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feminista

modelo escravocrata somente sob outros moldes. A relação, principalmente com as empregadas domésticas, demonstra o quão colonial ainda é a sociedade em que vivemos, pois até pouco tempo atrás elas sequer tinham seus direitos trabalhistas reconhecidos24. Ainda hoje ocorrem denúncias de racismo por impedirem pessoas negras de acessar determinados ambientes a não ser pela porta de serviço, pois pressupõem-se sempre que essas sejam prestadoras de serviço e não moradoras, consumidoras, etc., daquele local. É essa a realidade de preconceito que o discurso da música denuncia. Em um trecho da entrevista realizada com a cantora e compositora Marina Iris, ao se referir ao projeto ÉPreta, ela fala:

O que a gente quis mostrar é que como mulheres negras no samba a gente é muito diferentes uma das outras, e que a gente não... rompe um pouco com a questão do estereótipo mesmo. Eu sou lésbica, a outra é hétero, a outra é mãe de adolescente, a outra... sei lá. Muitos perfis muito diferentes, e visões de mundo também. Visões de mundo. Umas são militantes, outras não. Umas são... enfim... sabe? Aí, essa diversidade que a gente quis deixa muito clara, no repertório, nos arranjos, na... isso, nas fotos. Na expressão das fotos e tal. Porque eu acho que essa diversidade é que também humaniza assim. Se a gente for considerada sempre um tipo “X”, forte, sabe? Fetichizada, não sei o quê... a gente não avança, né?! Então, acho que essa é a idea do ÉPreta mesmo.

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Quando a cantora afirma que “essa diversidade é que também humaniza”, ao falar sobre a diversidade das mulheres que participam do projeto, e que elas buscam deixar como marca, ela apresenta um entendimento sobre direitos humanos que concorda com o que foi apresentado até agora. Entender a diversidade como humanizadora é compreender que existem diversas possibilidades de ser e estar no mundo, e que são elas que tornam o mundo um lugar mais humano. A criatividade em pensar outras formas de nos relacionarmos é o que nos faz seres humanos (HERRERA FLORES, 2005b).

1.3 Outras lentes epistemológicas: uma teoria dos direitos humanos negra e feminista

Não pense que é favor / Compreender a dor da minha pele negra / Na terra que me sangrou / Eu semeei a flor / Dessa canção que é negra Sou filha do mesmo pai / Já sucumbi demais / Sem merecer a sina / Havana e Vera Cruz / São salvador eu sou / América Latina A minha revolução reza que o coração ganhe da força bruta / Pois negra é a cor do amor / Mas se preciso for / Negra é a cor da luta. [“Negra”, de Iara Ferreira e Luís Barcelos]

24 A Emenda Constitucional de n. 7 de 2013, alterou o artigo 7º da Constituição Federal de 1988, incluindo os direitos dos trabalhadores domésticos sob a égide constitucional. Em 2015, a Lei Complementar n. 150 de 2015, passou a regulamentar as relações empregatícias domésticas, assegurando direitos e deveres a uma categoria até então explorada e negligenciada.

