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Tabela 1 - Tabela de Temas Afro-Brasileiros Nenê de Vila Matilde

Tabela 1 - Tabela de Temas Afro-Brasileiros Nenê de Vila Matilde.

Temática Quantidade Ano Religiosidade Heróis e personagens

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02 1984 e 2018 05 1954, 1959, 1966, 1981 e 1982

Abstrato

06 1963, 1968, 1978, 1980, 1997 e 2012

Histórico Regionais e CEP

04 1956, 1957, 2001 e 2012 03 1989, 2006 e 2015

Fonte: Elaboração do autor

Na divisão proposta, vemos que a ideia do abstrato é mais comum na temática afro, e os temas religiosos aparecem em menor quantidade. Interessante notar que dois temas se repetem: Zumbi dos Palmares, 1954 e 1982, e Chica da Silva, 1959 e 2012. Desta maneira, entender a temática e o discurso de cada samba é importante para se pensar o samba enredo como uma fonte didática. Agora, partiremos da escuta do samba e do seu conteúdo para analisar a temática e o discurso dos sambas escolhidos em ordem cronológica. Em 1959 (escuta ♫ 01), com enredo sobre Chica da Silva, temática afro ligada ao subtema dos personagens, a Nenê apresentou o seu quarto samba da história. Temos um problema inicial: não existe uma gravação desse samba com a bateria da escola e, além disso, o samba é pouco divulgado. O tema é a vida de Chica da Silva, que foi “comprada” pelo seu marido, em 1861, no Arraial o Tijuco, em Diamantina. O discurso empregado é a descrição dos aspectos da vida de Chica da Silva, desde o seu passado escravizado até o seu luxo atual, em que o ouvinte se torna um espectador. Podemos perceber pelo modo como o samba é posto, imagens ligadas a uma personagem negra com grande simbolismo na história e no imaginário brasileiro. Contudo, se analisarmos o desfile de 1978 (escuta ♫ 02), nota-se uma mudança. O enredo que se encaixa no abstrato narra a história de um rei negro que, como o título deixa claro, sonha. Mas, no decorrer da escuta, percebemos o título: o sonho do negro que é um rei, é a igualdade entre negros e brancos, como o fim do trecho bem coloca: “e o progresso de uma raça/ hoje é realidade”. Porém, observando o discurso do samba, fica claro certo enaltecimento do negro. A letra não é muito descritiva sobre o enredo em si. Lendo a

descrição do desfile, realizada por Celso Marinho para a Folha de S. Paulo, em 1978, vemos que o enredo e o discurso eram mais amplos:

O povo começou a aplaudir e se manteve assim até o fim da apresentação do enredo “Sonho de um Rei Negro”, cujo desenvolvimento começava na África e terminava no Brasil com a miscigenação gerando hábitos alimentares, religiosos, “pelés” e negros escritores, alusão à Carolina Maria de Jesus (MARINHO, 1978, p. 19).

Se cruzarmos as duas fontes em questão, percebemos que o discurso da escola, que começava a colocar certo protagonismo na figura da negritude, mantinha uma visão um pouco crítica da própria ideia de miscigenação. Como vimos no primeiro capítulo, a miscigenação, no movimento negro, sempre foi vista como uma manobra de amenizar o racismo brasileiro, mas o samba enredo oscila nos dois lados, uma vez que seu tema principal é o sonho desse Rei Negro. Um ponto interessante visível no desfile, mas que o samba não aborda, é a alusão à Carolina Maria de Jesus, escritora negra, de origem paulistana, cuja grande obra é Quarto de despejo, que aparece nas linhas finais do samba. Assim, temos um samba que não é descritivo e, sim, interpretativo do enredo. Proposta diferente aparece no ano de 1982 (♫ escuta 03), com samba enquadrado na subtemática de personagens e heróis, em que a escola homenageia o grande ícone do movimento negro, Zumbi dos Palmares. Vale destacar que 1982 foi o último ano de uma sequência de três enredos afro: 1980, Samba magnitude de uma raça; 1981, Axé sonho de candeia, que culmina, em 1982, no desfile de Zumbi. O enredo é um marco de representatividade na temática afro-brasileira dentro da escola, pois seu discurso é mais aproximado de uma busca de afirmação de uma negritude, muito próxima do que o movimento negro alinhava em seu discurso nacional. O discurso empregado no samba é de força e de busca de liberdade, colocando Zumbi como um personagem ativo na história. Alguns trechos do samba explicam isso, como: “se cuida branco que o negro não tem senhor” ou “Zumbi lutou/ até que a morte o libertou/ e uma nova aurora começou”, trechos colocam Zumbi como o grande personagem da história e cultura negra no Brasil. Muito desse tom mais crítico do enredo passa pelo carnavalesco Edson Machado, que buscava, no desfile sobre Zumbi, empregar um discurso de contestação do racismo e afirmação da negritude, o que influenciou os compositores. Jangada, em entrevista à Folha de S. Paulo, comenta que o tom crítico do desfile se dava em função de que, para o compositor, “o negro no Brasil em nada modificou a sua posição, desde os tempos da escravidão (...).

