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2.3. O controle social informal da mulher como um processo cultural regulador

definitivas, mas onde há sempre posições estratégicas a serem conquistadas ou perdidas (HALL, 2018, p. 282).

Assim, não há como ignorar a interferência, e por vezes, manipulação, que as instituições fazem no samba. Mas também não há como evitar. Ele é um campo de batalha, no qual sempre estarão em disputa as forças do capital e as forças de resistência em favor dos direitos humanos. É preciso ter isso claro para compreender a qual discurso se está referindo e para analisar a possibilidade do samba ser uma ferramenta de emancipação em direitos humanos, como esse trabalho se propos a fazer.

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2.3. O controle social informal da mulher como um processo cultural regulador

O controle social imposto às mulheres, todavia, se apresenta diferentemente. Logo, a maneira como a indústria cultural atua sobre elas também. Isso porque a construção dos papéis sociais de gênero – tanto masculino como feminino – e a divisão de poder sempre colocaram a mulher numa posição inferior. A construção do gênero foi elaborada, e tem sido perpetuada, intrinsecamente à sociedade patriarcal e androcentrada, e a partir disso passa a se compreender os processos de seleção de comportamentos mais significantes na constituição de papéis gendrados46 . Às mulheres é determinado um padrão social comportamental, baseado em estereótipos idealizados da mulher na sociedade patriarcal, isto é, mãe, esposa, cuidadora e submissa, feminina, manifestando-se restritamente no ambiente doméstico, que vem se perpetuado como hegemônico. Como afirma Mirales:

Assim, a mulher é principalmente mãe e sua vida social e sexual está destinada a este fim. (…) a mulher só é realmente considerada mulher quando apresenta um comportamento feminino. Isso significa que ela deve ser: meiga, doce, dependente, obediente, servil, agradável e dedicar sua vida à felicidade dos que formam seu ambiente familiar (MIRALES, 2015, p. 196).

Para manter a mulher nesses limites, há um controle social desenvolvido informal e formalmente. Destaca-se que controle social, num sentido lato, são as formas com que a sociedade responde, informal ou formalmente, difusa ou institucionalmente, a comportamentos e a pessoas que contempla como desviantes, problemáticas, ameaçantes ou indesejáveis, e nessa reação seleciona, classifica, estigmatiza o próprio desvio e a

46 'Gendrado’ tem origem no termo gender, palavra em inglês para gênero, e vem sendo utilizado como adjetivo correspondente ao substantivo gênero. O termo é um neologismo e ainda não foi incluído em dicionário (Saffioti, 2015, p. 81 – nota de rodapé 2).

criminalidade como uma forma específica dele (ANDRADE, 2012, p. 133). O controle social formal é aquele exercido pelas instituições, como o Judiciário, Polícia, Ministério Público, integrando a ele os processos de criminalização primária, secundária e terciária; já o controle social informal se dá por meios difusos, como a família, a igreja, a escola. No entanto, no que concerne à mulher, o controle informal é muito mais presente e atuante. Destaca-se que:

O sistema de controle dirigido exclusivamente à mulher (no seu papel de gênero) é o informal, aquele que se realiza na família. Esse mesmo sistema vem exercitado através do domínio patriarcal na esfera privada e vê a sua última garantia na violência física contra as mulheres (BARATTA, 1999, p. 46).

Nessa linha, o controle informal infligido à mulher materializa-se na família, primeiro controle que a mulher recebe, bem como na escola, na religião e na moral (ANDRADE, 2012, p. 145; MIRALES, 2015, p. 196). Percebe-se mais claramente esse controle na infância, quando se designa às meninas os brinquedos cor-de-rosa e ligados à casa e à maternidade, quando se diz que “isso não é coisa de menina”, ou “sente-se como menina”. Esse controle informal se perpetua durante toda a vida da mulher, no ambiente de trabalho e no próprio mercado de trabalho, no casamento e relacionamentos afetivos, nas revistas dedicadas ao público feminino. Há uma força invisível – o patriarcalismo – que regula o lugar feminino no ambiente doméstico, nos papéis de cuidadora, e os desvios desse padrão são frequentemente malvistos e punidos. Percebe-se que o simbolismo de gênero está enraizado nas estruturas da sociedade e suas instituições, e apresenta a polaridade de valores culturais e históricos como se fossem diferenças naturais e biológicas (ANDRADE, 2012, p. 142). O pensamento moderno hegemônico dito neutro, é, na verdade, masculino, e a oposição entre homem e mulher e a seleção de comportamentos mais significantes para a sociedade, desse modo, acaba por criar estereótipos femininos de submissão e subordinação. Nesse sentido, afirma Herrera Flores:

Esta tendência patriarcal de clausura das mulheres no âmbito doméstico se apresenta como se não fosse o produto de uma determinada reação ideológica que bloqueia o circuito de reação cultural, ou seja, que impede as mulheres ou, por extensão, a todos os que lutam por um tipo de metodologia de ação social antipatriarcal, de propor novas formas de relação e novos signos culturais, outros modos de explicar, interpretar e intervir nos entornos das relações em que estamos inseridos (HERRERA FLORES, 2005b, p. 144)47 .

