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a hortênsia azul
Acomodada na cama, enquanto se diverte com sua cachorra, Hortênsia se destaca pelo azul turquesa dos cabelos, pelo colorido de suas roupas e também pela voz, doce e serena. Ela inicia o relato dizendo que após terminar seus estudos, mudou-se para os Estados Unidos, onde trabalhou como babá.
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No portão de embarque, Hortênsia conta que deixou para trás a família, os amigos e algumas histórias de seu passado. Ela permaneceu nos EUA até o final de junho de 2018 e trouxe na bagagem novas histórias, saudades e lembranças.
O que antecede essa viagem, no entanto, são histórias tristes que a transformaram na mulher forte que se declara ser. Com vinte e dois anos, Hortênsia nos leva para o início de sua adolescência, uma época conturbada e dolorida para a moça. “Desde pequena, sempre fui uma pessoa muito ansiosa. Aos 13, fui diagnosticada com depressão e alguns anos depois com transtorno de personalidade Borderline 5 . Já fiz diversos tratamentos com terapia e remédios, mas isso é algo que necessita de cuidado constante e é algo que eu vou ter que lidar pelo resto da vida, já que não tem cura”.
No final de 2014, sendo o seu último ano do ensino médio, a jovem se lembra, com pesar, de ter perdido um de seus melhores amigos para o suicídio. Como consequência, se viu cada vez mais isolada em casa. Isso, no entanto, a aproximou da família, que foi e ainda é, um pilar muito importante para ela.
Após um tempo reclusa em casa, Hortênsia voltou a sair e socializar com alguns amigos no começo de 2015. Isso porque, na época, ela havia conhecido F. “Eu já conhecia de vista, mas nunca havia falado com ele, porém nós nos seguíamos nas redes sociais. Uma vez, começamos a conversar por lá e, em um sábado, saímos para um bar, onde ficamos pela primeira vez e não paramos de conversar desde então”, conta.
5 A Síndrome de Borderline é um transtorno de personalidade caracterizado por mudanças súbitas de humor, além de demonstrar medo de ser abandonado por pessoas próximas. Os portadores também apresentam comportamentos impulsivos, como gastar dinheiro descontroladamente ou comer compulsivamente. Fonte: < https://www.tuasaude.com/sindrome-de-borderline/>
Ela se recorda que mesmo antes de se envolverem, sempre se sentiu muito grata pela forma carinhosa e atenciosa que ele a tratava, “ele estava sempre disposto a fazer o que fosse necessário para me ver bem e feliz”. Hortênsia afirma que isso significou muito, já que desde que os dois começaram a sair, ela passou a conhecer novas pessoas e, consequentemente, a fazer novos amigos, “voltei a viver de fato”, enfatiza.
Mas a harmonia do casal não durou muito tempo, eles ainda mantinha um relacionamento aberto na época em que foram convidados para um churrasco na casa de uma amiga em comum. Durante a festa, Hortênsia acabou ficando com algumas meninas. “Eu sou bissexual e isso nunca foi segredo para ninguém. Acontece que quando ele ficou sabendo, começou a brigar comigo e a discussão durou horas. Nisso, lembro que eu voltei para casa, pois já estava amanhecendo e ele deveria ir trabalhar”, explica.
No entanto, naquele dia F. decidiu faltar do trabalho e por isso, seu pai o expulsou de casa, fazendo com que ele fosse até Hortênsia culpá-la pelo ocorrido. “Ele veio dizendo que por minha culpa, por conta do que eu tinha feito na noite anterior, ele ficaria sem emprego e sem casa, então tudo que tinha na vida era eu e que não podia me perder”. Com isso, eles concordaram em manter um relacionamento fechado. Hortênsia supunha na época que esse tipo de atitude era justificável, por acreditar que ele se importava com ela. “Eu acabei não percebendo e achava que ele agia assim por gostar muito de mim”, admite.
Alguns meses depois, F. comentou com ela que faria uma tatuagem. “Eu só achei legal, nem perguntei o desenho que ia fazer, mas quando o vi, ele me mostrou que tinha tatuado os meus óculos no braço. Não sei exatamente qual era a reação que ele achou que eu teria, mas tenho certeza que foi bem diferente do que ele havia imaginado. Eu falei que ele tinha sido muito idiota de ter feito aquilo, e que na nossa primeira briga, iria querer arrancar aquilo do braço”, recorda, ainda inconformada com a situação. Ela salienta que, em todas as discussões decorrentes às da tatuagem, F. costumava olhar diretamente para o seu braço tatuado, com o intuito de usar o desenho para reforçar que as coisas que ela fazia por ele, pouco se comparavam
com as que ele já havia feito por ela, numa tentativa de diminuí-la. “Ao mesmo tempo em que eu me revoltava porque tinha consciência que era ridícula aquela situação, eu me sentia muito sufocada. Como se eu tivesse a obrigação de satisfazer tudo que ele queria”.
