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ainda no éden

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cattleya à deriva

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Em 1983 um tiro de espingarda disparado pelo marido a deixou paraplégica. Em depoimentos, a flor conta que no início a relação não era violenta e que o casal era muito unido. Quando as agressões começaram, ela tentou resolver os conflitos através do diálogo, mas vendo que não surtia efeito, sugeriu a separação.

Ela conta que não tinha a quem recorrer, “a lei não me ajudava, não existia delegacia da mulher” e assim, temeu morrer diversas vezes. A primeira vez, quando tomou um tiro de espingarda, que resultou em sua paraplegia. Através de uma entrevista concedida a revista Claudia “Especial Mulheres”, ed. 678 de março de 2018, com título de capa “Feminismo Não é Mimimi”, a flor afirma que o marido omitiu a verdade no depoimento. “Ele mentiu à polícia. Declarou que ladrões haviam invadido a casa e disparado a arma”.

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Posteriormente, ele empurrou sua cadeira de rodas elétrica para debaixo do chuveiro, na tentativa de eletrocutá-la. “Saí de casa enquanto ele viajava e fui morar com meus pais. Durante a investigação pela invasão à minha casa, a polícia notou a inconsistência do depoimento dele e o prendeu, mas logo saiu”, relembra.

Após oito anos, o primeiro julgamento finalmente aconteceu e enquanto assistia, a flor pensava no que diriam sobre si caso não estivesse viva, “nessa hora, sempre denigrem a honra da vítima”. Condenado, ele conseguiu a anulação do julgamento. Seis anos se passaram até que um segundo julgamento ocorresse, mas o agressor recorreu da sentença e foi absolvido. Sua prisão só aconteceu 19 anos e seis meses após o crime, isso porque ONGs em apoio à flor, mobilizaram a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). “Além de acatar a denúncia por violência doméstica, a instituição condenou o Brasil pela falta de justiça às mulheres na mesma situação”. Em seguida, ela conta que tamanha foi a mobilização, que levou a elaboração da lei que “coíbe o crime, prevê mecanismos de educação do agressor e prevenção”.

Além de originar à criação de uma lei que leva o seu nome, hoje

a protagonista deste relato realiza palestras e cursos de prevenção à violência doméstica. Essa flor é Maria da Penha, e sua história foi um marco para o início da legislação que hoje defende a mulher brasileira contra o crime de gênero.

De acordo com a delegada Fernanda Ueda, antes do surgimento da Lei Maria da Penha, era difícil ter noção dos números reais de violência contra a mulher e por não existir uma legislação que a defendia, as agressões não entravam na estatística de violência de gênero. “Ela não entrava no cômputo, a gente ficava sem parâmetro. Quando teve o surgimento da lei Maria da Penha, agora sim, eu tenho uma mudança do antes e do depois, mas como eu não tenho o antes, fica difícil fazer um levantamento”, afirma a delegada, acrescentando que nota-se um aumento paulatino de registros desde 2006, quando a lei foi sancionada.

A lei nº 11.340 Maria da Penha, surgiu com o intuito de criar mecanismos para prevenir a violência doméstica contra a mulher. Na lei, é descrito que “toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social”. Assegurando também a garantia do exercício dos direitos humanos das mulheres.

Fernanda Ueda também conta quais são os amparos legais para as mulheres que entram na estatística da lei nos dias de hoje e como, depois de uma agressão, a vítima deve agir para garantir seus direitos. “Primeira coisa que ela tem que fazer é se submeter ao exame corpo de delito, depois de registrar a ocorrência e fazer o boletim. A mulher vai receber um papel que é a requisição de exame e vai ser orientada nas protetivas, que é o instante onde, preferencialmente, ela já vai com testemunhas”, explica. “A segunda medida, caso agredida, é o comparecimento ao IML (Instituto Médico Legal) para comprovar essas lesões”, acrescentando que caso a vítima não consiga comparecer ao IML, o recomendado é filmar ou tirar uma foto das lesões para o crime ser materializado. “Ela tem que robustecer e fortalecer a legislação para podermos dar proteção para ela, se não a

gente não consegue fazer nada”.

E para proteger essa vítima que denunciou seus agressores, hoje é disponibilizado para elas, a opção de acionar a medida protetiva. “Ela tem várias possibilidades. Eu posso, por exemplo, afastar o agressor da casa, impedir a aproximação dele a tantos metros da pessoa e impedir o contato por telefone com a vítima e com testemunha e familiares dessas pessoas”, explica a delegada.

Com o intuito de auxiliar e acolher mulheres vítimas de violência foi criado há 20 anos na cidade Sorocaba - SP, o CIM - Mulher (Centro de Integração da Mulher). “Foi um ano como esse (2018) e como o final do ano passado, que ocorreram muitas mortes, e uma das razões de criar a casa abrigo foi essa. As mulheres faziam o boletim de ocorrência e voltavam para casa por não ter para onde ir, chegava lá, o marido rasgava o boletim de ocorrência, a agredia mais ainda e quando, no pior dos casos, a assassinava”, explica Cátia Camargo, coordenadora da casa-abrigo.

Segundo ela, os casos mais comuns de agressões que chegam até o Centro, são violências sexuais, físicas e psicológicas, que ainda são temas comuns no Brasil. Segundo dados divulgados pelo Ministério dos Direitos Humanos (MDH), de janeiro a julho de 2018, foram registrados 27 feminicídios e 547 tentativas. Já sobre violência de gênero, chegaram 79.661 denúncias, sendo elas 37.396 físicas e 26.527 psicológicas.

De acordo com dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública no anuário de 2018, foram registrados 60.018 estupros em 2017, sendo 8,4% de aumento em relação a 2016.

