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ANEXO B – Transcrição da entrevista com Marina Iris
from “Pra matar preconceito eu renasci”: O samba como uma ferramenta de emancipação em Direitos Humanos.
ANEXO B – Transcrição da entrevista com Marina Iris Entrevista realizada dia 08 de maio de 2018, na casa da entrevistada, no Bairro Laranjeiras, no Rio de Janeiro. A entrevistada autorizou, por escrito, a gravação e transcrição de sua fala, e permitiu que seu nome fosse divulgado.
Pesquisadora: Como diz ali, no termo que você assinou, e eu expliquei brevemente, a minha pesquisa é sobre o samba e a possibilidade dele ser uma ferramenta de empoderamento pras mulheres e uma ferramenta de emancipação em direitos humanos. Você pode perguntar “Ah, mas o que o samba tem a ver com o direito?”, né?! Os dois são produtos culturais e os dois, é... (pausa) tem a ver com todos os processos de luta e resistência que existem na sociedade. Que, o samba que eu to falando, é um samba que busca essa memória de... uma memória de luta e resistência das pessoas negras. No entanto, é... tem nos últimos anos estado em curso um apagamento da presença negra na história do samba. A gente vê muito cantor, muita... muito produtor cultural, muito compositor branco, que participa desse meio, e acaba tendo mais... aparece mais na mídia, assim digamos, é capitalizado, ganha mais com isso, com relação a música. E também a gente vê uma presença maior, mas forte de homens do que mulheres, como compositores, como instrumentistas... As mulheres geralmente aparecem como intérpretes. Ela aparecem, não significa, necessariamente, que elas não estejam lá. É... Então... O meu trabalho, na verdade, ele questiona qual que seria o papel das sambistas negras no samba hoje, que é o você faz, você é uma sambista negra hoje, detro dessa conjuntura. A minha ideia é entrevistar não só você, mas outras mulheres que também trabalhem profissionalmente com isso, e perguntar pra vocês, agora já te pergunto, o que você entende de todo esse cenário, de toda essa conjuntura? Qual que é a ideia que você tem disso tudo?
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Marina Iris: Ta... Primeiro, sim assim... É evidente pra gente que houve esse apagamento principalmente no mercado grande, né?! Assim, pensar no... no que movimenta o samba na cidade, nas rodas, nas rodas menores, assim, menores assim, o negro sempre esteve presente, mas assim, como você falou, no momento de capitalizar mais, é... a gente tem uma presença muito maior das pessoas brancas ocupando esse espaço. No que diz respeito as... as mulheres, eu (pausa) percebo que a gente sempre teve as matriarcas do samba, que além dessa coisa da intérprete, mais do que isso até as tias, a tia Ciata, as mulheres que representavam algo muito importante na roda, mas ela tinha um lugar muito marcado e elas não poderiam reivindicar outros lugares, outros espaços, né?! Então, eu acho que hoje, então, eu percebo um movimento maior das mulheres reivindicando outros, outras funções, outros espaços dentro
dessa comunidade que é o samba, né?! Porque o samba não é apenas o gênero musical, é uma vida em comunidade, é um comportamento... é um comportamento... é comportamento mesmo então, enfim. É (pausa). Então nisso (pausa). Hoje eu vejo muito mais mulheres instrumentistas, é... e principalmente, mulheres compositoras, que eu acho que essa que é ... Talvez esse seja o “pulo do gato” da nossa geração, já existiam compositoras antes, vai tê, sei lá, Teresa Cristina é uma grande compositora, mas ela não é conhecida como uma grande compositora. Né?! Eu acho que não é falado, como ela é... pro grande público. Muitas pessoas consomem o trabalho dela, e não fazem ideia que ela é compositora. Isso que eu acho que é … Isso que é um pouco discrepante na coisa aí... E esse lugar de compositora eu acho que é o “pulo do gato” porque eu acho que a gente pode assumir a narrativa mesmo, assim, de certa forma, e (pausa) E contar, não somente, contar a história de maneira diferente, não só pela nossa presença e pelos espaços que a gente reivindica, mas com texto, verbalmente mesmo assim, na música, no texto que a gente canta e tal. Então eu acho que hoje, é (pausa). Reivindicando isso, esse lugar de compositora, e (pausa). A gente muda um pouco a perspectiva, porque seria uma perspectiva masculina, machista, e tudo mais. Eu acho, o nosso, o nosso texto, o que a gente pensa alcança mais gente, que é isso aí o papel do samba, o samba é um gênero popular pra caramba, e que alcança