma vez que, no enredo do filme (e mesmo na história, passada com o autor do enredo, e que lhe serve de inspiração), a protagonista é totalmente surpreendida pela macabra descoberta acerca do passado do seu pai e toma conhecimento das concretas atrocidades em que participou (sendo muito mais graves as do enredo do filme do que as cometidas pelo pai do autor do enredo), ao passo que, no livro, Martin Davidson pouco ou nada surpreendido é com a descoberta do passado nazi do seu avô e não consegue apurar em que atrocidades é que o seu avô tomou parte em concreto (ou, pelo menos, não as revela no livro). Todavia, ambas as situações têm em comum a descoberta de um passado nazi/fascista e criminoso (embora não concretizado, mas mais do que provável, no caso de Bruno Langbehn) de familiares próximos.
Continua...
CANTINHO DO JOÃO João Correia
O dilema social Não sou um fã incondicional da “netflix” e confesso que só num passado recente é que aderi à mesma. Aquando dessa adesão pedi, naturalmente, conselhos sobre o que ver e como navegar nesta plataforma (acho que é assim que se chama …) tendo recebido as recomendações habituais. Entre essas surgiu o documentário sobre as redes sociais - o dilema social - o qual eu tive o cuidado de assistir.
que as redes sociais representam um perigo. Um perigo para a saúde, para a nossa privacidade, para a autoestima e, porque não dizê-lo, para a democracia.
É impossível não gostar do documentário e não aderir às suas ideias, sobretudo no que respeita à componente aditiva das redes sociais e a qual, quem as frequenta, já a sentiu certamente na pele. É igualmente interessante o efeito que tais redes têm nos adolescentes, nos seus hábitos de consumo e na sua auto-estima. Sobretudo, quem vê o documentário fica com a percepção
Lembro-me há uns anos, durante o Verão, de viajar sozinho até à Galiza onde fiquei durante uns dias, sob o pretexto de mergulhar. Uma vez lá, também passeei, fiz caminhadas, visitei os locais habituais e outros não tanto habituais, provei a gastronomia local, entre muitas outras coisas. Naturalmente, tirei umas fotos e publiquei-as nas redes sociais onde, por sua vez, dois colegas meus
Assumindo esta premissa, escuso de salientar os potenciais danos das redes sociais e, prefiro assim relembrar alguns casos positivos que nos permitem, quiçá, colocar as coisas em perspectiva.
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do norte do país as comentaram relembrando bons momentos que tinham, em tempos, passado naquela zona em concreto, aconselhando diversos locais, desde os restaurantes até às praias. Até aqui nada de novo, porém, um mês após esta pequena viagem, um casal de amigos meus da zona de Lisboa concluiu que ainda lhes restavam alguns dias de férias e como tal, recordaram-se das minhas fotos da Galiza optando, face às mesmas, por fazer um percurso idêntico. De acordo com o que esse casal de amigos me transmitiu, foram ambos à procura das minhas publicações e registaram os locais e restaurantes que os meus dois colegas do norte aconselharam aquando dos comentários, usando-os como referência para umas boas férias.
Gosto de acreditar que, caso o casal fosse indiferente às redes sociais teriam na mesma gozado umas boas férias, porém, também gosto de saber que as minhas fotos, devidamente publicadas com os comentários de quem por lá passou, ajudaram a decidir sobre um local a descobrir. Noutra ocasião publiquei a capa de um livro acompanhada de um comentário sobre este. Tal publicação mereceu diversos comentários, quer sobre o livro, quer sobre o escritor em questão (cujo nome não digo mas dou apenas uma pista: começa por Mário e acaba em Llosa …), ora de pessoas com as quais eu já me cruzei quer de outras que eu nunca conheci. Todavia, entre esses vários comentários, houve duas pessoas que recomendaram a leitura, cada uma delas, de um outro livro. Ou seja, registei os livros que
me recomendaram e tratei não só de os adquirir como de os ler o mais rapidamente possível. Em suma, dois dos últimos livros que li foramno devido ao facto de mos terem recomendado nas redes sociais, um deles por uma pessoa com a qual nunca me cruzei. Talvez se não as frequentasse ainda assim os lesse, mas seja como for, foi um bom incentivo. Por fim, resta-me relembrar uma amiga que partilhou, há muitos anos, umas fotografias de uns cachorros para adopção. Como uma tia minha, que reside no campo, mostrou interesse enviei uma mensagem para a amiga em questão a qual me indicou um número de telefone de uma outra senhora. Esta última transmitiu-me que os cães não estavam à sua guarda, mas sim com um outro seu amigo o qual recebeu a nossa visita. Escusado será
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dizer que adoptámos uma cadelinha que ainda hoje vive com a minha tia. Enfim, componentes aditivas à parte, perigos para a saúde mental e para a democracia também, a realidade é que as redes sociais são aquilo que nós queremos que elas sejam e, não tão poucas vezes quanto isso nos presenteiam com situações como as que descrevi. Só basta, para isso, que as procuremos.