Para ele, as escolas de samba são hoje “quilombos permitidos pela sociedade branca” (TAIAR, 1982, p. 33). Isso vai ao encontro daquilo que discutimos em outros momentos: o alinhamento das escolas de samba e a apropriação do discurso mais rígido do movimento negro. O carnaval é um dos melhores lugares para tal questionamento, onde a inversão dos valores da sociedade e a escrita do cotidiano faz gerar um enredo que, para Cida Taiar (1982), representava a exaltação da negritude, o que, em 1981, já começava a acontecer, com a homenagem a Candeia, ativista do movimento negro inserido no mundo do carnaval. O enredo de 1989 (♫ escuta 04), Eu também tenho origem, segue um raciocínio parecido com o ano de 1982, porém, com dois aspectos distintos: a temática e o modo como o negro é colocado. A temática era uma comemoração aos 40 anos da agremiação, mas com uma homenagem à cultura e folguedos de origem negra. Foi uma forma de a escola também fazer uma crítica ao próprio carnaval, que estaria se distanciando de suas origens, por isso mesmo o título do enredo ser bem taxativo: a Nenê tem uma origem e ela é negra, o que faz o samba ter um discurso de contestação ao papel da cultura negra na sociedade, dando a ênfase ao carnaval e à escola de samba. O filho de Seu Nenê, Alberto Alves da Silva, em entrevista, afirmou que o discurso que o samba seguira uma:

(...) reflexão sobre a perda de identidade cultural do negro e do pessoal que faz cultura de rua. Com o enredo, vem a proposta de um novo tipo de Carnaval, “mais barato, sem o brilho do Carnaval do Sul-maravilha, mas que tenha mais a ver com a gente. Um carnaval que anuncie o próximo Brasil, onde não existia a divisão entre culturas de classe (FOLHA DE S. PAULO, 1989).

Como a letra diz, “não quero ser alienado à cultura/ nem escravo do luxuoso carnaval/ quero manter a tradição/ do meu samba pé no chão, na avenida central”, o que se alinha ao pensamento do filho de Seu Nenê e que o samba coloca muito bem: a proposta de mostrar a força da negritude da Nenê, que se mantém, mesmo em envolta de uma perca da cultura e apagamento do negro. Por isso mesmo, o samba é pouco mais contestador, até mais que 1982, o que indica, também, o momento pelo qual o país passava, de formulação de uma nova constituição e de uma ação mais contestadora do movimento negro, que influencia e modifica, a partir do centenário da abolição, em 1988, a construção dos desfiles de temática africana e afro-brasileira. Essa mudança na abordagem tem uma maior afirmação no enredo de 1997 (♫ escuta 05), Narciso Negro. O tema é parecido com a de 1978, porém, se aproxima da afirmação de negritude e da identidade do ser negro, o que explica o próprio título: o Narciso não é do

ponto de vista do narcisismo e de um desequilíbrio da beleza, mas o de enxergar a beleza e afirmação do ser negro, o que faz esse um dos enredos, sambas e desfiles mais importantes da discografia da escola e do carnaval brasileiro, na abordagem da temática afro, na minha avaliação. A justificativa da temática do mito de Narciso se encontra no fato de que “Narciso Negro é pura reflexão sobre o orgulho de ser negro no espelho da fria lamina da exploração humana” (Roberto Telles de Souza, sinopse enredo Narciso Negro, 1997). O samba concretiza aquilo que a sinopse do enredo descreve:

Narciso negro trata o negro olhando para si mesmo, não como pária social na condição de encarcerado, vagabundo, malandro, vítima indefesa do cruel processo de exclusão social, mas, antes de tudo o enredo apresenta uma visão alegre, crítica e humorada do negro, orgulhoso de seu passado, consciente de seu presente e otimista em seu futuro (Roberto Telles de Souza, sinopse enredo Narciso Negro, 1996).