Como a música “Negra” fala, reconhecer a dor pela qual mulheres e homens negros passaram (e passam) por toda a América Latina, não é nenhum favor, mas parte do compromisso que devemos assumir a fim de adotarmos práticas emancipadoras de luta pela dignidade humana. Dentro do que Thula Pires propõe, procuro nesse ponto debater os direitos humanos desde “(...) uma abordagem capaz de potencializar sua dimensão intercultural e impulsionar, através de uma perspectiva afrocentrada e ancorada na experiência ladina, a permanente disputa política pelos seus enunciados” (PIRES, 2017, p. 10). Existem outros modelos possíveis, mas para isso, primeiro, devemos repensar nossa história e reescrevê-la a partir de outros olhares. Assim como as culturas negras, o feminismo se apresenta como outra maneira de pensar o mundo, principalmente, porque se opõe ao modelo capitalista patriarcal, racial, étnico, sexual e classista estruturado hoje como sistema de valores predominante ao marco das desiguais relações sociais (HERRERA FLORES, 2005a, p. 145-146). Nesse ponto, brevemente buscarei reconstruir a lógica racial e patriarcal que segrega e oprime nossa sociedade, para compreendermos como podemos mudar isso a partir da construção de outra epistemologia de direitos humanos. Devemos entender o racismo como um problema branco porque o conceito de raça, que estrutura a nossa sociedade, faz com que o branco obtenha privilégios a partir da exploração de não-brancos a fim de cumprir o objetivo maior do capitalismo, qual seja, a acumulação de capital, colonizando territórios, mentes e corpos. Desde o início do modelo escravocrata pelos portugueses, com o comércio escravista, em 1442, tivemos a imposição de um pensamento colonial sobre seus domínios políticos e econômicos. O modelo escravocrata, no Brasil, começa em 1532, com a fundação da Vila de São Vicente, no atual estado de São Paulo (LOPES, 2011, p. 158). Com a chegada dos africanos no Brasil para o trabalho escravo nas lavouras de cana, e depois para as minas e lavouras de café, conforme o ciclo econômico que regesse o país, “(…) após meses de fome e torturas, despersonalizados, desestruturados física e psicologicamente de maneira irreversível” (LOPES, 2011, p. 95), essas pessoas se viam desamparadas e destruídas da pior maneira que se pode imaginar. Os tratamentos desumanos e cruéis eram justificados pela “salvação” da alma, sendo que vários mitos foram construídos pela Igreja Católica a fim de defender a escravidão:

Argumentavam os escravagistas, entre outras coisas, que desenraizar o africano de seu continente era um bem que se fazia a ele, pois, assim, livre do “paganismo”, das “práticas antropofágicas”, da “idolatria” etc., ele encontraria a salvação espiritual

através do cristianismo, numa pátria nova onde deveria esquecer todos os vínculos passados (LOPES, 2011, p. 55).

Conforme Kabengele Munanga, “até o fim do século XVII, a explicação dos 'outros' passava pela Teologia e pela Escritura, que tinham o monopólio da razão e da explicação” (MUNANGA, 2003, p. 02). A criação do conceito de raça, a subjugação do “outro”, não tem uma explicação biológica, mas uma relação de poder e dominação. Herrera Flores também coloca que:

Entender, por exemplo, outros ou a natureza como entidades estranhas a nós mesmos, é a base para justificar situações de dominação e exploração que tentam "transformar" os outros em seres homogêneos para nós ou para a natureza em algo funcional para nossos próprios interesses (HERRERA FLORES, 2005b, p. 126)25 .

Entretanto, a resistência a essa relação sempre existiu. A aceitação da condição escrava foi uma maneira de sobreviver. Construiu-se a ideia de que mulheres e homens negros eram pacíficos diante da sua condição de escravos, do sincretismo, da própria sobrevivência e do existir escravo. No entanto, “são incontáveis na história da escravidão do Brasil os casos de fugas individuais, assassinatos de senhores, aquilombamentos e tentativas bem-sucedidas de organização, levando inclusive à luta armada” (LOPES, 2011, p. 56). Os quilombos até hoje são uma marca de resistência e luta de mulheres e homens herdeiros de ex-escravos. As

mulheres, que sofriam também a violência sexual, usavam o aborto como uma arma de resistência ao dar fim às gestações resultantes do estupros que sofriam. Ou seja, diferentemente do que a branquitude possa imaginar, a escravidão não foi pacífica26, e a abolição desse sistema não foi um presente. Conforme Joel Rufino dos Santos, “onde melhor se vê o papel da rebeldia negra individual ou coletiva (mas sem a formação necessária de quilombo) é no processo da Abolição” (SANTOS, 2015, p. 96). O processo abolicionista colocou os brancos no centro da história, dissolveu tensões sociais, mas, por fim, não alterou em nada a situação do negro ao não propor nenhuma política pública reparatória, garantindo a manutenção da sociedade racialmente estruturada

25 Tradução livre. No original: “Entender, por ejemplo, a los otros o a la naturaleza como entes extraños a nosotros mismos, es la base para justificar las situaciones de dominio y de explotación que intentan

“transformar” a los demás en seres homogéneos a nosotros o a la naturaleza en algo funcional a nuestros propios intereses”. 26 Dentre os negros produziu-se uma distinção entre aqueles que seriam os mais aguerridos e organizados, os de origem sudanesa ou malês, e os que seriam mais preguiçosos e “dóceis”, os Bantos. “A inferiorização dos

Bantos, em relação aos povos da África ocidental apregoada que foi pelos eruditos do racismo científico, ecoou fundo na alma popular. Assim, até mesmo negros, em geral nascidos no Brasil, durante e após o período escravista alardeavam o fato (…)” (LOPES, 2011, p. 94).

