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3.4.2 O sujeito do samba enredo: quem fala?
from “Sou da negritude, o fruto e a raiz”: os sambas afro brasileiros da Nenê de Vila Matilde como recurs
3.4.2 O sujeito do samba enredo: quem fala?
Outro ponto importante de análise é o sujeito que se apresenta no samba enredo. Cada letra possui uma intenção em seu discurso, um samba sempre realiza uma explicação de um conteúdo. O samba enredo pode ser redigido em terceira pessoa, com uma descrição narrada pela escola, pelo símbolo da escola ou por outro personagem; ou em primeira pessoa, quando um homenageado “conta” sua vida, mas nos dois casos, se conta e canta a história. Ouvindo aos sambas negros, estamos diante de um narrador, um sujeito de afirmação do que está sendo analisado, é um discurso que não é passado pelo “branco” ou o colonizador, mas, sim, pelos agentes dessas histórias ou pela própria escola de samba. Embora não seja o Zumbi que narre, é um interlocutor que o “conhece” que conta sua história, um narrador consciente de sua história. Esse aspecto é importante ser mencionado, pois, como vimos anteriormente, o discurso da escola de samba possui uma similaridade com a narrativa proposta pelo movimento negro, como um diálogo oculto ou indireto que interfere no sujeito que age dentro do samba enredo. Quase sempre, nos enredos de temática afro-brasileira, é o negro que assume a ação. Podemos questionar qual o seu posicionamento “político”, porém, é ele quem narra e que se baseia, também, no período histórico em que o samba é composto. Por isso que um mesmo personagem pode ser visto de duas maneiras pela mesma escola, como no caso de Chica da Silva. Portanto, como Elsa Ortis (1998, p. 116) pontua, em O sujeito do samba enredo, o samba se desenvolve “sobre determinada situação de comunicação, mas, também sofre a ação da mesma. Por isso ele se torna sintoma de uma situação histórica mais complexa”. Não podemos exigir um posicionamento político sempre pautado no ativismo dentro dos enredos das escolas de samba, uma vez que nem sempre houve essa preocupação, até porque, em determinados períodos, ser ativista gerava censura, como aconteceu com a Camisa Verde e Branco, que, na tentativa de desenvolver um enredo sobre Joao Candido, foi censurada em plena ditadura militar. Entretanto, não podemos fechar os olhos para certas representações desses enredos e sambas, que colocam certo estereótipo no negro, como o samba de 1956, Casa Grande e Senzala:
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Aruanda chegou/ O mar separou/ Senhor, meu senhor/ Negro tudo deixou/ É banzo que negro tem (bis)/ Na casa grande tudo é alegria/ Na casa grande tudo é festança/ Na senzala o negro chora/ Chora que nem criança/ É banzo que negro que negro tem (bis).
Nota-se, pela letra, que o sujeito do samba enredo é o negro escravizado, descrito por um narrador em terceira pessoa. No samba, podemos perceber o tom de lamento com relação à escravidão e um discurso de sofrimento. Mas, mesmo que o sujeito do samba enredo seja visto como uma criança que chora, podemos questionar em sala de aula as possíveis visões e justificativas que levaram ao samba ter esse tom, bem como indagar se essa visão passiva do negro como um simples escravo é o modo correto de vermos a escravidão. Como Sidney Chalhoub (2011) pontua, em Visões da Liberdade, a escravidão, nas sociedades urbanas, principalmente, estava longe de ser passiva, com os negros acuados perante os seus senhores e á justiça, tendo existido diversos processos em busca de seus direitos, principalmente ao fim do século XIX. Ao longo dos seis sambas escolhidos, a visão do negro como sujeito se modifica. Em Chica da Silva, de 1959, temos a presença de uma personagem que, de certa maneira, possui uma passividade frente ao discurso presente. Há um narrador em terceira pessoa que mais descreve o marido de Chica da Silva do que ela própria. Temos a representação de uma “mulata” que foi comprada e que possui um gosto excêntrico, com certo prazer por luxurias, ótica de João Fernandes, o comendador que a comprou. Essa visão é muito comum no mito de Chica da Silva: uma simples escrava que foi comprada e conseguiu poder por conta do dinheiro do marido, visão esta que, durante algum tempo, esteve presente na própria historiografia do livro didático e nos enredos. Ainda hoje, essa compreensão sobre Chica da Silva permanece em alguns livros. Em História Geral e do Brasil, de Dorigo e Vicentino (2010), é possível constatar que, na pequena menção feita às mulheres no âmbito de reconstituição das relações socioculturais da sociedade mineira, a sociedade de Diamantina e a própria Chica da Silva não são citadas, pelo contrário, existe apenas um pequeno quadro tímido que não problematiza ou insere a questão da mulher como agente de participação da sociedade mineira. Cabe lembrar que, frente à crise do abastecimento, a participação social e econômica de mulheres negras ou brancas era de extrema importância, não abordado pelo livro. Já no livro didático Nova História crítica, de Mario Schmidt (2005), a questão da mulher é posta de forma bem evidenciada no corpo do texto. Neste caso, a presença feminina e o questionamento a respeito da relação de concubinato ao abordar a questão dos diamantes são visíveis. Em outro livro didático para o oitavo ano, da Série Aribabá, existe um maior questionamento da mulher, porém, muito próximo do que se tem em Dorigo e Vicentino (2010). No caso de Chica da Silva, ela é vista apenas como a mulher do contratador João