47 Tradução livre. No original: “Esta tendencia patriarcal de clausura de las mujeres en el ámbito doméstico se presenta como si no fuera el producto de una determinada reacción ideológica que bloquea el circuito de reacción cultural, es decir, que impide a las mujeres o, por extensión, a todos los que luchamos por un tipo de metodología de la acción social antipatriarcal, proponer nuevas formas de relación y nuevos signos culturales en los que primen otros modos de explicar, interpretar e intervenir en los entornos de relaciones en los que

Assim, o controle social atua como um processo cultural regulador patriarcal de contenção da mulher, se apresentando como se fosse o único modelo possível, impedindo a convivência das diferenças e bloqueando outras possibilidades de reação frente à realidade. Isto é:

O patriarcalismo é o exemplo mais claro de um bloqueio "ideológico" do processo de reação cultural: um único sistema de valores é imposto, como se fosse universal e imutável, a todos aqueles que não coincidem com seus pressupostos básicos: o masculino, o branco, o cristão protestante. Tudo o que não coincide com tais pressupostos ideológicos é considerado inferior e, portanto, suscetível de ser objeto de dominação ou violência. Deste modo, as produções culturais de mulheres, negros, islamitas, budistas, etc., são relegadas a um nível de subordinação e inferioridade. O cultural é reduzido a um único ponto de vista, a reação cultural sendo fechada para todos que não coincidem com ele (HERRERA FLORES, 2005b, p. 144, grifo no original)48 .

Por isso, os discursos conservadores religiosos, políticos e, falsamente, moralistas nada mais são do que a imposição de um modelo patriarcalista que cerceia os diferentes modos de ser e estar no mundo. Eles impedem que múltiplas visões de mundo sejam vivenciadas, limitando as reações culturais que mantemos conosco mesmos, com os outros e com o mundo diante de um modelo capitalista, europeu, branco, cisheteronormativo, judaicocristão e não deficiente.

Sobre as mulheres cantoras, os processos culturais reguladores agem até mais fortemente, pois expostas publicamente devido a suas carreiras artísticas, das quais muitas acabam desistindo para cuidar da família e do casamento, como, por exemplo, “Aurora Miranda, Celly Campelo, Leny Eversong e Wanda Sá, que antes de se casar estava formando uma sólida carreira no exterior, e só voltou a cantar profissionalmente recentemente, depois da separação do compositor Edu Lobo” (MURGEL, 2010, p. 05), todas mulheres brancas muito conhecidas em seu tempo de atuação. Subsidiariamente a esse controle informal, há o controle formal, realizado pelas estruturas do sistema penal, que age tanto de modo integrativo ao controle informal de

estamos insertos”. 48 Tradução livre. No original: “El patriarcalismo es el ejemplo más claro de bloqueo “ideológico” del proceso de reacción cultural: un solo sistema de valores es impuesto, como si fuera universal e inmutable, a todas y todos los que no coincidan con sus presupuestos básicos: lo masculino, lo blanco, lo cristiano-protestante.

Todo lo que no coincida con tales presupuestos ideológicos, es considerado inferior y, por consiguiente, susceptible de ser objeto de dominación o de violencia. De ese modo, las producciones culturales de mujeres, de negros, de islámicos, de budistas, etc., quedan relegadas a un plano de subordinación y de inferiorización.

Lo cultural se reduce a un solo punto de vista, quedando cerrada la reacción cultural a todos los que no coincidan con él”.

trabalho, reforçando o controle capitalista de classe, quanto de modo residual, pois é dirigido primordialmente aos homens, constituindo um mecanismo masculino de controle para a repressão de condutas masculinas, regra geral, praticadas pelos homens, e só secundariamente pelas mulheres (ANDRADE, 2012, p. 144-145). Isto é, as condutas femininas não têm relevância para o sistema penal, só sendo criminalizadas residualmente. Isso porque o controle social informal funciona com enorme eficiência, fazendo com que a criminalidade feminina seja, nitidamente, em números inferiores. Em outras palavras, “quando o desvio não for absorvido pelos outros tipos de controle social, caberá a prisão, como limite final para o resíduo da mulher”, funcionando para fins de disciplina, punição, contenção e exclusão (MIRALES, 2015, p. 195). Algumas distinções precisam ser feitas, no entanto, quanto às mulheres negras, o que se reflete no seu papel no samba. Diferentemente das mulheres brancas – sobre as quais o papel de gênero e o controle social atuam da maneira que se propõe genérica descrita até agora –, as mulheres negras não pertencem ao ambiente doméstico da mesma forma, e o Estado sempre atuou sobre seus corpos, pois para elas o estigma da raça é tão forte quanto o do gênero, como já descrito por Lélia Gonzalez (GONZALEZ, 1984, p. 224). “Dentro desse contexto, a mulher negra aparece sempre como coadjuvante, sem que seu papel de mulher na sociedade seja visto. É simplesmente coisa, coisamente” (THEODORO, 1996, p. 37). Lélia Gonzalez afirma, ainda, que a “mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão” (GONZALEZ, 1984, p. 226). Ou seja, às mulheres negras é negada a humanidade e a possibilidade de existência digna não somente por conta da divisão sexual do trabalho e dos papéis de gênero, mas porque negras, porque racializadas como seres inferiores dentro da lógica colonizadora. Por isso, para elas não é permitido o trabalho doméstico somente, mas também o trabalho mal remunerado e, até recentemente, não reconhecido de empregada doméstica da mulher branca, mantendo claras semelhanças com seu papel durante a escravidão. Historicamente, a mulher negra escravizada passava por situações às que os homens não eram submetidos, já que, como mulher, sobre ela também incidia esse outro mecanismo de dominação, o sexismo. Elas eram sexualmente abusadas, sendo que “o estupro era uma arma de dominação, uma arma de repressão, cujo objetivo oculto era aniquilar o desejo das escravas de resistir, e nesse processo, desmoralizar seus companheiros” (DAVIS, 2016, p. 36). Angela Davis fala a partir dos Estados Unidos, mas Helena Theodoro corrobora, ressaltando

