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i.3. Questões epistemológicas e metodológicas

principais armas de uma teoria crítica da cultura que pretende potencializar o que de transformador e revolucionário levamos na nossa própria essência de seres humanos” (HERRERA FLORES, 2005b, p. 31, grifo no original)7. Mas além disso: pode o samba ser outra maneira de ver o mundo, quando entendemos o mundo dentro da lógica colonial hegemônica e o samba como um produto cultural antagonista? Na realidade do Rio de Janeiro, busco investigar nesse trabalho, a partir da teoria crítica dos direitos humanos e do feminismo, o samba como processo cultural, como prática de resistência e emancipação em direitos humanos, bem como verificar, por meio de análise de discurso, canções de mulheres sambistas como possível prática cultural emancipatória em direitos humanos.

Por conseguinte, a emancipação8 pode ser definida como a “elevação de todas as classes domésticas ou civilmente subalternas à condição de sujeitos plenamente livres e iguais, o que implica a queda de todas as barreiras de classe derivadas dos processos de divisão social, sexual, étnica e territorial do fazer humano” (HERRERA FLORES, 2009, p. 109). Desse modo, a emancipação em direitos humanos pode ser entendida como a possibilidade criar diferentes antagonismos ao sistema que oprime e subjuga grupos sociais através da divisão sexual do trabalho, buscando os bens materias para se ter uma vida digna.

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i. 3. Questões epistemológicas e metodológicas

As mulheres tiveram um papel essencial no surgimento e consolidação do samba. Desde as pastoras dos ranchos e o protagonismo das tias baianas no final do século XIX e início do século XX, as grandes intérpretes dos anos dourados e as compositoras e sambistas de hoje no Rio de Janeiro, contudo, as mulheres foram e são apresentadas como coadjuvantes na grande indústria cultural9 que o samba envolve. Isso porque a indústria cultural se alinha ao

7 Tradução livre. No original: “(...) funciona como una de las principales armas de una teoría crítica de la cultura que pretende potenciar lo que de transformador y revolucionario llevamos en nuestra propia esencia de seres humanos”. 8 Emancipação, neste trabalho, é usado como sinônimo de empoderamento, tendo em vista o entendimento apresentado por Joice Berth: “(...) o conceito de empoderamento é instrumento de emancipação política e social e não se propõe a “viciar” ou criar relações paternalistas, assistencialistas ou de dependência entre indivíduos, tampouco traçar regras homogêneas de como cada um pode contribuir e atuar para as lutas dentro dos grupos minoritários”(BERTH, 2018, p. 14, grifo no original). A autora ainda afirma que o empoderamento visa “(...) uma postura de enfrentamento da opressão para a eliminação da situação injusta e equalização das existências em sociedade” (BERTH, 2018, p. 16). Ou seja, os termos podem, nessa persperctiva, ser considerados sinônimos.

capitalismo, ao seu modo de produção e à sua maneira colonial de ver o mundo. A invisibilização das mulheres no samba acontece a partir de uma lógica colonial sobre esses papéis e sobre como eles são determinados pela divisão sexual do trabalho. No entanto, se olharmos desde uma perspectiva descolonial, essas mulheres sempre ocuparam papéis de importância, protagonismo e resistência. Assim como em todos os lugares de produção na sociedade, as mulheres sempre cantaram e compuseram samba. Até porque as rodas nos quais eles eram compostos eram feitas em suas casas, nas casas das mães de santo, logo, impossível pensar que elas não participavam desses processos. Nos últimos anos as mulheres têm buscado a visibilização desse protagonismo que reiteradamente lhes tem sido negado dentro da lógica colonial hegemônica, se afirmando como cantoras e compositoras, e, por vezes, se unindo coletivamente nesse processo. É o caso do ÉPreta (EP), roda de samba formada pelas cantoras negras Marina Iris, Nina Rosa, Simone Costa, Maria Menezes e Marcelle Motta, que buscou imprimir no projeto coletivo do disco de mesmo nome suas referências e resistências. A música que dá nome ao meu trabalho faz parte desse disco.

