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Pensar a constituição Paulo Ferreira da Cunha
from 48 Edição
Não vou falar da polémica sobre quem deva ser o defensor da Constituição, que seria a tentação mais óbvia. Aludirei a algum tempo antes e a algum tempo depois. Contudo, é essa outra uma polémica muito instrutiva. A meu ver, propiciou das melhores páginas de Kelsen, a quem o inegavelmente inteligente Carl Schmitt (que contudo não nega os fantasiosos Protocolos dos Sábios do Sião¹ ) estigmatizou, desde logo, como “judeu”... Kelsen historicamente ganhou no plano constitucional, embora a nosso ver estivesse equivocado no domínio filosófico. Coisa singular... Mas não era essa a questão das polémicas com o autor da Teologia Política.
Num dos títulos constitucionais mais citados e certamente menos lidos, e menos ainda razoados ou digeridos, que era leitura muito recomendada, se não mesmo obrigatória, quando cursei Direito Constitucional pela primeira vez, com o Doutor Gomes Canotilho, pode ler-se mais ou menos isto (não cito do meu velhinho exemplar, que, entretanto, emprestei, e obviamente, como mandam velhas leis naturais, fiquei sem ele):
“Mas todas essas definições legais formais e outras semelhantes estão tão distantes quanto a resposta anterior de uma resposta real à minha pergunta. Porque todas essas respostas contêm apenas uma descrição externa de como uma Constituição é criada, de qual é o “papel” da Constituição, mas não a indicação do que é uma Constituição. Eles dão critérios, sinais de que uma Constituição é externa e legalmente “reconhecida”. Mas eles de forma alguma nos dizem o que é a “essência”, o que é a “noção” de uma Constituição. É por isso que não nos esclarecem onde e quando uma dada Constituição será boa ou má, possível ou impossível, durável ou insustentável. Porque tudo isso só poderia decorrer da “noção” de Constituição. Devemos primeiro conhecer a “essência” de uma Constituição em geral para saber se uma Constituição específica “corresponde” a ela e o que é.”
Não me recordo de estas palavras terem tido um eco especial no caloiro que então era, e só me apercebi da sua importância muito mais tarde. Deste livro, que é, como terão detetado já, O que é uma Constituição Política?, de Ferdinand Lassalle, outras lições retirei. Algumas, como a diferença entre constituição real e outras dimensões da Constituição, nem sempre apercebidas ou nem sempre unânimes na doutrina. Outras, como a ideia de “folha de papel” para a constituição formal, cheia de simbolismo e apta a inspirar outros desenvolvimentos. E ainda o depois batizado “conceito históricouniversal de constituição” neste opúsculo presente (na coisa, não na expressão), que sendo referido em inícios de certas obras, só mais tarde seria aceite com as suas devidas implicações quanto ao nascimento da Constituição e às suas diferentes modalidades, históricas e de natureza.
Lassalle não foi aquele livrinho, creio que de capa cor-de-rosa e branca, pequenino sem utilidade aparente, mas um manancial de inspirações. Porém, da referida passagem, como dizia, não ficara nada de especial.
Até que tomei contacto com o texto da aula inaugural de 1959 do Prof. Konrad Hesse, na Universidade de Freiburg, na então República Federal da Alemanha. Como se sabe, Hesse, catedrático nessa Universidade desde 1956, foi juiz constitucional na Alemanha de 1975 a 1987. O seu discípulo Peter Haeberle, em conversas publicadas no México, enfatizou a independência do seu mestre, assinalando que teria sido o último grande constitucionalista sem vinculação partidária no seu país² . Apesar de ter sido indigitado pelo FDP e pelo SPD ³ .
Na sua lição, Die normative Kraft der Verfassung, que bem pode considerar-se, nos nossos
1. ALVES, Adamo Dias Alves / OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de - Carl Schmitt: um teórico da exceção sob o estado de exceção, “Revista Brasileira de Estudos Políticos”, Belo Horizonte, n.º 105, jul./dez. 2012, p. 261. 2-HAEBERLE, Peter – Conversaciones Académicas com…, México, Universidad Autónoma de México / Instituto de Investigaciones Juridicas, 2006, máx. p. 121. 3- Cf. https://de.wikipedia.org/w/index.php?title=Liste_der_Richter_des_Bundesverfassungsgerichts&ol11did=149232505 (consultado em 24 de novembro de 2021).
