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CONSIDERAÇÕES FINAIS: “O desfile terminou...”
from “Sou da negritude, o fruto e a raiz”: os sambas afro brasileiros da Nenê de Vila Matilde como recurs
CONSIDERAÇÕES FINAIS: “O desfile terminou...”
O desfile terminou Quando amanhecia A moçada não se incomodou Era mais uma vitória que surgia Ao final Naquela memorável manhã Teve mais sabor o carnaval Vila Matilde Mai uma vez Campeã - Seu Nenê
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A letra acima reflete muito bem o sentimento que uma escola de samba sente ao término de um desfile: o sentimento de que, apesar das dificuldades, valeu a pena o esforço do trabalho de um ano de pesquisa, preparação, ensaio e de entrega para que tudo desse certo. O samba da epígrafe da conclusão (escuta ♫ 16), inclusive, é interpretado pela Matilde, uma de nossas entrevistadas, e representa bem o que foi essa pesquisa. Ao longo dessa dissertação, tentei ao máximo fazer com que o leitor pudesse perceber as diversas nuances, sentimentos e possibilidades que o estudo dos sambas enredos de uma escola de samba paulistana pode gerar no processo educativo. Em específico, tentei mostrar que o samba enredo da Nenê de Vila Matilde apresenta, em seu conteúdo, temática e discurso, possibilidades diversas para serem usadas como recurso da Lei 10.639/03. Porém, podemos perceber que certos usos de alguns sambas podem recair em estereótipos, enquanto outros podem abrir possibilidades de discussão sobre o negro e sua história. O samba da Chica da Silva, de 1959, e Casa Grande e Senzala, de 1956, apresentam, em sua letra uma visualidade do negro muito passivo frente aos desdobramentos históricos. De princípio, tais sambas deveriam ser “descartados” de uma utilidade no processo educativo, porém, vejo de outra maneira. Se formos analisar o processo histórico da formação da Nenê de Vila Matilde, o modo como o negro era “escondido” de uma visão positiva na história e o contexto histórico de ativismo do movimento negro, tais sambas servem de questionamento para entender porque, nessa época, a representação do negro era passiva. Ao longo da pesquisa, fomos percebendo que o uso do samba enredo de temática afrobrasileira da Nenê de Vila Matilde pode, sim, ser um recurso didático, mas com algumas ressalvas.
Primeiro que, de certa maneira, tendemos a privilegiar apenas aquelas letras que fazem sucesso, por possuírem um questionamento visível ou, até mesmo, por serem de fácil entendimento. Aqui, reforço que a música, o samba enredo como um todo, não deve ser uma mera ilustração. Já pensou um cruzamento da visão da Chica da Silva na década de 50 com a visão da mesma personagem em 2012? Isso, dentro de um processo de entender a história não só do passado negro, mas da sua representatividade, é muito importante para a implementação da Lei 10.639/03. Da mesma forma, os sambas que são, de início, mais apropriados para utilização em sala de aula nem sempre geram um resultado esperado. Neste ponto, cabe retornar à discussão do reconhecer o passado da escola, os seus atores, como eles interagem com a identidade negra e, acima de tudo, não ficar em uma leitura simples do samba enredo, pois acabaremos caindo em mais sedimentações do estereotipo do negro e ajudando ainda mais na efetivação do racismo. Deve-se ouvir, pensar e questionar o samba enredo, a sua temática e entender a dimensão de carnavalização que a escola de samba, com sua identidade e com seu contato com a cultura afro, acrescenta dentro desta história. Um segundo ponto é que se prender apenas na escuta e na letra do samba faz com que o professor e o aluno percam a riqueza que a história da escola de samba pode trazer para dentro de sala de aula. No caso da Nenê de Vila Matilde, fomos percebendo que a identidade da escola se torna, junto aos sambas analisados, uma força a mais para compreender as suas letras e a visão de negritude. O que podemos dizer é que um samba enredo está além de ser uma ilustração. É maior que isso! Como vimos na escola da Zona Leste, o tema afro mexe com a identidade de seus componentes, faz retomar aspectos de um pertencimento a um espaço em comum, como um empoderamento do ser negro. O envolvimento indireto, quase oculto, do movimento negro com as temáticas afrobrasileiras da Nenê também foi um fator importante percebido neste trabalho. Notou-se que, ao longo das décadas, os sambas da Nenê começavam a ter mais questionamentos da posição histórica do negro na história e sociedade, em um discurso paralelo ao do movimento negro, que, na década de 70 se tornaria mais presente em sociedade, tendo seu ápice no final da década de 80 e anos 90. É exatamente no fim dos anos 70 que o negro começa a ser mais questionador da sua condição, com o Sonho de um Rei Negro, em 1978.
