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3.4.1 Entender o uso do samba enredo: o seu discurso, sua escuta e sua temática

 Eu também tenho origem (1989): Esse enredo aborda a cultura afro-brasileira como um todo, com os seus ritmos, danças e manifestações culturais, chegando ao próprio samba. O título faz alusão a duas coisas: à origem comum dessas manifestações, todas negras, e ao fato de que, nesse ano, a escola comemorava 40 anos e queria mostrar que sua origem, assim como a das festas que abordou, também era negra;  Narciso Negro (1997): Este talvez seja um dos sambas mais cantados na quadra da

Nenê, sendo um marco do carnaval de São Paulo. Mas sua escolha se não dá por motivo afetivo ou histórico, mas pelo seu caráter de mostrar o poder e história do negro que se reconhece como belo, tal qual Narciso na mitologia grega. Aqui, o narcisismo está mais atrelado ao orgulho da negritude;  Chica convida... no palácio da Nenê, a festa é para você (2012): Um dos mais recentes enredos afro da escola, a sua escolha se pauta na letra, por uma postura diferenciada de Chica da Silva na letra, se diferenciando daquela de 1959. Há uma carnavalização da história de Chica, que, em uma festa fictícia, convida personalidades negras para exaltar a negritude, sendo um enredo que se difere dos demais.

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Vale mencionar que essas seis obras fazem parte dos 22 enredos afro-brasileiros da escola e que as escolhas se deram pelo caráter histórico, temático e pedagógico que possuem. Mas, de forma alguma, isso exclui a utilização dos outros 16 enredos, até porque, aqui mesmo, já mencionamos o caráter pedagógico do enredo de 2013, que aborda a Revolta dos Búzios. Os critérios de análise que utilizaremos serão: o discurso e a temática empregada; o sujeito envolvido no samba enredo; a letra do samba; e a dimensão que cada samba enredo pode gerar.

3.4.1 Entender o uso do samba enredo: o seu discurso, sua escuta e sua temática.

A percepção musical é, antes de tudo, uma dimensão pessoal. Logo cada um que ler e ouvir as seis composições propostas terá uma visão diferente, pessoal e crítica acerca de seu conteúdo. Portanto, a escuta, mesmo sendo coletiva, é individual e singular, expressando um contato de emoções entre o ritmo, o cérebro e a sensação que se combina com a visão do eu

de sociedade de cada um, permitindo “que o ouvinte se revele na escuta sem que ele mesmo se dê conta” (SEKEFF, 2007, p. 26). A escuta de certo samba enredo pode possibilitar ouvir um “outro” que talvez nunca foi ouvido pois este “outro” se expressa ou é mostrado de uma maneira distinta. A escuta deve ser, primeiramente, bem refinada pelo professor, que terá a missão de mediar o conteúdo histórico junto à linguagem musical, o que nos leva a duas questões que devem ser ponderadas antes de seu uso: sua utilização deve ter um significado, que se encontra na sua concepção e intenção; outro ponto é que esse significado nem sempre é concreto, uma vez que quem ouve não fica inerte à escuta, assim, o mesmo samba pode ter, na sua reprodução, sentido mais significativo em uns do que em outros, bem como alguns trechos serão mais importantes em uns dos que em outros. No caso dos sambas afros, sugerimos que a escuta e significação deve focar o discurso do posicionamento dos personagens envolvidos, o que possibilita refletir sobre as visões e ações dos mesmos. Desta forma “o artista e público participam assim de forma indivisível da feitura global da obra musical que só se completa, realmente, na escuta” (SEKEFF, 2007, p. 29). Isso é vital para que a escuta não fique artificial o que faria perder o sentido de se usar tais obras. Portanto, conhecer o passado da escola de samba e sua identificação com tal temática irá gerar um maior repertório para o seu uso. O processo de escuta é, assim, uma ação de sensibilidade durante o qual a música provoca deslocamentos no aluno, que toma um choque com sua estética e, depois, discute criticamente as intencionalidades da letra e da melodia. Monique Augras (1992), em Medalhas e brasões: a história do Brasil no samba, questiona sobre como o samba enredo, ao longo de seu processo de formação, esteve alinhado a um discurso muito pautado na oficialidade. Entre as décadas de 50 e fim dos anos 60, por questões das mais diversas, o samba enredo tem, em seu discurso, uma preocupação essencialmente patriótica que engendraram nossos mitos e personagens históricos. A própria discografia da Nenê não fica muito longe disso. Da década de 50 até a década de 70, os temas de ótica patriótica eram a base dos enredos da escola. Como vimos no segundo capítulo, as escolas de samba no Rio de Janeiro eram obrigadas pelo Estado Novo a enaltecer o Brasil em seus enredos e as escolas de São Paulo não escapam disso. Outro evento que deve ser destacado das temáticas e discursos das escolas é o período da ditadura militar no Brasil, que coloca um freio em certas mudanças que se iniciavam nas temáticas dos desfiles.

Como Zélia Lopes Silva (2016) comenta, os próprios enredos afros da Nenê de Vila Matilde, antes de 1964, possuíam uma certa criticidade ou uma proximidade a temas do mundo negro, que iam desde a escravidão até personagens históricos. O que faz a autora pensar que tais enredos tinham o compromisso de

(...) imprimir sua marca nessas escolhas, pois a intenção dos carnavalescos é repensar o passado escravo, de dor e sofrimento dos descendentes afro-brasileiros, a julgar pelas questões dessa natureza trazidas a eventos dedicados à alegria, como o carnaval (SILVA, 2016, p. 365).

Em outras palavras, utilizar o espaço do carnaval para impor uma visão acerca da própria ideia de negritude da escola de samba Nenê de Vila Matilde. Embora os primeiros sambas da escola com a temática negra tenham certo lamento e passividade do negro, com destaque aos enredos Casa Grande e Senzala, de 1956, e Chica da Silva, de 1959, os sambas negros, a partir de 1978, começam a apresentar criticidade ou protagonismo do negro. É importante reparar na data: o ano de 1978 é o fim de um hiato de dez anos com enredos fora da temática afro-brasileira, o que pode estar relacionado ao que Zélia Lopes Silva (2016) argumenta: o período militar, talvez, travou a possibilidade de enredos com a temática afro, uma vez que falar de raça ou negritude era passível de repressão. Dessa maneira, a temática e o discurso do samba são fundamentais antes, durante e depois do processo de escuta, o que nos faz atentar para como o samba se manifesta. Até o fim dos 60, era comum o chamado samba lençol, ou seja, descritivo, delineando ponto a ponto do desfile, e, depois dos anos 60, os sambas começaram a ser menos descritivos, assumindo um pouco mais de interpretação livre do compositor. Essa mudança no discurso, principalmente, é desencadeada pelos carnavalescos, que renovaram a maneira de lidar com os enredos. Os sambas escolhidos embora a temática seja a afro, refletem esse processo de mudança. A temática afro pode ser vista em cinco subdivisões: religiosidade; heróis e personagens; temas abstratos; histórico e regionais; e CEP (cidades, estados ou países). Assim, chegamos a seguinte tabela:

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