as pessoas, e que ele é, ele é... um gênero que promove, na verdade ele não promo... promove encontros, e também é, ele alimenta os encontros, enfim. Então nas reuniões de família, reuniões... ocupações de espaço público, o samba tem muita ligação com isso. Então, é uma possibilidade, o samba tem um potencial muito grande de alcançar muitas pessoas. Mesmo na diversidade. É isso o que eu acho que é mais interessante. Porque assim, uma música que esteja 'estorada' na rádio vai alcançar muita gente. E o samba ainda tem essa capacidade independente de estar no seu momento ápice, no seu auge, ou não. Né?! Porque vai ter uma coisa de circular pela cidade, da rádio-roda, né?! Das rodas que tão por aí, muitas músicas que estouram na... “Pra matar preconceito”, que é uma música que eu lancei com Nina Rosa, é... a música debate a questão racial e principalmente, critica a fetichização da mulher negra. Então “Pra matar preconceito” é uma música que estoura nas rodas muito antes de ser gravada. Então... essa, esse é o barato da coisa, assim. Isso pra nós cria, além de um reconhecimento do trabalho, pra além da questão profissional, eu acho que cria uma onde mesmo de, de, de... fortalece a questão do empoderamento, cria uma onda em que as mulheres, o olhar, sabe?! Identificação, identificação assim (pausa). Muitas mulheres procuraram, passaram a procurar a gente, passaram a cantar, foram as mulheres que fortaleceram essa música na roda. Então... Não foram os homens. Né?! As mulheres que passaram a ir pra beira da roda quando essa música
tocava, quando alguém cantava, entendeu? Então acho que esse já é uma, um fato novo, né?! A gente tem aí Dona Ivone que abriu esse caminho, que no..., que começou como compositora, é... mesmo sendo ela melodista, né?! Mas já reivindica esse espaço de compositora. Começou com as suas músicas assinadas por homens, né?! Então ela vai batalha e esse é o primeiro passo, né?! E antes dela certamente, né, a gente teve outros nomes, mas talvez o dela seja o mais expressivo. De lá pra cá outras mulheres foram, é (pausa) ganhando um pouco mais de espaço, mas como eu te disse, uma geração posterior, a geração anterior a minha, que é a da Teresa, eu acho que ainda esse lugar de compositora, da mulher que escreve a letra, principalmente escreve a letra, ele não era, não é, não era valorizado, e não era possível, ele é (pausa). Rolava um certo descrédito, sabe?! “Essa música é sua”. Teve uma época que eu cheguei a um momento tão radical, nesse sentido, que eu parei, um período, de compor com homens, porque a música seria obrigatoriamente do cara, entendeu? Então, uma vez, eu disputei um samba com uns amigos no Canários, em Laranjeiras, que é uma escola... é... aqui de Laranjeiras, e aí era o samba “do fulano” tinha várias mulheres na composição. Inclusive a letra era praticamente inteira de uma das mulheres, eu fiz melodia, ele ajudou na melodia, e a letra praticamente inteira da Manu, que é a mesma compositora de “Pra matar preconceito”. E quando a gente perdeu na final, só foram falar com ele. Ninguém veio abraçar a gente pra falar “Poxa, e aí?!” E tal... E aí eu fiquei um período ali de meses, assim: “Então não vou mais fazer música com homem não, porque... (risada leve)”. A gente foi disputar um outro samba, e a Manu “Que cê acha da gente chama...”. Eu falei “Ó, chama quem você quiser, só não chama homem”. Tava meio... ainda... sabe?! Depois melhorou, depois passou. É (pausa) Até porque depois a gente foi também... tem parceria minha com a Manu, então as pessoas já começam “ah, então elas fazem a música mesmo” e tal. Porque antes não, assim, era música de... quando, quando a música chegava nas pessoas assim, era considerado que a música era do homem, né, e não da mulher e tal. Ou então, que no máximo que a gente era melodista. Como se fazer melodia fosse uma coisa simples. E fazer melodia como a Dona Ivone fazia, por exemplo, o encontro dela com o Nelson Carvalho era uma coisa muito conectada assim. Ela mesmo falava “Nelson Carvalho sabe o que eu quero dizer com a minha melodia”, “Ele escreve o que eu quis dizer com a minha melodia”. Então assim, não é uma coisa que tá... né?! Que é menor... ou que tá... que não tem texto assim, que não tem discurso nisso, entendeu? Enfim, não sei se eu respondi.
Pesquisadora: Respondeu sim. É... Então você vê hoje que as mulheres, especificamente, reforçando, as mulheres negras, elas tão produzindo, tanto musicalmente,
quanto produção cultural, samba no Rio de Janeiro? Você vê que houve um aumento disso?