Aqui, temos a concretização de um discurso que é mais direto no sentido de colocar o protagonismo da negritude e se apropria de forma positiva do discurso do movimento negro, forte no cenário político e social brasileiro. Embora o samba possa ter um discurso mais ameno, mas não uma visão estereotipada. Encerrando essa análise da temática e discurso dos sambas escolhidos, temos o enredo de 2012 (♫ escuta 06), sobre Chica da Silva, que retorna como enredo, porém, em uma ótica totalmente diferenciada. Como dissemos, a festa do carnaval tem o poder de colocar novas possibilidades para ver a sociedade e a história. Imaginar uma história fictícia baseada na realidade é algo comum dentro da carnavalização e esse enredo de 2012, propõe imaginar uma festa em que Chica da Silva, no palácio da Nenê de Vila Matilde recebe grandes personalidades negras brasileiras, desde Zumbi e Chico Rei, passando por Chiquinha Gonzaga e Machado de Assis, incluindo Seu Nenê e outros baluartes da história do samba paulistano. O tema mescla história, heróis e personagens em uma grande abstração da história de Chica da Silva, que, no discurso do samba enredo, passa longe de ser apenas a mulher de um comendador de diamantes, como faz enredo de 1959. Como narra a sinopse do desfile, que norteia a construção do samba enredo:

Sou forra, mulher, rainha mineira. Vivi no Arraial do Tijuco, cidade dos diamantes das Minas Gerais. Lá pelos idos do século 18. Fui amada, respeitada, temida, odiada... Meu nome é Francisca da Silva de Oliveira, simplesmente Chica da Silva, negra na cor e mulher de muito valor. Hoje, em minha paz celestial, decidi dar uma grande festa para ilustres convidados, em homenagem a vitória da liberdade, a literatura, a poesia, a música, ao teatro, ao samba... A cultura dos negros brasileiros. Nesta festa sem recato, no lugar dos navios negreiros teremos carruagens e liteiras

douradas, no lugar da dor e da tristeza teremos alegria, e no lugar de grilhões teremos tambores (Marcos Roza, sinopse Nenê 2012).

Observando a construção do discurso e dos diversos temas que compõem o enredo afro da Nenê, podemos perceber a variedade pela qual o assunto foi tratado e como o discurso foi se modificando, o que mostra a importância de escutar o samba, da pesquisa sobre as letras, e do posicionamento da escola perante a história e cultura negra. Como Monique Augras (1999, p. 20) diz: a “negritude, e os temas correlatos, por constituírem aspectos de pouco destaque na história oficial, tem escassa presença no período em que os sambistas buscam nos livros escolares as suas fontes de inspiração”. Isso mostra que a figura do carnavalesco foi fundamental para a mudança dos enredos, mas que não exclui a identidade da escola. Como vimos no segundo capítulo, a história da Nenê, indiretamente, se constitui dentro do signo da negritude, que se manifesta em seus desfiles antes mesmo da inserção da temática no Rio de Janeiro. O que vemos na Nenê é uma abordagem do negro em três eixos: o da realeza (o negro como uma figura de máxima valorização, como nos enredos de 1978, 1980 e 1982, em que a negritude é exaltada dentro de um aspecto de realeza); da negritude (em que o negro é visto como agente de ação e de uma história que deve ser exaltada para não ser esquecida, como em 1982, 1989, 1997, 2001 e 2012); e pela igualdade (que, aqui, muda com o tempo: no início, dos anos 50 até 70, tem-se uma igualdade pautada na miscigenação positiva, e que, a partir de 1981, com Candeia, essa visão muda, passando a perceber a igualdade miscigenada, mas defendida pela escola na manutenção das diferenças culturais existentes). Esses três eixos de discurso não se baseiam somente na cultura e religiosidade, como vemos em outras escolas de samba. O negro, na Nenê, é um participante que, ao longo do tempo, foi se protagonizando e se tornando mais ativo na sua representação. Analisando os sambas enredos em destaque, podemos perceber que existe uma linha de pensamento que vai se modificando. Não se pode dizer que haja uma simples cópia do que era produzido no Rio de Janeiro, uma vez que é visível um posicionamento próprio no modo como abordou os seus enredos. O que vemos, em boa parte das vezes, é uma escola que tenta (às vezes consegue e outras não) colocar uma novidade no modo de lidar com seus desfiles, em que o samba foi e permanece sendo o principal quesito para a escola, sobretudo na temática afro.

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