Tudo o resto vem atrás. Como tudo na vida.
OS FILHOS, OS BOTÕES DE PUNHO E O FA R O L N A B E I R A D A B A R R A
Sai pela manhã com um risco de horizonte nos
ninguém se suicide hoje porque está cansado
olhos.
das bocas do chefe quando chega tarde para a inauguração do dia que será duro.
Deixa em casa os filhos de mochila às costas e escola nas mãos.
Arregaça as mangas, não porque não esteja frio mas porque assim, o olhar se espraia no mar e
A mulher atira-lhe o último beijo que, se não
pensa que o Verão virá breve.
voltar, será isso mesmo, o último. À beira da Barra um farol apaga-se
pela
Não pode deixar de ir porque tem a mesa dos
madrugada todos os dias e volta a acender-se
filhos para pôr e qualquer coisa para comprar
à noite, quando os miúdos já dormem, a Rosa
à Rosa . É Natal. Qualquer coisa que ela achará
fechou as pétalas e os pensamentos mergulham
valiosa só porque vinda dele, ela a tudo dá valor.
no Futuro.
Na estação aguarda o comboio. Espera que
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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA Adelina Barradas de Oliveira
Um Futuro que já não é seu, mas que não sabe como
de Pai Natal. E os miúdos nem lhe notam a voz feminina
deixará aos filhos. Não sabe como será para os filhos
que engrossa ou o rímel nos olhos e o baton por detrás
embora a vida já lhe tenha dado algumas voltas ao Sol
das enormes barbas brancas que ela coloca tentando
e tenha deixado há muito de ser criança para ser luta
esconder-se nelas.
constante. Os filhos sonham, o sonho comanda a Vida e na verdade O comboio chega, ninguém se suicidou. Dá um toque
também ele sonha.
nas mangas da camisa que um arrepio puxa para baixo. Ao longe o horizonte banha-se de manhã.
Os filhos que um dia o olharão já adultos e lhe perguntarão se ainda usa os botões de punho que a Mãe
A Rosa já saiu para trabalho há muito...Lembra-se dos
lhe deu quando os amigos festejam os sentimentos na
botões que ela lhe comprou, com a letra do Nome
Igreja, e se ainda sonha quando o farol se acende lá em
dele. Manuel usa-os quando os amigos se lembram de
baixo, no fio do Horizonte, mesmo à beira da Barra e se
festejar sentimentos na Igreja.
ainda acredita no Natal.
Depois do vidro da janela da carruagem há o mar,... há
António dirá que sim, apesar de tudo e contra Tudo, há
a liberdade do sonho. No fim da linha não há nada a
o Sol na beira da barra, o Mar e o regressar a casa,... e há
não ser mais um dia de trabalho para poder pôr a mesa
Natal, o calor terno da família e da infância, mesmo para
aos miúdos e oferecer o Mundo à Rosa, ainda que esse
quem a Vida já deu muitas voltas ao Sol.
Mundo seja apenas o seu peito aberto ao Futuro. O mar corre ao lado, o dia fica para trás... O farol acendese na noite e Manuel mergulha nos sonhos que dá aos
Aperta os botões de punho que Rosa lhe deu e sorri, ... é noite de Natal.
filhos, no presente que lhes deixa no sapatinho ou que a
Natal ........ desta vez de 2021
irmã, que gosta de teatro, traz na noite de Natal vestida
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SOBRE O AMOR SOBRE O AMOR
PANO PARA MANGAS Quando um adolescente - em plena descoberta do que é o corpo, as emoções e os sentimentos - me pergunta, subitamente: “O que é o AMOR? E como é que sei que estou apaixonado/a?”, percebo que não é a desinformação que por ali paira, mas antes a ausência de alguém em quem - e com quem - confiar o que lhe vai por dentro.