Marinas Iris: Com certeza. Com certeza te digo sem nenhum dúvida. Com certeza teve um aumento, é... uma preocupação de montar trabalhos, trazendo mais profissionais, mais cantoras, mais compositoras, sabe? Desde montar rodas, como foi o Moça Prosa, montou a roda inteira. Aí, não é só as mulheres negras, mas é tem muitas mulheres negras participando do trabalho. É... Nosso clipe do “Pra matar preconceito”, a gente quis fazer com mulheres negras e tudo mais... E mó número de perfis, né?! O trabalho “ÉPreta”, que eu não sei se você conhece o trabalho do “ÉPreta”... Então, aí o que acontece no “ÉPreta” é que a gente não teve só uma preocupação de fazer um trabalho com mulheres negras, a gente tem um... esse trabalho, ele (pausa) ele é... a gente teve que respeitar um pouco a trajetória, teve não né?! Quis respeitar a trajetória de cada uma, e a gente não se relaciona só com pessoas negras, na nossa vida. A gente tem, é... aliados de todos os tipos (risada leve). Mas a gente procurou trazer mais mulheres (pausa) entende? Respeita... A Marcelle tinha uma relação muito bacana, porque ela foi casada, e profissionalmente sempre teve um relacionamento... teve um casamento profissional também com o Aranha... então que foi o arranjador, um homem branco. Isso não foi um problema pra nós. No entanto (pausa) em algum, em alguns, algumas funções. É... Por exemplo: “ah, eu vou pensar num fotógrafo (pausa)” é, tem alguém... se eu já tivesse trabalhando há vinte anos com uma fotógrafa branca, talvez eu trabalhasse com ela, mantivesse. Agora: “vou começar do zero uma relação com alguém”, vou trazer uma mulher negra porque aí eu acho que a gente também pode criar essa rede, esses laços e tudo mais. Esse encontro do “ÉPreta” foi a tentativa justamente disso, de nesse momento as mulheres negras se olharem e tentarem fazer um trabalho horizontal. O que acontece é que... ah, mulher negra dentro do samba no espaço da grande mídia vai ter menos espaço, e mais do que isso assim, a gente tem (pausa). A gente queria romper também com alguns estereótipos, mais do que, mais do que entender que a gente tem um espaço no samba, tá bom, nas rodas de samba, eu não seria hostilizada. É mais fácil uma mulher branca ser nesse sentido do... sabe? Do
chegar pra cantar. Mulher vai ser hostilizada de uma maneira geral. Vai ser hostilizada assim, vai ser menos bem recebida de uma maneira geral. Mas, é... se ela tá num espaço em que ela não é cria daquele espaço. Mas uma mulher branca talvez passe por algumas dificuldades ali, naquele contexto específico, por uma questão, óbvia, de existência, né?! Porque ela representa a figura, mesmo que ela não seja, ela representa a figura do opressor. Beleza, pontualmente. Naquele contexto. Em qualquer outro espaço, se ela chegar numa roda de samba, se ela quiser bater na porta de uma casa de samba na Zona Sul ela vai ter muito mais facilidade. Se ela
bater numa rádio, enfim, daí vão ter outras questões. E a gente, enfim, além de tudo ela vai saí dali daquele espaço, ela vai tá vivendo uma outra realidade. E a fetichização, né?! A gente é vítima... Nas estatísticas mais cruéis, a gente tá encabeçando né?! Essas estatísticas. Então a gente procurou fortalecer, e por que que o … a gente... bom, to explicando o disco (risada leve). A gente procuro coloca, por exemplo, na capa são várias cores. Aí já me perguntaram “Por que que não é... Pô, fala de ação da mulher negra, por que que não é, por que que não coloca a cor aí?” Eu falei “Não, porque a gente tem gradações diferentes, perfis diferentes”. O ponto comum é que nós somos negras, mulheres no samba. O que a gente quis mostrar é que como mulheres negras no samba a gente é muito diferentes uma das outras, e que a gente não... rompe um pouco com a questão do estereótipo mesmo. Eu sou lésbica, a outra é hétero, a outra é mãe de adolescente, a outra... sei lá. Muitos perfis muito diferentes, e visões de mundo também. Visões de mundo. Umas são militantes, outras não. Umas são... enfim... sabe? Aí, essa diversidade que a gente quis deixa muito clara, no repertório, nos arranjos, na... isso, nas fotos. Na expressão das fotos e tal. Porque eu acho que essa diversidade é que também humaniza assim. Se a gente for considerada sempre um tipo “X”, forte, sabe? Fetichizada, não sei o quê (pausa) a gente não avança, né?! Então, acho que essa é a idea do ÉPreta mesmo.