Pensar a constituição, com Lassalle e Hesse
PAULO FERREIRA DA CUNHA
termos, uma oração de sapiência académica, e é um texto fundante do Direito Constitucional hodierno, Hesse começa por referir aquela clássica conferência de 16 de abril de 1862, e dela extrai imediatamente uma tese que, podendo estar latente na primeira interpretação que muitos terão feito da leitura do texto de Lassalle, eu nunca vira expressa de forma tão clara, tão evidente, tão polémica, talvez – se quisermos colocar a questão nesses termos.
Na equação de Lassalle há, evidentemente, no problema da Constituição, duas dimensões. Uma, exterior, exógena, que é a jurídica, e uma outra, interior, endógena, que é a política. Quando um autor alemão cujo nome parece ter-se perdido, depois de tão aceite, citada e difundida a sua fórmula, acabou por dizer que a Constituição é o “estatuto jurídico do político”, acabou por unir, de forma feliz, as duas dimensões.
Mas o problema de base subsiste. E por isso importa revisitar Lassalle e Hesse.
E não o fazer de forma simplista, ou com base em restritas definições pré-concebidas de “constituição”. Contudo, para o que nos importa hoje, retenhamos apenas alguns tópicos relevantes.
Tenhamos como dado que a Constituição, em si, é mescla de direito e de política. Nem só uma nem só outra coisa. Mas, se assim é (e cremos que assim deve ser) não se trata de uma Constituição real, sociologicamente entendida, como fatores reais de poder em jogo – portanto, política – contra uma Constituição formal, texto escrito que não passa de “mera folha de papel”. Ponto para Hesse contra Lassalle? Não verdadeiramente. Apenas numa simplificação Hesse se coloca totalmente do lado da Constituição “jurídica” contra a dimensão social e política. Afirma mesmo a dependência da constituição política da realidade histórica, embora haja também uma força normativa constitucional jurídica que interfere na realidade social e política. Há, pois, uma interação, que se poderia dizer, em termos jurisfilosóficos clássicos, entre o Ser (sein) e o dever-ser (sollen).
Quem ler atentamente um e outro dos opúsculos (e têm essa excelente qualidade de serem breves, num tempo terrível em que em certos meios se confunde profusão com profundidade e qualidade), poderá verificar que a oposição entre os dois autores não é abissal, embora se possa realmente compreender que, na estratégia retórica contextual de um e outro, ao conferencista revolucionário conviesse mais sublinhar a importância das forças políticas contra o hieratismo do texto da magna carta, e o catedrático, de algum modo sacerdote do direito, fosse simpático reconhecimento de uma magia própria da normatividade constitucional, capaz de, como diria Kelsen, na Teoria Pura do Direito, como Midas criador de oiro, transformar em juridicidade tudo aquilo em que toca.
A Constituição não é nunca uma simples folha de papel – isso poderá ser uma tese aceite. Porque tem uma legitimidade que lhe dá uma vida própria, que lhe dá lastro, que a impede, assim, de voar ao sabor de qualquer brisa política nova.
Isso, porém, é o que não compreendem, ou não querem compreender alguns, que todavia sabem (instintivamente, quiçá) que a polémica
constitucional encerra uma especial magia, uma particular sedução – ainda que se questione o inquestionável e se propugne o insuscetível de ser aprovado, numa Constituição.
Sempre teremos polémicas constitucionais, enquanto as Constituições continuarem a ter a sua força normativa e não forem olvidadas pelos faits accomplis ou pelos faits du prince. Ou seja, enquanto subsistir o estado de coisas a que bem se chamou Estado Constitucional. A partir do momento em que esse robusto edifício institucional começasse a abrir brechas, o interesse polémico das propostas de rutura constitucional certamente esmoreceria. Donde se poderá concluir, com otimismo, que quanto mais propostas de pseudo revisão constitucional na verdade inconstitucionais e anticonstitucionais houver, mais sólida se encontra a implantação constitucional, desde logo como cultura constitucional e sentimento social de adesão constitucional.
Podendo parecer que não aos mais desatentos e veneradores do imediatismo, textos como os de Lassalle e de Hesse são armas de longo alcance para compreender, desmitificar, desconstruir e combater alguns dos maiores inimigos da Constituição: a falta de memória histórica, a ausência de conceitos teóricos, a incultura geral.