Sobre a violência sexual, a psicóloga da casa-abrigo, Isabella Gutierres de Araújo diz que o abuso pode se manifestar de diversas maneiras, quando por exemplo, o parceiro se recusa a usar preservativo. “Ele se recusa a usar e diz: ‘Camisinha é ruim, vamos fazer sem mesmo’ e dá um jeitinho de forçar ela a fazer coisas que não se sente confortável de fazer”, explica. “E também tem o próprio estupro, às vezes a mulher fala: ‘ele é meu marido mesmo’, mas não, você não tem obrigação”, acrescenta sobre o estupro marital, que é o ato de constranger alguém a ter conjunção carnal em espaço de convívio permanente, sendo um parente ou não. A delegada Fernanda Ueda

explica que a pena pode ser maior nesses casos, “hoje ele é considerado crime da mesma maneira que praticado por qualquer autor, com a diferença que vai ter aumento de pena por ser uma relação marital”.

Isabella explica que violência física são os machucados que deixam marcas externas. “Um hematoma, um olho roxo e o ‘empurrãozinho’”, relata a psicóloga.

Em casos mais extremos, que resultam na morte da vítima, o crime leva como nome, feminicídio. “Feminicídio é um homicídio com características especiais”, aponta a delegada Ueda. Ela explica que essas características se dão ao fato da vítima ser assassinada dentro de uma relação afetiva ou por seu gênero. Também existem casos em que ela é morta por estar defendendo a igualdade de gênero.

Há também a violência psicológica, que segundo Isabella, é a que dá início a todas as outras violências, “fica até mais fácil de continuar a agressão, pois a vítima já está frágil. Ele já preparou o terreno”.

Explicando sobre como esta pode se manifestar, a psicóloga diz que “o companheiro anula a mulher o tempo todo, ela não pode ter uma identidade própria, não pode ser ela mesma, aos poucos, não vai poder fazer o curso que ela tanto queria, não pode passar maquiagem, nem usar aquela determinada roupa”, conta. “Você vê que não agrediu fisicamente, mas emocionalmente, é uma ferida muito grande”.

Muitos não entendem o motivo da mulher não conseguir se livrar de um relacionamento abusivo, mas a psicóloga explica que isso dá-se ao fato de que na maioria das vezes o companheiro surge como uma figura ideal. “Ele aparece como um príncipe encantado no começo. Ele não vem como um malvado e vilão, ele é maravilhoso, coloca um tapete vermelho para ela e tudo, mas aos poucos, ele vai minando, vai anulando ela e diz que faz isso por amor, então fica tudo muito confuso na cabeça da vitima”.

Fernanda Ueda conta que as violências psicológicas se enquadram em alguns aspectos da jurisdição, como por exemplo, os crimes contra a honra, “que são a calúnia, difamação e injúria. Se são xingamentos e humilhações verbais, vão se enquadrar nesse crime, são de penas pequenas, mas eles existem. Eu tenho também o crime

de ameaça; ameaçar alguém de mal injusto e grave, também possibilita prisão dentro da lei Maria da Penha”, explica a delegada. “Temos também o crime de constrangimento ilegal. Ele não quer deixá-la estudar, ele não quer deixá-la trabalhar, é um crime de constrangimento”, acrescenta.

Segundo dados divulgados pela Delegacia da Mulher ao portal G1, a cidade de Sorocaba-SP registra cerca 100 casos de violência contra a mulher por mês no ano de 2018. Sobre medidas protetivas, de janeiro a setembro foram concedidas 423, sendo quase o mesmo número que o período de 2017 inteiro, que foram 436 medidas de proteção.

Apesar do número, Fernanda Ueda afirma que a cidade é muito completa quando diz respeito à proteção dessas mulheres agredidas. “Hoje, aqui em Sorocaba, nós temos o Botão de Pânico e, além disso, nós temos a Patrulha do Bem. Esse programa, durante duas semanas, passa todos os dias na casa, tanto da mulher, quanto do agressor. Bate na casa da pessoa e pergunta: ‘Aconteceu alguma coisa? Tem alguma modificação? Ele apareceu aqui? Ele descompriu?’. Durante 15 dias isso é ininterrupto”, explica. O Botão do Pânico infelizmente não está presente em todas as cidades do Brasil, mas ela conta que funciona de uma maneira muito rápida. Quando a denúncia é feita e o pedido de medida protetiva é aceito, a mulher instala um aplicativo em seu celular, “é só ela apertar e automaticamente uma viatura da guarda e da Polícia Militar se desloca para lá”.

Quando questionada sobre como evitar novos crimes contra a mulher, a delegada diz que é por meio da informação. “Primeiramente, através de esclarecimento, então quanto mais você divulga, quanto mais você explica os mecanismos legais de proteção, mais você incentiva, nem que seja de forma particular esse tipo de ação”, conta.

Em uma pesquisa feita com 57 mulheres para a realização deste livro, sobre o atendimento que as mulheres recebem do Estado depois de sofrer algum tipo de agressão, concluiu-se que 16 delas sofreram violência sexual, 27 psicológica e 14 física, porém, apenas 13 delas denunciaram, totalizando 22,8%. Quando questionado o motivo de não terem feito a denúncia, 22,5% afirmaram não terem

acionado a polícia por medo, 4,5% por falta de apoio, 20,5% por não acreditar que surtiria efeito e 36,4% por não terem reconhecido ser vítimas de um crime.

Questionadas sobre o que melhorariam na legislação para a proteção ser efetiva, muitas apontaram a falta de solidariedade com a vítima e a dúvida da palavra da mulher. Mesmo com toda a legislação a favor dessas vítimas e todos os mecanismos criados para a sua proteção, ouvimos de muitas, histórias em que a justiça não foi feita, tendo um sentimento coletivo de impunidade para seus agressores.

violência psicológica

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