Pesquisadora: Só aproveitando uma parte do que você falou, com relação a diferença da mulher branca, a cantora branca, da sambista branca pra sambista negra. Se ela for bater numa casa de show, se ela for bater numa rádio, enfim. Você como mulher e como negra, você sofreu, de alguma maneira, essa restrição de locomoção em espaços por ser mulher e por ser negra?
Marina Iris: Olha, eu vou dizer a você que pela minha trajetória eu acabei sendo um pouco blindada. Porque (pausa) desde cedo, eu não tive. Por exemplo, talvez hoje, grupos com mais dificuldade que vem do Irajá, predominantemente negros, e tem dificuldade de ocupar um espaço em Santa Teresa, por exemplo. A gente tá passando por isso. Eu to tendo que intervir, mas olha só, eu sou a negra que já de certa forma foi absorvida por aquele grupo (pausa). Porque é (pausa) surgi no Bip Bip, fui universitária, então tem várias, várias, é... talvez, vou chamar de embranquecimento, de certa forma. Eu sou vista muitas vezes como menos negra em algum sentido assim... Apesar de que eu digo pra pessoas que já conhecem... Por exemplo, eu tinha um grupo, um grupo de pessoas da zona sul e tal. Então eu tenho... Por mais que eu tivesse tido grupos na zona norte e tal, esses grupos abriram espaço pra mim na
zona sul. Abriram espaços pra mim nas casas. É... frequentar uma Folha Seca, uma Ouvidor. É... Acaba que... Agora, se você... Originalmente eu sou do Meier, mas se você é... Se fosse forma teu trabalho no Irajá, com um grupo de pessoas negras, é muito difícil. É muito mais difícil. É muito mais difícil. Eu acho que se você é uma cantora branca nesse contexto, nesse mesmo contexto, pra furar o bloqueio eu acho muito mais fácil. É mais fácil. Entendeu? A minha trajetória foi com Manu ao meu lado, com Tomás Miranda, então são pessoas brancas que já estavam estabelecidas. E a chegada no Bip Bip que é um lugar progressista, e que né?! Não to dizendo que não exista racismo no Bip ou qualquer outro lugar, ele tá em todos os lugares. Eu to tirando um lugar desse contexto, mas é mais progressista, é... existe um troca mais equilibrada, vamos dizer assim. Um pouco mais próxima... sabe? É possível assim. Lá frequentam pessoas, assim, Teresa Cristina, Sereno, Fundo de Quintal, pessoas do Fundo de Quintal já foram no Bip, Paulinho da Viola e tal. Tendeu?
Pesquisadora: Essa questão então que você falou, do grupo de Irajá pra cá, então você acha... por exemplo, você utiliza o fato de você hoje tá com uma projeção um pouco maior, tá sendo lançada por uma produtora maior, mais capitalista, assim digamos, você utiliza isso pra facilitar o avanço de outros também?
Marina Iris: Não, com certeza! Essa é a ideia. E tentar fazer, por exemplo, essa ponte. Eu até faço um trabalho de produção que não é meu assim. Sempre que eu posso fazer essa ponte, tanto no Carioca da Gema, onde eu trabalhei muito tempo, é... de falar de nomes de pessoas que as pessoas não conheciam, porque muitas vezes o produtor de uma casa na Lapa ele não faz ideia do que tá acontecendo no subúrbio. Não faz ideia! A cantora... Não faz ideia! Então de fazer essa ponte e, é... com trabalhos como o ÉPreta, por exemplo, que é numa segunda edição eu gostaria que fosse estabelecida ainda mais pontes. Sabe? A gente até pensa no segundo trabalho já, já pensa no segundo trabalho em que o samba dialogue com outros gêneros, que o samba é muito fechado. Dialogue com o RAP, com as meninas do RAP que são muito organizadas assim, muito potentes também e passa por dificuldades muito semelhantes. É... E outros estados, ou dentro do estado, assim, a gente tem mulheres negras que tão fazendo samba, sei lá, em Macaé. Saca? A gente já começou a fazer, eu digo a gente eu e Milena, né?! que é a minha companheira, a gente começou a fazer essa pesquisa, assim, de aproximar... Vou tá até no Slam, no Slam das Minas no sábado, vou cantar mas também trocar uma ideia. Quero trazer... fazer coisas juntas. Tenta botar mais coisas boas aí, pra frente, e fortalecer ainda mais isso.