Margarida Vargues
Uma pergunta destas não pode e não deve ficar sem resposta, pois não foi feita de ânimo leve e não é um qualquer vídeo no Youtube que a trará. Seria tão mais fácil, não seria? Bastaria carregar no play e saltar a publicidade.
Assim, perante o desafio dantesco de ter de falar sobre o AMOR, antes que as palavras me saíssem da boca, fui assaltada pelo monstro do medo, acompanhado de um frio na barriga e um tremor de pernas. “Sobre o AMOR? E agora o que é que eu faço? Logo eu! Se ao menos pudesse escrever…”
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Se pudesse escrever não hesitaria e, de certeza, sairia da caneta - sim, da caneta! pois assuntos sérios passam obrigatoriamente pelo papel um poema melancólico ou exaltado, conforme o meu estado de espírito - é que em tempos eu tive a mania que sabia escrever poesia... - mas agora? O que poderei eu dizer que traga algo de novo, que ainda não tenha sido dito, que faça realmente sentido e que, sobretudo, seja uma resposta?
Curvei-me, pousando os cotovelos sobre a mesa. Cobri os olhos com as mãos. Subi-as ao cabelo, soltando-o enquanto pensava. Elevei o tronco. Respirei fundo, sorri e fixei-lhe o olhar no rosto.
Comecei pela SAUDADE, a qual só pode nascer do AMOR, pois qualquer coisa que nos faça contar o tempo infinito, nos deixe de sorriso no olhar e pensamentos perdidos sabe-se lá onde, só pode daí vir.
Depois, falei-lhe sobre a euforia, a vontade de estar com o outro, as borboletas na barriga, a ansiedade nascida de qualquer minuto de espera, telefonema não atendido ou mensagem por responder…, mas estava a falar de PAIXÃO, e paixão (ainda) não é AMOR.
Vieram, então, os passeios de mãos dadas, as conversas infinitas, as mensagens até ao raiar do sol sentidos como lado a lado, mas também isso não é AMOR - isso faz parte dele. E neste rol de palavras e pensamentos fui assolada pela imagem de abraços silenciosos, pela cumplicidade nos gestos, pela vertigem do olho-no-olho, no entanto isso é, apenas, uma infinita parte de um sentimento tão nobre como o AMOR.
De seguida, falei-lhe sobre as promessas sussurradas, o juntos para sempre (para sempre mesmo e não o “para sempre enquanto durar”), os recados na porta do cacifo ou os bilhetes enfiados, à socapa, num qualquer bolso, livro ou mochila, todavia isso pareceria apenas o guião de um comédia romântica - daquelas que invadem o Natal
- onde já nasceram muitos AMORes que terminam com o acender das luzes, permanecendo, apenas na narrativa aberta do imaginário.
Fui buscar livros de autores conhecidos, mostrei-lhe poemas, expressões e imagens que veiculassem o que é o AMOR, contudo qualquer uma delas reduz o sentimento e, em conjunto, fazem apenas uma bela sopa de letras repleta de palavras e cores bonitas.
Neste monólogo cor-de-rosa, trouxe para a mesa o cinzento, onde pintei estados melancólicos, momentos de zanga e de tristeza, das incompatibilidades e incertezas, mas quem é que, com esta idade, quer ouvir sobre a face menos brilhante do AMOR?
Divaguei, também, sobre o AMOR de pais, de filhos, de irmãos e amigos; do AMOR-próprio, do AMOR às artes, à natureza, …
Li-lhe as expressões sem voz. Algumas diziam que sim, outras mostravam uma incerteza maior que a minha. Tentei responder-lhe com o coração. No final, prometi que quando com ELE me cruzasse LHE perguntaria: “Afinal, o que és e quem és?”
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FG.
Pausa para café
A Palavra ao Leitor O exercício da JUSTIÇA é na minha opinião, uma das funções mais complexas e difíceis de ser praticada deforma isenta e a coberto da maledicência. JUSTIÇA pressupõe ser justo, e na época que vivemos, as probabilidades de, por lapso, dada a extensão da legislação aplicável e a frequência com que é alterada, ou por razões outras que a condição humana dificilmente consegue ignorar, são tais, que, exige de quem a exerce, um esforço acrescido, para que a sua imagem, a sua reputação e a sua consciência, sobrevivam de forma imaculada, aos ataques infundados daqueles que prevaricam e dos que por estes são protegidos. Quotidianamente somos confrontados com denuncias que tanto podem ter fundamento, como podem ser parte de jogos políticos, de operações fraudulentas de grande envergadura, ou até serem parte de manobras internacionais de interesses diversos, com bases disseminadas pelos 5 cantos do Mundo. Conseguir distinguir o perfil de cada caso que chega ao “mundo” de quem tem que decidir, é tarefa árdua e por vezes de difícil, se não impossível, de decifrar nas primeira apreciações/avaliações .