que:

A utilização da mulher negra como objeto sexual também não pode ser entendida como resultado da condição da escravidão, já que tal fato implicaria também o uso do escravo como alvo das investidas sexuais dos senhores. Tal fato irá ocorrer com a escrava como decorrência da sociedade patriarcal que legitima a dominação do homem sobre a mulher, sendo que a sexualidade da escrava vai ser vista pelo senhor como fora do círculo familiar, sem limites, normas morais ou religiosas, já que a mulher negra é coisa, um objeto sexual. Para justificar tais atos criam o culto à sensualidade da mulata, tirando a responsabilidade da sociedade patriarcal pelo abuso sexual da escrava e colocando tal fato em atributos físicos que tornam incontrolável o desejo do senhor branco. (THEODORO, 1996, p. 35, grifo no original).

Mas ainda assim, entre os seus, as mulheres negras eram iguais aos homens negros na opressão que sofriam, e estavam lado a lado na resistência e na luta contra a escravidão. Como afirma Angela Davis:

(…) essa era uma das grandes ironias no sistema escravagista: por meio da submissão das mulheres à exploração mais cruel possível, exploração essa que não fazia distinção de sexo, criavam-se as bases sobre as quais as mulheres negras não apenas afirmavam sua condição de igualdade em suas relações sociais, como também expressavam essa igualdade nos atos de resistência (DAVIS, 2015, p. 3536).

Helena Theodoro se reporta à sociedade escravista, mas os comportamentos aos quais se refere se perpetuam até os dias de hoje. Por isso, durante o carnaval, a exposição do corpo da mulher negra é “permitida” e exaltada, porque além de seu corpo não ser tido como seu, ele é visto como coisa, como objeto sexual. Há, contudo, uma distinção, consoante com o ideal da mestiçagem, entre a mulher negra e a mulher mulata:

Um dito popular brasileiro sintetiza essa situação ao afirmar: “branca para casar, mulata para fornicar, negra para trabalhar”. Que se atenda aos papéis atribuídos as amefricanas (preta e mulata); abolida sua humanidade, elas são vistas como corpos animalizados: por um lado são os “burros de carga”(do qual as mulatas brasileiras são um modelo). Desse modo, se constata como a socioeconômica se faz aliada a super-exploração sexual das mulheres amefricanas (GONZALEZ, 1988b, p. 19).

Sobre as mulheres negras, então, agem os processos culturais reguladores do patriarcalismo com um todo, incidindo as explorações de gênero, raça e classe. Elas não são vítimas, mas são exploradas por uma metodologia de ação social que as inferioriza e oprime. Nesse sentido, “partir da categoria social de exploração e abandonar a de vítima, supõe abandonar critérios estáticos de compreensão do cultural e recuperar para todos e todas a capacidade genérica de criar e transformar o mundo” (HERRERA FLORES, 2005b, p. 147)49 .

Em outras palavras, reconhecer esses processos culturais reguladores possibilita a essas mulheres reagir frente a essa realidade e pensar outras formas de mundo, o que caracteriza o empoderamento. Refletir o papel da mulher negra na divisão sexual do trabalho no Brasil desde a escravidão explica, em partes, sua subjugação que permanece até hoje: as mulheres negras são as mais mal remuneradas, são elas as maiores vítimas de feminicídios no país, e as em maior número encarceradas. Percebe-se, então, como os processos culturais reguladores que atuam sobre as mulheres negras são outros, vão além daqueles que atuam sobre as mulheres brancas, porque arraigados no racismo que estrutura o colonialismo. Por isso, pensar a emancipação só é possível a partir da luta antirracial, antipatriarcal e anticapitalista. De modo contrário, serão mantidas as estruturas de exploração, não se modificando a metodologia de ação social vigente.

abandonar criterios estáticos de entender lo cultural y recuperar para todas y todos la capacidad genérica de crear y transformar el mundo”.

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