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2.2.2. Indústria cultural e apropriação cultural capitalista
from “Pra matar preconceito eu renasci”: O samba como uma ferramenta de emancipação em Direitos Humanos.
Nesse momento, nosso racismo sofre uma reformulação substancial, inserida na política de branqueamento como solução para o problema nacional e da iminente “africanização”, a assimilação negra, alicerçada na pigmentocracia, que forjou o conto infantil “Brasil: o país das maravilhas raciais” e inculcou nos negros e seus descendentes a vergonha de sua cor e nos brancos o “preconceito de ter preconceito” ressaltado por Florestan Fernandes (GÓES, 2016, p. 29)
A política de embranquecimento passa a ser também a forma de atuação institucional do controle dos corpos negros, sem que fosse deixado de lado, definitivamente, no âmbito criminológico, o paradigma racial etiológico, pois os negros ainda não mantidos cativos pelo Estado, só que, atualmente, a partir do sistema prisional. O direito, que agiu, nesse primeiro momento, como ferramenta de repressão a um grupo específico, passa a operar também como instrumento que legitima a apropriação pela indústria a partir da capitalização e do embranquecimento do samba, como veremos no tópico a seguir.
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2.2.2 Indústria cultural e apropriação cultural capitalista
No prólogo de seu livro “Uma história do samba: volume I (as origens)”, Lira Neto conta brevemente sobre o momento em que se começou a criar o samba como o ritmo nacional, e transcrevo aqui um trecho dessa história:
A proposta profissional que Heitor Villa-Lobos tinha a fazer a Espiguela era tão audaciosa quanto, aparentemente, inesperada. O autor das Bachianas brasileiras queria que ele o ajudasse a ressuscitar uma antiga tradição do Rio, o desfile dos cordões carnavalescos, desaparecidos desde o início do século XX, havia cerca de quatro décadas, por força da repressão policial. De acordo com o músico, não haveria problemas com a habitual truculência dos meganhas ou com falta de dinheiro. Como diretor do Departamento de Música da Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal, Villa conseguiria o aval e o patrocínio do todo-poderoso Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) – órgão responsável pela censura e pela promoção política, artística e cultural do Estado Novo, ditadura imposta ao país havia pouco mais de dois anos, em 1937, por Getúlio Dornelles Vargas. (…) O que o maestro Villa-Lobos propunha, com seu pacífico Sodade do Cordão, era uma reedição, idealizada e muito bem comportada, da antiga pândega momesca. “Uma coreografia genuinamente brasileira, sem qualquer interferência de influência estrangeiras”, nas palavras de seu idealizador. “Aparecerão elementos excepcionais do povo, com […] um instinto nato de disciplina coletiva” (LIRA NETO, 2017, p. 13-14).
Começa aí a história da institucionalização do samba e sua apropriação. Nota-se como o colonialismo – como imposição de uma dita civilidade ligada às elites burguesas (brancas, predominantemente masculinas, cisheterossexuais, judaico-cristãs e não deficientes) – indica a apropriação do samba para transformá-lo naquilo que seria tido como o símbolo de uma
nacionalidade mestiça e racialmente democrática. Até então, como vimos, o samba era tido como pobre culturalmente, foi “criminalizado” e relegado a marginalidade. Antes mesmo da institucionalização do samba pelo Estado, “chegada a era da reprodutibilidade técnica, o tipo de música nascida nos terreiros das tias baianas perdia seu caráter de improviso e submetia-se às primeiras normatizações fonográficas” (LIRA NETO, 2017, p. 89). Essa mercantilização a partir da revolução tecnológica, bem como sua institucionalização, marcam a aceitação do antes ritmo dos pobres pela elite brasileira:
A folia nascida entre os pobres, negros e marginalizados parecia ter encontrado um possível caminho para conquistar as benevolências do poder e o aplauso das classes bem nascidas. O tempo mostraria o preço a ser pago por esse gradativo pacto de aceitação pública, de um lado, e o controle social, de outro: a crescente domesticação dos corpos – e uma consequente desafricanização dos espíritos. Desafricanizar a capital da República, aliás, era uma missão que as autoridades vinham pondo em prática em nome da modernidade e da civilização (LIRA NETO, 2017, p. 34)
O custo dessa aceitação pelas elites, da capitalização pelo mercado e da institucionalização pelo Estado foi também a adoção de um discurso consonante com o da mestiçagem e da democracia racial, que dissociava a figura do negro da malandragem e da marginalização. A mudança do discurso cantado nas letras das músicas demonstra a atuação de um processo cultural regulador, que busca impor a branquitude e o modelo colonialista de ser e estar no mundo, fechando o circuito de reação cultural no qual o samba se inseria. Nesse sentido:
Na sua estratégia de legitimação o tema da identidade negra, por exemplo, era evitado nas canções e, quando abordado, aparecia sob a égide da miscigenação democrática e supostamente feliz de uma “gente bronzeada” (Brasil Pandeiro, de Assis Valente), que vinha para a “cidade” (Cidade mulher, de Paulo da Portela) “mostrar seu valor” (Brasil Pandeiro, de Assis Valente). Em outros casos, o negro podia ser apresentado como um “escurinho direitinho” (Escurinho, de Geraldo Pereira) ou como um “pretinho” que, “no fundo”, era um “bom rapaz” (Preconceito, de Wilson Batista) (TROTTA, 2011, p. 85-86).