Fernandes de Oliveira. Veja que o não aparecimento de figuras femininas na história colonial brasileira, no tocante a região das Minas, configura uma mudança substancial para a compreensão da sociedade, uma vez que a figura feminina tem uma forte e marcante presença, seja nas relações sociais, seja nas econômicas. Já no enredo de 1978, notamos um personagem mais ativo. Em uma abstração do negro, temos um narrador que vai pontuando ações e sonhos de um rei negro. Aqui, o negro é posto como protagonista, que é associado a um rei que tem desejos. Mesmo que a letra seja abstrata, ela apresenta uma figura que não é passiva, pelo contrário, ele busca mudança em sua narrativa. Em 1982, Zumbi, é um sujeito que possui não só protagonismo, mas é consciente de suas ações. Zumbi é um personagem que permeia o universo do movimento negro, uma figura de resistência, alcançando, em 1997, o título de herói nacional no “Panteão da Pátria e da Liberdade”. Uma das lideranças do quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, atual Alagoas, esse personagem no enredo é um sujeito ativo, guerreiro e lutou por uma nova condição de vida. Outro ponto interessante é o narrador: é a própria escola de samba Nenê de Vila Matilde, descrita como o novo quilombo. No samba enredo de 1989, em homenagem aos 40 anos da escola, temos um narrador em primeira pessoa que é a escola de samba, em uma personificação da própria Nenê de Vila Matilde que assume o poder de ação. Essa forma de criação do samba enredo possibilita ao autor do samba conseguir criar dentro da sua obra fazer com que a escola de samba consiga ter voz, uma atividade, sensações e uma carga de emoção. Por isso mesmo, que o sujeito do samba que é a Nenê tem um posicionamento de ação e de protagonismo dentro de sua personalidade. Outro ponto importante é que o sujeito é posto com uma identidade negra, sendo um personagem que possui orgulho de sua história e cultura. Em um tom mais enaltecedor, o samba de 1997, Narciso Negro, tem o narrador na terceira pessoa, que fala sobre o sujeito do samba, o negro, ativo, que aparece em vários personagens, e tem um tom descontraído e, ao mesmo tempo, forte quando preciso. No samba de 2012, temos, novamente, Chica da Silva, em uma representação que passa longe da narrativa e do posicionamento do ano de 1959. Aqui, Chica possui um empoderamento e é a protagonista na temática do enredo, um sujeito consciente de sua força e de sua identidade. Neste samba, quem faz a narrativa também é a Nenê, que “abre” as portas de seu palácio para que Chica faça sua festa, em um mescla de um sujeito humano e de uma prosopopeia, já que a Nenê, enquanto pessoa, não existe, mas possui ação pela licença poética.
Como discutimos ao longo da dissertação, o carnaval se tornou, ao longo do tempo, um espaço de reinvenção do próprio cotidiano e representação do negro, que se manifesta nos sujeitos envolvidos nos sambas enredo, e fez com que, de certa forma, o carnaval de escola de samba fosse uma das plataformas para dar voz ao negro. Como Elsa Ortis (1998, p. 117-118) pontua “o samba enredo fornece, assim, elementos estratégicos a serem usados pelo povo, isto é, um modo de o povo se inscrever como sujeito no discurso antagônico ao da hegemonia governamental”. Talvez seja por isso que o próprio movimento negro não tenha proximidade com o carnaval, não só pelo posicionamento mais político do que cultural, mas porque a própria escola de samba passou por um processo de autoafirmação na sociedade, que a forçou a se reinventar em seu cotidiano. Este fato o que se apresenta nos sujeitos negros que, principalmente, a partir dos anos 70, também passam por um processo de afirmação de sua imagem, pouco a pouco reinventando e criticando a lógica racista e preconceituosa. No caso da Nenê, isso acontece nos sambas de 1978, 1981, 1982, 1985, 1989, 1997, 2001, 2012, 2013 e 2015 e em outros tantos que representam os agentes que compõem a escola. Nesse sentido, o carnaval, como uma festa de inversão, de carnavalização e de reinvenção do cotidiano, criou, ao longo do tempo, um discurso próprio e a construção de um sujeito que foi se empoderando dentro dos enredos e do samba enredo, em uma festa que não tem a obrigatoriedade de posicionamento político, mas que consegue se posicionar, possibilitando uma reflexão. Isso mostra que, desde o surgimento da escola de samba, as diversas culturas existentes na sociedade estão em permanente rotatividade e intercambio de apropriação de seus discursos, o que influenciou o sujeito do samba enredo, desde uma concretude de seu pensamento até a utopia de mudanças. Quem fala dentro do samba enredo é um sujeito que representa uma coletividade (no caso, a comunidade da escola) e que, portanto, não fala só por si próprio. Ao mesmo tempo, esse sujeito é uma explicação de si próprio, com um sentido ideológico. É, assim, um sujeito que assume um discurso que ocupa um lugar de fala, que se apropria do que há a sua volta e realiza a função de criar significados para quem ouve. Por isso mesmo, é de grande riqueza de conteúdo didático a análise de um samba enredo, pois consegue provocar, com seus símbolos e diálogos, uma possibilidade imaginativa em que o escuta, sendo um mediador de conteúdos que podem alterar o sentido e a interpretação de certos conteúdos da história. Uma escola como a Nenê pode assumir o discurso da maneira natural, como algo que se tornou um sujeito comum no discurso do samba enredo. É como se a Nenê criasse um