Posso dizer que desde a apresentação do projeto inicial dessa pesquisa para a seleção no Programa de Pós-Graduação em Direito, em 2016, até hoje, o cenário musical aparenta estar um pouco mais otimista. Têm surgido cada vez mais rodas de samba de mulheres no Rio e cada vez mais cantoras têm ganhado destaque, principalmente por pautarem questões de gênero e raça nos seus repertórios. A morte de Dona Ivone Lara em abril de 2018 fez com que o samba feminista se tornasse pauta em muitos meios de comunicação, e mais histórias de mais mulheres sambistas passaram a ser divulgadas10, sendo que algumas dessas mulheres aproveitaram essa abertura para ocupar espaços e firmar posicionamentos políticos. A ideia inicial da pesquisa era entrevistar algumas dessas mulheres sambistas negras que já tivessem se posicionado na mídia como feministas. Contudo, a única com a qual consegui entrar em contato e realizar uma entrevista foi Marina Iris. Diante da dificuldade de acessar o campo necessário para a pesquisa etnográfica (acredito que principalmente pelo fato de eu ter cometido o erro de não ter realizado um contato prévio), concentrei-me em analisar as letras de músicas compostas, total ou em parte, por mulheres que têm protagonizado essa

Frankfurt. Tendo em vista, entretanto, esse trabalho adotar uma perspectiva descolonial, sigo a compreensão de Stuart Hall sobre a indústria cultural, que será debatido mais adiante.

10 Um pouco antes, em março de 2018, o site Samba em Rede divulgou, durante todo o Mês da Mulher, 31 histórias de mulheres sambistas de todo o país. Disponível em: <https://goo.gl/j2Yiew>. Acesso em: 16 nov. 2018.

agenda e como elas têm produzido esse conhecimento, especificamente as do disco da roda de samba ÉPreta. Não pude deixar de fora, no entanto, a entrevista realizada com Marina, ainda que erros metodológicos da minha parte tenham acontecido, por uma questão de respeito à disponibilidade dela, por ela também fazer parte do ÉPreta e, principalmente, para não mais silenciar ou deixar de ouvir o que mulheres como ela tem a dizer. Assim, farei a análise de discurso das letras do álbum lançado em 2017 pelo projeto ÉPreta, foco principal do trabalho, mas também analisarei a entrevista realizada com Marina Iris

A análise de discurso de matriz francesa ou de base francesa ou ainda a AD elaborada

na França por Michel Pêcheux e trabalhada no Brasil por Eni Orlandi, se mostrou a teoria mais adequada, utilizando como referencial teórico para isso Monica Graciela Zoppi-Fontana. A autora analisa o discurso a partir das categorias da Análise de Discurso de matriz francesa, mas acrescenta as categorias de gênero e raça, principalmente, ao debater sobre lugar de fala e como esses marcadores de corpo proporcionam contexto determinante nesses discursos. Dito isso, esse trabalho não é neutro ou imparcial, se posiciona politicamente em prol da luta por direitos humanos de mulheres, negros(as), LGBTs, indígenas, pessoas com deficiência, e todo e qualquer ser humano que seja socialmente colocado à margem pelo pensamento jurídico hegemônico, pois não basta fazermos ciência se ela não for posicionada no mundo, se ela não for “mundanizada”. Como afirma Herrera Flores:

(...) para se conhecer um objeto cultural, como são os direitos humanos, deve-se fugir de todo tipo de metafísica ou ontologia transcendentes. Ao contrário, é aconselhável uma investigação que destaque os vínculos que tal objeto tem com a realidade. Com isso, abandonamos toda pretensão de pureza conceitual e o contaminamos de contextos. “Mundanizamos” o objeto para que a análise não se fixe na contemplação e no controle da autonomia, neutralidade ou coerência interna das regras, senão que se estenda a descobrir e incrementar as relações que tal objeto tem com o mundo híbrido, mesclado e impuro em que vivemos (HERRERA FLORES, 2009, p. 46-47).

Diante desse mundo impuro, diversas dificuldades se apresentam, no decorrer da pesquisa. Além das dificuldades metodológicas e as próprias do campo, existiu também uma dificuldade de área, tendo em vista que são poucas as pessoas no Direito que fazem pesquisa de campo. O Direito no Brasil ainda se entende com uma disciplina isolada que se basta na sua dogmática, legislações e decisões judiciais. Uma teoria que se diz crítica, no entanto, não pode se satisfazer em papéis escritos por uma maioria branca e masculina, devendo buscar nas vozes e experiências vividas na margem um conhecimento que cumpra uma função social através da reflexão crítica e criativa. Nesse contexto:

As maiorias populares, tracidionalmente retiradas dos centros de poder, lutaram, sempre e incansavelmente, para rejeitar sua exclusão dos processos políticos, sociais, econômicos e culturais e, é claro, a exploração, como membros de classes sociais oprimidas, aos quais eles foram submetidos por processos culturais fechados – que aquí denominaremos “processos ideológicos”- que sistematicamente impediram a afirmação de alternativas a ordens hegemônicas. A partir dessas lutas, a realidade começou a ser percebida de outra forma (HERRERA FLORES, 2005b, p. 29)11 .

