46 Edição ~Justiça com A

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Presente Inesperado FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho

Abri a caixa do correio e vi o embrulho. Inesperado. Não encomendei nada e por estes dias apenas por lá encontro contas e publicidade não solicitada. O remetente é um notário com escritório em Berlim. O que me poderá querer? Observo o pequeno embrulho em papel pardo, interrogando-me como foi possível colocá-lo dentro da caixa do correio. Um exercício de esforço e delicadeza combinados de certeza. O nome do destinatário coincide sem dúvida com o meu. Verifico todos os lados da embalagem, tem selo e demais arrebiques administrativos e a indicação de que é uma oferta. Arregalo os olhos. Nada há a celebrar. O meu aniversário passou e para o de Jesus Cristo ainda faltam umas semanas. Para as crianças do meu tempo estas são as duas datas em que se esperam presentes. E também quando passamos de ano, vá, com sorte e alguma generosidade parental. De qualquer forma e seja qual for a ocasião do ano não vejo que presente possa vir de um notário. Não gosto de surpresas, muito menos das que vêm pelo correio. Por isso, é com o coração em desatino que entro em casa e sem tirar o casaco sento-me na sala preparada para abrir o embrulho.

Quantos filmes e livros começam com este enredo, afastando-se do lugarcomum pela diversidade dos conteúdos e mestria de quem narra a história. O que vou encontrar? Droga? Estremeço só de pensar em como poderei explicar esse envio à polícia. Quem vai acreditar que sou vítima de um logro ou de um criminoso que confundiu as ruas ou os números da porta? Documentos secretos? Mas quais e porquê? Ocorre-me um filme antigo em que um incauto cidadão se vê envolvido numa intriga internacional, pondo em risco a vida e a liberdade. Não me apetecia mesmo nada, diga-se. Fotografias comprometedoras? Faço um esforço de memória tentando lembrar alguma situação vagamente embaraçosa que possa agora estar contida no embrulho que de tesoura em punho vou abrindo. Sintome desiludida comigo mesmo perante a simplicidade dos acontecimentos da minha vida. Nada a registar, nada a apontar. Pelo menos, tanto quanto a minha memória e a minha imaginação alcançam, claro. Afasto o papel pardo que revela pequeno saco de veludo azul escuro fechado com uma corrente dourada. Por cima, um envelope com timbre profissional.

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