Em decorrência das chantagens emocionais vindas por parte do rapaz, a moça se afastou de pessoas que considerava importantes. “Eu acabei me afastando dos meus amigos e, infelizmente, até da minha família, coisa que fiz sem perceber, mas que quando olho para trás, vejo o quão evidente foi o fato de que eu comecei a me afastar e brigar com eles; quando permiti que ele tivesse mais espaço em minha vida”, reflete. “Ele ia me ver no meu horário de almoço no trabalho, no fim do expediente, nos finais de semana e enfim, todos os momentos em que eu estivesse livre, ele estava lá”, conta, lembrando-se de como se sentia sufocada por essas atitudes.
Hortênsia ainda não sabia que estava presa a um relacionamento abusivo, mas sentia o peso em seus ombros e o aperto em seu peito por ter que lidar com as constantes crises de ciúme e chantagens emocionais vindas de F.
A flor diz que as crises de ciúmes eram causadas por diversos motivos, como quando voltavam juntos de algum evento social entre amigos. “Lembro que na maioria das vezes, quando estávamos indo embora de algum ‘rolê’, ele reclamava que algum amigo ou amiga dele tinha flertado comigo, mesmo que não tivesse, e que não poderia confiar em nenhum dos amigos porque todos eles ‘furariam o olho’ dele se tivessem a chance”.
Ela ainda conta que se estivesse conversando com alguém sem a presença dele, ele a culpava logo em seguida. “Ele fechava a cara para mim, se isolava num canto e depois brigava comigo por eu não ter dado atenção para ele”. Ela afirma que a situação piorou ainda mais quando ele passou a sentir ciumes de sua melhor amiga da época “se ela me mandava mensagem e ele via, ele vomitava, dizia que iria desmaiar ou passar mal.” A obsessão chegou a tal ponto que F. sentia ciúme até do pai de Hortênsia. “Ele meio que sempre tentava se provar para mim no sentido de ser melhor que o meu pai, sabe? O meu pai, apesar dos defeitos dele, sempre foi a pessoa mais importante para mim, e o F. meio que competia com ele”, desabafa.
Depois de um tempo de namoro, Hortênsia se afundou em uma nova crise, que diminuiu consideravelmente as saídas de casa, o seu ânimo e a a libido, “tudo que eu tive da parte dele foram reclamações sobre o quanto eu estava sendo chata por querer ficar em casa ao invés de sair, o quanto era horrível namorar com alguém que não queria transar e que eu não o acompanhava em mais nada”.
A garota só foi reconhecer o relacionamento abusivo após um ano de namoro. Exausta, Hortênsia decidiu colocar um ponto final na relação. A reação de F. foi a de desmaio. “Ele não só desmaiou, como também fez muitas chantagens emocionais e ameaçou se matar diversas vezes, mesmo sabendo que eu estava numa crise péssima e que suicídio é um assunto que me afeta muito e, justamente por isso, eu não conseguia cortar relações completamente com ele”.
Com o fim do relacionamento, Hortênsia passou a evitar os lugares que ele frequentava e também o deletou de suas redes sociais. “Ele continuou atrás de mim por um bom tempo e quando comecei a ficar com outra pessoa, ele ameaçou agredi-la”, Depois de alguns meses, a moça embarcou para os Estados Unidos, o que facilitou bastante para ela, mas ainda não estava isenta das perseguições de F. “Ele ainda postava fotos nossas nas redes sociais e mesmo três anos após o término, quando ele via meu atual namorado, ele o provocava e encarava”. Mesmo seguindo em frente e tendo buscado novas experiências, Hortênsia salienta que F. deixou muitas sequelas psicológicas e, por conta disso, teve muita dificuldade em voltar a se relacionar novamente. “No começo, mesmo ficando com alguém de forma fixa, eu não aceitava um relacionamento de fato”, declara.
Refletindo sobre toda a sua história, a flor admite se sentir mal consigo por ter permitido que tudo chegasse onde chegou. “Depois de muita conversa com a minha psicóloga, eu decidi que precisava me perdoar por isso e seguir em frente, até porque não tinha como voltar ao passado e mudar o que houve”.
Quando perguntada sobre o que deseja a F., ela prontamente afirma: “Tento não desejar nada de mal para ninguém, mas o pensamento de que tudo que vai, volta, me conforta. Porque sei que ele vai acabar pagando por isso de alguma forma”, suspira, por fim.