E quanto mais elevado é o nível do órgão decisor, mais complexa se torna a sua penetração nos meandros das avaliações feitas nos escalões anteriores. É assim imprescindível, que o cidadão comum não se apresente a testemunhar litígios que não domina, causas cujos contornos não são do seu mundo profissional e/ou intelectual, para que quem julga não seja iludido por afirmações deturpadas ou viciadas. Temos como exemplo inequívoco, o ataque em curso via FB, que visa manchar a comemoração do aniversário da “Iniciativa em Título”, recorrendo a caminhos sórdidos e encapotados, porque a redação do pasquim o permite, numa atitude de vingança contra algo que pretendia/m decorresse de forma diferente em sede de Justiça, eventualmente nos níveis mais elevados de decisão. É este o veículo de confraternização que a sociedade nos proporciona, numa postura vexatória e indigna da sociedade em que gostaríamos de viver, mas cujos alicerces se desfazem afinal facilmente quando pretendem encobrir algo, não enjeitando enxovalhar os melhores.
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Como suporte desta minha tese, tive uma dolorosa experiência profissional que sucintamente descrevo: “Após a minha primeira experiência governativa, fui convidado (é força de expressão…) para desempenhar as funções de Diretor Geral do maior projeto industrial em curso no País, que já levava então mais de 2 anos de execução, tendo a adjudicação sido feita pelo Governo de Marcelo Caetano. Ao fim de dois anos nessas lides, fui convidado para Secretário de Estado, com um pelouro atribuído, mas também como S.E. substituto do Ministro. Neste contexto, propus e foi aceite, que ouvíssemos diretamente todo os Presidentes de Camara, incumbindo os então Governadores Civis (figura entretanto extinta) de organizar as reuniões com os das suas áreas de jurisdição. Estávamos em Bragança na nossa última reunião, quando um violento temporal se abateu sobre o País, principalmente nas zonas costeiras. Apesar de não estar em funções diretas, viajei toda a noite e no dia seguinte estava com o meu staff dessa obra (e com o meu substituto temporário) reunido no local de um acidente que ali tinha acontecido. Tal ocorrência tornou-se prato forte dos meios de comunicação social, sendo que um deles (semanário), me honrou com fotografia na primeira página e com a acusação de ser o responsável.
mim. Foi então promovida uma longa reunião entre mim e o jornalista autor do artigo em causa, onde lhe foi demonstrado documentalmente que eu era estranho às adjudicações, mas mesmo assim, ainda tive direito a mais 3 semanas na 1ª página, sempre com a tese inicial, e Ele feliz e contente, lá continua sendo ainda hoje figura grada em Portugal. O preço de pertencermos a 2 Partidos Políticos diametralmente opostos
A VERDADE É COMO O AZEITE, VEM SEMPRE AO DE CIMA
Obviamente que isso causou mau estar no Governo onde eu estava, pela simples razão de não ser verdade que a adjudicação tivesse sido feita por
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Cada macaco no seu galho! É isto sem tirar nem pôr: o protocolo, as boas maneiras, a etiqueta, o saber estar, resumem-se assim em bom português. E então? Então, olhando à volta, no dia-a-dia, nas situações mais quotidianas ou em dias de festa ou de pompa e circunstância, quem é que está no seu galho? Pois é .... talvez uma ou duas pessoas, que de tão bem arrumadinhas que estão, nos parecem completamente deslocadas. Perdeu-se a noção? Perdeu, completamente. E estamos a falar de quê? Disso, dos galhos, dos macacos, e da volta que a nossa vida deu.
em família, são hoje susceptíveis de criar algum mal estar. Falo de cumprimentos, que criam muitas situações incómodas, às vezes mesmo desagradáveis. Se calhar, nesta altura do campeonato, um sorriso ou um pequeno aceno, mantendo alguma distância, chegam para manter todos à vontade, sem constrangimentos. Depois, não sugira a ninguém que tire a máscara. Cada um sabe de si e sabe também se quer manter ou tirar a máscara.
