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Flores na Abíssinia Carla Coelho
from 48 Edição
FLORES NA ABISSÍNIA
Carla Coelho
É do que me lembro quando recordo os meus dias em Malaca. A ausência quase total de sinais da presença portuguesa, com excepção de um simulacro do pastel de nata que, valha a verdade, não me convenceu. É engraçado como os portugueses deixaram um rasto de doce na Ásia o pastel de nata de Malaca, os fios de ovos da Tailândia, e o pão de ló (castela) no Japão.
De Malaca não me lembro de nenhum rosto, nenhuma conversa, nenhuma troca de olhares. Dois seres vêm à minha memória. Um peixe e uma osga.
Ela decidiu partilhar o quarto comigo numa das noites que por lá passei. Não me apeteceu fazer a figura do estrangeiro que não aguenta a mínima contrariedade e pedir na recepção que me mudassem de quarto. Aliás, talvez decidissem antes matá-la e para mim isso estava fora de questão. Afinal, se formos ser absolutamente honestos nada me tinha feito para gerar-me incómodo. Apenas tinha dificuldade em ver-lhe a beleza que certamente teria (todas as criaturas criadas por Deus a têm, ainda que nem todos os olhos a percepcionem, como me disse um amigo jesuíta). Por isso, aguentei a inesperada partilha de quarto. Não sou tão estóica como gostaria, pelo que acabei por dormir com o candeeiro da cabeceira da cama aceso. Li algures que as osgas não se aproximam de luz e pareceu-me que assim estaria em segurança. E assim foi. Quando acordei de manhã não havia sinais da intrusa (ou seria eu quem se tinha metido onde não era o seu lugar?) e vivi para contar.
O outro ser que conheci em Malaca foi um dos peixes residentes no lago do pátio interior do hotel. Claramente um
optimista, quando o encontrei estava a debater-se com dificuldades respiratórias decorrentes de uma pirueta mal calculada que o tinha levado a aterrar, não do outro lado do lago (como por certo desejaria) mas em terra firme. Agi de forma rápida, pois os primeiros (e últimos) socorros eram evidentes: agarrei-o (o que não foi afinal fácil, pois era muito pequeno – vermelho, quase incolor na zona da barriga, com uma ligeira risca amarela no rosto - e no seu esforço para respirar debatia-se com veemência). Uma vez apanhado atirei-o para dentro do lago, onde logo se recompôs, seguindo o seu caminho.
Eu, a osga e o peixinho. Os três vivos, cada um a seguir a sua vida, ainda que por breves instantes nos tenhamos
cruzado e a lotaria biológica me tenha colocado em posição de decidir se viveriam ou se a sua história acabava no momento do nosso encontro.
Em boa verdade, na ordem geral do universo somos (vou acreditar que continuam vivos passados estes anos) os três seres pequenos com pouco ou nenhum poder. Gostaria de acreditar que, cruzando-me com um ser mais poderoso do que eu (por exemplo, uma hiena em plena selva africana ou um desses senhores da guerra armado até aos dentes), também ele escolherá deixarme viver ou, quem sabe, sofrer mesmo um ligeiro incómodo para garantir mesmo que assim seja (aposto mais na hiena, nesta última situação).
FLORES NA ABÍSSINIA
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A bandeira da Ucrânia é amarela e azul. O amarelo simboliza os campos de trigo. O azul, o céu. Uma bandeira poética, sem dúvida. *
A História está cheia de exemplos de gente
(que vem nos manuais e tem retratos pintados nos museus) que viveu convicta de que estava acima
dos outros.
Aliás, os grandes monumentos do mundo (as pirâmides, os palácios onde viviam os reis, os dourados que cobrem os salões, a grande muralha da China, entre outros) apenas foram possíveis porque alguns poucos homens e mulheres acreditaram piamente que eram tão bons e esplêndidos que aos outros restava trabalharem para a sua glória, a custo zero. Esta não é, porém, uma ideia fácil de vender. Nunca, foi diga-se. Por isso, a História do mundo é feita de levantamentos, revoltas, conflitos, recusas em pagar impostos e em alistar-se nos exércitos feitos da força e sangue de outros que não os que declararam a guerra. Sempre me pareceu paradoxal este facto: não deveria, pelas mais elementares regras de decência, quem declara uma guerra ir à frente do exército? Esse bom hábito grego perdeu-se. A decência, tende a andar um bocado envergonhada, às vezes encolhida atrás da chamada “estratégia”.
Um homem que inventa a História.
Uns homens barbudos que vieram das montanhas e que estão a governar Cabul, apesar de não terem ganho as eleições. Vi há dias na televisão uma reportagem em que se relatava que homens e mulheres desse país já venderam um dos dois rins que tinham para puderem comprar comida e medicamentos. De acordo com o jornalista, alguns ponderavam agora vender um dos filhos, para assegurarem a sobrevivência dos demais e também com a ideia de que o vendido poderia ter uma vida melhor. Aparentemente, sem terem ideia de que as redes de tráfico de crianças também as venderão para mendicidade, prostituição, escravatura e tantos outros horrores que convivem neste mundo com os céus azuis, as searas de trigo a oscilarem ao vento e o primeiro mergulho no mar num dia de Verão.
O homem que entrou numa embaixada do seu país em Istambul para tratar de documentos e que desapareceu, tendo depois sido noticiado que por lá tinha sido morto.
Em Alexis ou o Tratado do Vão Combate de Marguerite Yourcenar lemos “É quando abandonamos os princípios que convém munirmonos de escrúpulos”. Tinha 20 anos quando li esta frase e ficou sempre comigo.
Podemos abandonar a moral ou a ética convencional (não vou discutir agora, brevitatis causa, quais sejam). Convém, contudo, que a substituamos por um outro conjunto de regras (os escrúpulos) sob pena de concluirmos que não temos outro motivo de actuação do que o nosso interesse.
Ora, agir de acordo apenas e tão só com o nosso interesse (ou numa linguagem mais
coloquial “com o que nos apetece”) pode ser muitas coisas, mas não é ético, nem moral.
Há muitas formas de pensar a actual situação política internacional. Podemos analisá-la à luz da História, de princípios de relações internacionais, de interesses económicos ou problematizar as questões de estratégia militar, intervenção diplomática ou de recurso ao direito internacional. Tudo perspectivas válidas que deixo para os peritos em cada matéria.
Por mim, observo os acontecimentos como uma peça de teatro num macro palco, análoga nas motivações (não nas consequências, claro) a tantos micro conflitos à escala privada nas vidas de todos nós. Pequenas peças do drama humano em que alguém que se pensa grande (ainda que apenas de forma ligeira) faz o que lhe apetece, altera alguns factos e esconde opiniões para conseguir de outro aquilo que quer. Porque pode. É a sua vontade. E podendo, porque haveria de privar-se de satisfazer o seu desejo? O que interessa o outro, a sua dignidade, os seus sentimentos? O que interessam os planos de terceiros a quem sonha com impérios que avistou num delírio? Para nada! É para se viver com isso e poder pousar a cabeça no travesseiro à noite que se inventaram as narrativas pessoais, adulterando factos e criando “verdades alternativas”. E também há os soporíferos, claro.
Talvez esta ideia seja rebuscada ou mesmo uma ilusão de óptica. Oxalá seja assim. Contudo, uma colega a quem expus esta minha opinião há dias não ficou surpreendida. Respondeu-me com simplicidade “sim, é só uma questão de escala”. Se calhar, estou para aqui a escrever o equivalente ao ovo do Colombo.