Desse modo, num momento em que busca o aceite da indústria cultural, o samba passa a sofrer processos culturais reguladores de embranquecimento, afastando suas produções das referências de enfrentamento da branquitude, para ser assimilado pelo discurso do capital colonialista. Esses processos identificam-se dentro das indústrias culturais, que como expoente do modelo capitalista, são marcadas pelo racismo e pelo patriarcalismo. No samba, então, elas conseguiram afastar os aspectos marcantes das culturas negras, incluindo a presença das mulheres nos processos de produção do samba, visto que, a imposição da
branquitude, bem como do sexismo, fazem parte da metodologia de ação social hegemônica. Nesse sentido:
As indústrias culturais têm de fato o poder de retrabalhar e remodelar constantemente aquilo que representam; e, pela repetição e seleção, impor e implantar tais definições de nós mesmos de forma a ajustá-las mais facilmente às descrições da cultura dominante ou preferencial. É isso que a concentração do poder cultural – os meios de fazer cultura nas mãos de poucos – realmente significa (HALL, 2018, p. 281).
Do mesmo modo, a preocupação com o reconhecimento da autoria e direitos autorais também passou a acontecer num movimento simultâneo ao fortalecimento das gravadoras. Donga, autor de “Pelo Telefone”, considerado o primeiro samba, em 1917, é o precursor desse processo:
Donga, portanto, não inventou um novo gênero. Inaugurou, sim, o procedimento e a estratégia de divulgar e fazer circular nos meios comerciais, de forma metódica e profissional, uma música de extração popular para ser executada durante o carnaval. Ao registrá-la individualmente, preocupou-se em estabelecer o direito de autoria sobre uma composição coletiva e de matriz folclórica, em um tempo no qual apropriações desse tipo eram a regra e o plágio em música constituía sequer um delito de ordem moral (LIRA NETO, 2017, p. 90-91).
A influência do capitalismo e seu modelo mercadológico num processo cultural, até então notado como primitivo por conta das referências africanas e do racismo perpetuado pelo colonialismo europeu, pode ser compreendido como a definição do samba como cultura popular dentro do conceito já apresentado de Stuart Hall. O embranquecimento do samba, contudo, se apresenta como uma característica nitidamente brasileira, dentro dos conceitos de mestiçagem e democracia racial que marcaram o Brasil a partir de 1930. Praticamente toda a história da gênese do samba se desenvolve no século XX, em que as opressões de classes e o racismo se relacionam com a cultura popular e a resistência do povo negro no Brasil. Das rodas de samba da Cidade Nova aos desfiles das escolas na Estácio, o sucesso internacional de Carmen Miranda, a institucionalização do carnaval pelo primeiro governo de Getúlio Vargas, o embranquecimento do samba a partir da Bossa Nova, até a reinvenção do samba através do pagode pelas gravadoras nos anos 1990, e em todos os capítulos dessa história, que continua sendo escrita, há uma disputa de narrativas entre a cultura e o cultural, entre a tentativa de se impor uma identidade nacional hegemônica e as lutas de classe, raça e gênero que buscam construir uma sociedade em que uma vida digna seja possível para todos, incorporando as diferenças.
Nesse sentido, Stuart Hall infere que há uma grande influência das instituições –Estado e mercado – nos processos culturais que envolvem a cultura popular. Para o autor, então, “escrever a história da cultura das classes populares exclusivamente a partir do interior dessas classes, sem compreender como elas constantemente são mantidas em relação às instituições da produção cultural dominante, não é viver no século vinte” (HALL, 2018, p. 279). E o samba faz parte do imaginário construído de uma cultura popular brasileira. Desse modo:
(…) como a cultura popular tem se tornado historicamente a forma dominante da cultura global, ela é, então, simultaneamente, a cena, por excelência da mercantilização, das indústrias onde a cultura penetra diretamente nos circuitos de uma tecnologia dominante – os circuitos do poder e do capital. Ela é o espaço da homogeinização em que os estereótipos e as fórmulas processam sem compaixão o material e as experiências que ela traz para dentro da sua rede, espaço em que o controle sobre narrativas e representações passa para as mãos das burocracias culturais estabelecidas às vezes até sem resistência. Ela está enraizada na experiência popular e, ao mesmo tempo, disponível para expropriação. Quero defender a ideia de que isso é necessário e inevitável e vale também para a cultura popular negra, que, como todas as culturas populares no mundo moderno, está destinada a ser contraditória, o que ocorre não porque não tenhamos travado a batalha cultural suficientemente bem (HALL, 2013, p. 379).
No século XXI, a revolução tecnológica toma outras proporções com a popularização da internet e a tentativa de torná-la um espaço democrático. O disco do projeto ÉPreta só foi possível por isso, por meio de uma campanha coletiva e diversas colaborações que financiaram a sua produção, gravação e mixagem, através de um site na internet. Em 2018, o disco concorreu ao Prêmio da Música Brasileira de 2018 como Melhor Grupo de Samba. Além disso, no mesmo ano, tocaram no Festival Mundo de Mulheres, com uma exposição internacional de seu discurso e ideias. A projeção cada vez maior do projeto, em paralelo com as carreiras individuais das cantoras, abre a possibilidade para uma crescente disseminação do discurso político feminista presente em suas letras. Como, então, pensar o samba como cultura popular dentro de um paradigma moderno tecnológico, mas mantendo suas aberturas e trocas como processo cultural emancipador? A atuação da indústria cultural no samba faz parte do terreno de disputas no qual ele se localiza, e por vezes ignoramos que sempre houve quem fizesse resistência a ingerência do capitalisamo nessa manifestação cultural negra. Stuart Hall afirma que:
Há pontos de resistência e também momentos de superação. Essa é a dialética da luta cultural. Na atualidade, essa luta é contínua e ocorre nas linhas complexas da resistência e da aceitação, da recusa e da capitulação, que transformam o campo da cultura em uma espécie de campo de batalha permanente, onde não se obtêm vitórias