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Aquilino Ribeiro José António Barreiros
from 48 Edição
JOSÉ ANTÓNIO BARREIROS
AQUILINO RIBEIRO
Vindo das zonas de Viseu, em 1902 estudava no Seminário de Beja. Em 1906 convivia já em Lisboa com meios revolucionários. No ano seguinte foi preso, acusado de bombista e carbonário. Levado ao juiz Veiga, do Juízo de Instrução Criminal, seguiu-se a cadeia e o exílio.
«Passei a vida dobrado sobre a banca de escritor e só há pouco dei conta que estava velho. Como foi isso?», perguntava-se o criador do “Malhadinhas”. Quem lê esta frase fica sem imaginar sequer o que foi uma vida de turbulência, que meteu cadeia e exílio. No dia 17 de Novembro de 1907 na sua sossegada casa na Rua do Carrião ao Passadiço, em Lisboa, fabricavamse bombas. O material improvisado era feito com as pinhas de ferro com que se enfeitavam as sacadas das casas, o explosivo era mistura de pólvora negra e carda miúda de sapateiro. Clandestino, o pequeno grupo integrava o médico Gonçalves Lopes, de cujo consultório vieram transportadas e Belmonte de Lemos, comerciante da Rua dos Fanqueiros, todos da Carbonária, associação secreta para a imposição das ideias da fraternidade à lei da bomba, a “artilharia civil”. Fundada pelo bibliotecário da Câmara Municipal de Lisboa, Artur Augusto da Luz Almeida, que havia sido iniciado na Maçonaria em 1897 na Loja Luís da Camões, n.º 226, em Lisboa, como nome simbólico de ‘Desmoulins’, por essa altura a organização tinha 20 mil adeptos, estando, através da loja ‘Montanha’, infiltrada nas estruturas do Grande Oriente Lusitano. De súbito, um descuido e eis a explosão. Num ápice, o escritor estava preso, levando para a esquadra de polícia do Caminho Novo. «Manso como um cordeiro», submisso como relatou na sua memorável autobiografia ‘Um Escritor Confessa-se’, Aquilino é surpreendido em plena Rua de São José, já “sob tochas” pelo “fotógrafo universal” que a todos aprisionava no seu ‘daguerrotipo’, “Joshua Benoliel, o fotógrafo beduíno, que tanto tira a D. Manuel como tira a Bernardino”. Destino do preso, a Esquadra da Parreirinha. Entre “iscarióticos esbirros que vinham, como no Jardim Zoológico, contemplar o gerifalte que caíra no laço”, eilo levado para as Amoreiras “ao juiz Veiga, o celebre juiz Veiga, o grande papão dos republicanos, o terror dos anarquistas, o alcoviteiro do rei, a divindade colérica e tutelar que pairava sobre a Monarquia e as instituições, armada de tridente e coriscos”, titular do Juízo de Instrução Criminal. A cena do interrogatório é um momento magistral. Raposa velha, Veiga faz apelo à compreensão e ao espírito de tolerância cristã para com aquele moço, ainda agora vindo das serranias para os estudos
eclesiásticos, Aquilino não menos versátil fazia-se da ingénua da peça: “Já confessei tudo a V. Ex.ª. Eu sou um serrano em Lisboa… Mal assentei o pé, pus-me a ler Kropoktine e, por desgraça, a minha condição, pobre, desamparado, sem futuro, deixei-me contaminar pelas ideias extremistas. Logo aqueles amigos aproveitaram a minha inexperiência e meteram-me nesta camisade-onze-varas”. Não tardaria a ser levado à Morgue a reconhecer os amigos que no estado em que estavam já não se poderiam aproveitar de ninguém. Em pleno teatro anatómico, empestado a cheiro de fénico e de formol, ali estavam a “carcaça pavorosa” de um e o Dr. Gonçalves Lopes “a fronte escaqueirada, o peito com um rombo cavernoso, e uma das mãos reduzidas a coto sangrento”. Seguem-se os curros da investigação para quem tem palavras de soez desprezo, “um chefe de polícia néscio e um juiz reles e troca-tintas”. O magistrado visado era o Dr. Alves Ferreira, de que o escritor daria um retrato violento como urros: “com a pelagem totalmente branca de cobaia e pele lisa dum poupon, tinha andado pelas ilhas, pela província, sempre em comarcas de rebotalho, até que João Franco o caçou ali em Sintra, pau para toda a colher”. Aquilino evadir-se-ia do cárcere, desconjuntando, um a um, os parafusos da fechadura do gradão, com a ajuda da gravata de seda e improvisadas varetas. Esconder-se-ia numas águas-furtadas de um prédio pombalino, a 150 metros da Parreirinha, “pelas escadinhas de S. Francisco, e menos de 200 metros do Ministério do Reino, podendo ouvir, se não houvesse a interferência acústica das paredes, os espirros do Sr. João Franco”. Dali foge para França, pelo Sud Express, apanhado no Entroncamento. Chega a Paris no dia 3 de Junho de 1908, fugido. “Turista sem cheta nem bagagem, transportava, porém, um alforge de promessas de ‘irmãos’ e ‘primos’, que lhe haviam jurado com os pés em esquadria – a ele raposo, beirão, que jamais se iludiu com empana-parvos”, assim o descreve Jorge Reis ao compilar-lhe as ‘Páginas do Exílio’. O ‘caso da Rua do Carrião’, como foi chamado, levou à perda de influência do juiz Veiga. As conjuras e suspeitas não se conseguiram provar. Veiga segue para a Relação, e dali para o Supremo Tribunal de Justiça, onde se reforma. Conhecedor dos meandros do Paço e das antecâmaras dos republicanos, perguntado pelo jornalista Rocha Martins sobre se não escreveria memórias, o juiz respondeu através de um papel rabiscado, símbolo da sua discrição: “nunca!”. Dele ficou, assim, o que dele os outros escreveram. Proclamada a República, esta extinguir-lhe-ia, «para sempre» o seu Juízo de Instrução Criminal. Ironia da vida: o primeiro filho do escritor, Aníbal Aquilino Tiedmann Ribeiro, nascido em 1914, seria juiz, jubilado como Conselheiro.