Esse trabalho, então, busca construir um conhecimento sobre direitos humanos a partir dos processos culturais emancipadores protagonizados por mulheres negras, cantoras de samba, que podem (ou não) usar o samba cantado e composto por elas como uma ferramenta de emancipação em direitos humanos e para a democracia. No primeiro capítulo, abordarei a temática dos direitos humanos a partir da Teoria Crítica dos Direitos Humanos apresentada por Herrera Flores. Esse capítulo se mostrou necessário após a participação no VII Fórum de Grupos de Pesquisa em Direito Constitucional que ocorreu na Faculdade de Direito da UFRJ em setembro de 201812. No painel em que debateria um trabalho nessa temática, fiquei impressionada com os argumentos sustentados por professores de Direito de instituições públicas que afirmaram “estar superado o debate sobre o universalismo dos direitos humanos, já que esses já eram universais”, e que “o debate dos direitos humanos estava sendo capturado por ideologias e com isso deveríamos tomar cuidado”. Ao tentar questionar essas afirmações, fui constantemente interrompida e chamada de “relativista”. Ora, como bem afirma Herrera Flores, “uma teoria tradicional que, apesar de suas proclamas universalistas, a única coisa que universaliza é seu descumprimento universal” (2009, p. 111, grifos no original), deve ser questionada e criticada. Bem como uma pretensão de neutralidade, já que “toda tentativa de neutralidade valorativa aproxima-se muitíssimo da aceitação acrítica das injustiças e opressões que dominam o mundo da globalização neoliberal” (2009, p. 100). Por isso a urgência desse debate posicionado politicamente e contextualizado historicamente.

Assim, no primeiro capítulo trarei o debate sobre direitos humanos a partir da visão proposta pelas mulheres entrevistadas, o que é permitido a partir da linha teórica à qual esse

11 Tradução livre. No original: “Las mayorías populares, tradicionalmente alejadas de los centros de poder, siempre e incansablemente, han luchado para rechazar su exclusión de los procesos políticos, sociales, económicos y culturales y, por supuesto, la explotación, como miembros de clases sociales oprimidas, a que se veían sometidos por procesos culturales cerrados –que aquí denominaremos “procesos ideológicos”- que obstaculizaban sistemáticamente la afirmación de alternativas a los órdenes hegemónicos. A partir de dichas luchas, la realidad empezaba a percibirse de otro modo”. 12 Mais informações sobre o evento disponível em: <https://goo.gl/VcgSXk>. Acesso em 22 set. 2018.

trabalho se afilia, da Teoria Crítica dos Direitos Humanos. O primeiro ponto trará uma abordagem teórica mais inicial sobre direitos humanos, questionando o quê, por quê e para quê dos direitos humanos, enquanto o segundo ponto apresentará o que as sambistas do grupo ÉPreta entendem por direitos humanos a partir da análise de discurso das letras do disco. Já o terceiro ponto desse capítulo irá propor a união entre os debates trazidos até então para abordar outras lentes epistemológicas para se pensar os direitos humanos hoje. No segundo capítulo discutirei o conceito de cultura e processos culturais, principalmente desde a leitura de Stuart Hall e Joaquin Herrera Flores, e quais os processos culturais reguladores, ou ideológicos13, que estão envoltos nas relações entre samba, Estado e mulheres. Serão debatidos, utilizando o conceito de processos culturais reguladores, o controle social do Estado sobre os corpos negros, e especialmente sobre as mulheres brancas e negras, marcando essas diferenças para propor um debate feminista interseccional. Por fim, no terceiro capítulo buscarei falar sobre as mulheres e sua relação com o samba e questionar se o samba, a partir do feminismo e com a compreensão da relação gênero-raça-classe, pode reagir culturalmente ao colonialismo patriarcal, sendo um processo cultural feminista de emancipação em direitos humanos.

13 Joaquín Herrera Flores usa o termo “ideológico” num sentido negativo, de cerceamento de pensar, ser e estar no mundo porque se refere às ideologias hegemônicas. Utilizarei o termo ideologia a partir do que ensina

Stuart Hall: “Por ideologia eu compreendo os referenciais mentais – linguagens, conceitos, categorias, conjunto de imagens do pensamento e sistemas de representação – que as diferentes classes e grupos sociais empregam para dar sentido, definir, decifrar e tornar inteligível a forma como a sociedade funciona” (HALL, 2018, p. 295). Em outras palavras, todo referencial tende a ser ideológico, mas podem existir ideologias que não busquem a imposição de padrões, e aceitem a diferença, isto é, que sejam emancipadoras.

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