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E o mar logo ali Ana Gomes

E O MAR LOGO ALI

Ana Gomes

O pior que se pode sempre imaginar é não se poder negar, nem sequer discutir, reflectir ou argumentar, ter de obedecer a tudo o que passe pela cabeça de qualquer um (…), isto é o que nos toca a quase todos (…) desde o berço até à campa.

Javier Marías, “Berta Isla”, 2019, Alfaguara, (tradução de Paulo Ramos)

De países vizinhos, acabaram por conhecer-se, trocar algumas palavras escassas vezes e voltar a encontrar-se ao fim de poucos meses. Falam o mesmo idioma num Tribunal estrangeiro que tenta compreender a razão de um conflito e pôr-lhe fim. Cada um sente que se lhe for dada razão é a sua Nação que ganha e que fica com o trofeu.

Os dois homens terão crescido no seu mundo. Terão tido o mar a separá-los, a eles e ao respetivo povo, como se o mar só apartasse e não unisse. Iam nos quarenta quando o Grande Muro foi arrancado aos pedaços e partilharam à distância essa alegria, pois a Queda do Muro representava a vitória da Liberdade e o engrandecimento da civilização europeia.

Trinta anos depois, atraídos pelo sol, pela temperatura da água e pelo calor humano das gentes, instalaram-se em Tavira a gozar a reforma. Cada um adquiriu um lote, contratou a construção de uma moradia, as duas efetivamente separadas pelo pequeno quintal de cada um dos lados e de um pequeno muro.

Por aqui, já não há grandes muros, pensava um, não pode haver grandes muros.

Passara os anos a viajar em trabalho, pela Europa, com a liberdade de circulação de quem vive numa única comunidade. Agora, exigem-lhe a apresentação de um certificado de cada vez que regressa ao seu país. O seu neto deixou de fazer a viagem que tinha planeado fazer à Austrália e que tinha adiado havia dois anos. Vai ser menos viável do que ir numa viagem espacial, ou aí também será necessário o documento?

O descomprometimento da idade leva-o a regar as margaridas, ganhando de novo o sorriso. Vou plantar arbustos e flores deste lado, uma fronteira impercetível. Cumprimentou o vizinho com um “good morning!”

Nunca mais aconteceu, desde que o outro construiu sobre o primeiro muro, pequeno, um outro mais alto, enorme, impossível de galgar.

Destruiu os arbustos e as flores do outro lado, ao mesmo tempo que caíram pedaços de argamassa e caiu o sol que avivava o jardim.

O encontro em Tribunal não foi feliz e Tânia temeu, por instantes, que ali se resumisse a rivalidade entre povos e uma questão cível se transformasse num caso de polícia, e ela como testemunha. Como parece óbvio, não houve qualquer acordo e lá teve de fazer a sentença. Escreveu-a de uma vez sem grande dificuldade. Teve pena de não aprofundar as suas reflexões que a levariam muito longe, para lá da decisão seca e concisa, com a solução sobre a questão do muro. Seria uma questão de tempo até o vizinho réu voltar a impor ao outro a sua vontade.

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