Afinal, se calhar a culpa é daquelas modernices intensivas: quilómetros de olival, quilómetros de amendoeiras,
Se reúne a Família, procure mudar um pouco a logística de modo a tornar a circulação mais fácil, para haver menos cruzar de pessoas. Se o espaço for reduzido, simplifique pondo 1 ou 2 pessoas de serviço a servir toda a gente. E procure juntar em cantos da mesa ou, se puder, em mesas
quilómetros de nogueiras ....
diferentes, núcleos familiares.
E assim estamos nós, quilómetros de pessoas (os tais macacos) penduradas nos seus galhos, a dizer as mesmas coisas, politicamente correctas, a defender os mesmos interesses, a atacar as mesmas frentes, a ocupar os mesmos lugares.
Tudo se faz com bom senso e, pensar com antecedência nas alternativas, simplifica o seu trabalho. Quanto mais pequeno for o espaço, mais importante é reorganizá-lo, pensando em todos que vão festejar consigo o Natal.
Mas, não, aqui não há como. Porque por mais voltas que o mundo dê, como tão bem dizem as leis da física, palavras que com toda a certeza já escrevinhei por aqui: dois corpos não ocupam o mesmo lugar, ao mesmo tempo, e, sendo assim, cada um ocupa o seu lugar. Esta verdade absoluta não mudou uma vírgula, um acento. O que mudou mesmo foi quase tudo o resto. Tratamos as pessoas da mesma maneira que tratávamos há dois anos? Cumprimentamos da mesma maneira?
E porque é Natal, roubei estas palavras por aí, porque me vejo nelas e porque tenho sempre saudades daquela chaminé da Rua Ferreira Borges, onde sempre púnhamos o sapatinho na consoada, à espera ..... dos presentes do Menino Jesus:
“ ........ Não venho pedir nada para mim, porque tenho quem cuide de mim quando estou doente e quem se zangue comigo quando me porto mal. Posso rir quando quero e chorar quando tenho vontade. Chorar faz bem, é como rir ao contrário, ficamos de coração desapertado.
Sentamo-las à mesa como dantes? Misturamo-las sem pesar os prós e os contras? Pois é, o protocolo hoje é ainda mais desafiante. Há muito mais detalhes a ter em conta. Os contactos familiares que se aproximam são um bom teste, um bom treino, uma boa aprendizagem.
.......E por isso, Menino Jesus, venho pedir-te que deixes o riso e o choro no sapatinho de todas as crianças, mesmo daquelas que não têm sapatinho, porque uma criança que não ri é uma criança triste e uma criança que não chora é uma criança sem esperança. E isso também me custa imaginar, porque só as pessoas grandes conseguem roubar a esperança a meninos como eu e com tu.”
Há dois ou três pormenores para os quais gostava de chamar a vossa particular atenção, tanto mais que, mesmo
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MARGARIDA DE MELLO MOSER.
VOCÊ CORTA A ETIQUETA? O
N a p ata oe l, si os ae m o q aca ue co m s, ai s. ... E porque é Natal, quero-vos deixar um presente. Um presente, não, dois. Dois pequenos grandes poemas de Carlos Queiroz, que é um dos culpados do meu amor à Poesia.
“Amizade De mais ninguém, senão de ti, preciso: Do teu sereno olhar, do teu sorriso, Da tua mão pousada no meu ombro. Ouvir-te murmurar: - “Espera e confia!” E sentir converter-se em harmonia, O que era, dantes, confusão e assombro.” “Profecia Poetas: esperemos com paciência! Que a Humanidade, um dia, (quasi morta, À míngua d’alma, a Civilização), Vergada ao pêso inglório da ciência, Há-de vir mendigar à nossa porta A esmola duma canção!”
Um Santo Natal Boas Festas Um Ano Novo bom, com esperança no amanhã
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HENRIQUE VOGADO Autor do “Presépio” representado na capa da Justiça com A Colheita de 1974. Contabilista Certificado de profissão e paixão pelo Desenho desde miúdo. Urban Sketcher desde 2009. Gosto muito de desenhar o que testemunho na rua, o que me chama a atenção e que registo em diário-gráfico. Adoro o desenho como reportagem, com uma história a complementar bem os traços. Ando sempre com um pequeno caderno e uns marcadores.
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