Claro que, postulamos isso como uma hipótese, mas é inegável que exista uma apropriação do discurso do movimento negro, bem como uma possível aproximação com o passar dos anos entre ambos os movimentos. Outra questão que conseguimos identificar ao longo da pesquisa é o certo ineditismo da Nenê na temática africana e afro-brasileira entre escolas de samba paulistanas, o que vai de confronto, inclusive, com o pioneirismo salgueirense, que possui o título de primeira escola de samba no Brasil a colocar o negro em um samba enredo, em 1960. Mas, no decorrer das análises dos sambas da Nenê, encontramos o desfile de 1954 que falava sobre Zumbi. Além disso, em 1959, fez o desfile em homenagem a Chica da Silva. Muitos fatores podem explicar esse “esquecimento”: um deles era a maneira como o carnaval era visto pela sociedade paulistana, sendo pouco valorizado pela imprensa. Outro fator é a própria imprensa, que valoriza mais o que era produzido no Rio de Janeiro, berço dos desfiles das escolas de samba, sendo São Paulo um mero anexo, ou o túmulo do samba. Mas, em balanço final, podemos perceber que analisar a letra e a escuta de uma samba enredo é um processo complicado e que seu uso e recurso depende muito de como e dos objetivos que o professor deseja alcançar. É de suma importância entender o contexto histórico dos compositores, bem como conhecer a escola de samba da qual estamos falando, como ela se relaciona com o tema da negritude e, acima de tudo, como o negro é posto. A trajetória do samba paulistano é complicada e cheia de imbricações e lacunas. Em suas mais de 64 escolas de samba e blocos carnavalescos, o processo de reinvenção de sua estética, do cotidiano e de carnavalizar a história lhe são comuns. Claro que, aqui, direcionamos para a história, personagens, sambas enredos e a negritude declarada da Nenê de Vila Matilde, escola essa que tem, em seus sambas, contradições, estereótipos, mas que tem um tom crítico, de posicionamento do negro e, acima de tudo, de seu empoderamento. O que propomos, talvez, seja uma grande hipótese, uma grande possibilidade teórica de que o samba-enredo de temática afro brasileira pode ter no combate ao racismo. Assim, faço o convite para que os professores a coloquem em mediação na sala de aula. Que questione essas fontes, que escute os sambas e apresente outras possibilidades diversas de seu uso e de seu recurso e incentive a interculturalidade que o samba possui, com o contato a outros conhecimentos e a cultura escolar. Propagar a cultura da escola de samba é, talvez, o grande objetivo desse trabalho. Mostrar que seu produto mais original, o samba enredo, possui um enorme poder de linguagem.
Posso dizer que o que postulamos nessa dissertação é certa utopia em meio as atrocidades e retrocessos que vivemos, especificamente, no campo educacional, e ainda mais na persistência do racismo e da insistência de uma visão colonizada e agressiva do “outro”. Nosso propósito foi o de questionar e apresentar com o samba enredo uma possibilidade de reverter tal pensamento. Sugerir o combate a um currículo tecnicista e avaliativo, a um pensamento colonial e a uma onda conservadora por meio da escola de samba é uma loucura, mas acreditamos que seja uma forma de amenizar a derrota cotidiana da luta pela implementação da Lei 10.639/03 nas escolas. É usar como arma para essa realidade a beleza estética que o samba enredo possui; a representatividade de uma escola de samba que, nos seus mais de 69 anos, valorizou seu passado e ainda acredita em um “sonho de um rei negro”. Como o samba citado no início dessas considerações finais, “o desfile terminou”, mas permanece a crença de que o samba enredo da Nenê de Vila Matilde pode se tornar um recurso didático para efetivação da Lei 10.639/03. Essa caminhada ainda está no seu começo, como uma “vitória que vai surgindo”, e que, talvez, precise de mais outro carnaval, um outro samba para podermos ter a certeza de sua vitória e da dimensão de seu uso como recurso em sala de aula. É uma utopia tudo isso? Sim. Mas continuaremos a segui-la! ‘