(GÓES, 2016, p. 166). As políticas migratórias a favor de europeus – principalmente italianos e alemães, já que esses seriam os “mais aptos” ao trabalho na lavoura – ocorrem nesse sentido, a fim de perpetuar a posição social dos negros. Os imigrantes europeus eram trazidos para o Brasil para ocupar os espaços de trabalho, tanto no campo como na indústria, impossibilitando a ascensão social de mulheres e homens negros através do trabalho remunerado. Além disso, havia o objetivo de embranquecer a população, já que é também a partir da abolição que cresce a preocupação da elite de que o Brasil fosse “negro demais”. A partir da abolição da escravidão, a violência explícita deixa de ser o instrumento a ser utilizado para controle dos corpos negros. Outras ferramentas passam a ser utilizadas, algumas legislativas, como veremos adiante, além de outras teóricas e conceituais, a partir do positivismo científico, que passam a ser formuladas para continuar justificando e sustentando a opressão e exploração baseada na raça. O racismo científico surgiu, nesse contexto, como a classificação da humanidade em raças hierarquizadas, dando amparo para o surgimento da raciologia, uma teoria pseudocientífica. “Na realidade, apesar da máscara científica, a raciologia tinha um conteúdo mais doutrinário do que científico, pois seu discurso serviu mais para justificar e legitimar os sistemas de dominação racial do que como explicação da variabilidade humana” (MUNANGA, 2003, p. 05). A busca por uma justificativa científica para a permanência das relações de poder e dominação dos brancos sobre os negros surge em função do Iluminismo e da busca não mais na teologia para as explicações do mundo, mas na racionalidade. Nesse sentido:

Sabemos que o colonialismo europeu, nos termos com que hoje o definimos, configura-se no decorrer da segunda metade do século XIX. Nesse mesmo período, o racismo se constituía como a 'ciência' da superioridade eurocristã (branca e patriarcal), na medida em que se estruturava o modelo ariano de explicação (Bernal, 1987) que viria a ser não só o referencial das classificações triádicas do evolucionismo positivista das nascentes ciências do homem, como ainda hoje direciona o olhar da produção acadêmica ocidental (GONZALEZ, 1988a, p. 71, grifos no original)

O racismo, então, surge desse modelo de explicação, que serve aos interesses de uma classe específica para a permanência da opressão e manutenção dos seus privilégios, e “se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira”. E “(...) sua articulação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular” (GONZALEZ, 1984, p. 224, grifos no original), já que a mulher negra é quem mais arca social, econômica e psicologicamente com a violência e a opressão causadas pelo racismo combinado com o machismo.

A autora faz uma distinção relevante entre o que considera um “racismo aberto” e um “racismo disfarçado”. O racismo aberto, Gonzalez afirma ser “característico das sociedades de origem anglo-saxônica, germânica ou holandesa, estabelece que negra é a pessoa que tenha tido antepassados negros ('sangue negro nas veias')”, em que a mestiçagem não ocorre, e a pureza e superioridade do branco se perpetuam (GONZALEZ, 1988a, p. 72). O racismo por denegação ou racismo disfarçado, que ocorre nas sociedades de origem latina, ressalta “as 'teorias' da miscigenação, da assimilação e da 'democracia racial'. A chamada América Latina que, na verdade, é muito mais ameríndia e amefricana do que outra coisa, apresenta-se como o melhor exemplo de racismo por denegação” (GONZALEZ, 1988a, p. 72). Hoje, no entanto, não existe mais nenhum país com um racismo aberto, como já houve nos Estados Unidos e na África do Sul, com as legislações segregacionistas e o apartheid, e Munanga afirma que todos se encontram no “mesmo pé de igualdade com o Brasil, caracterizado por um racismo de fato e implícito, às vezes sutil (salvo a violência policial que nunca foi sutil)” (MUNANGA, 2003, p. 11). O racismo disfarçado no Brasil se baseou, principalmente, no mito da democracia racial27, que foi:

(…) celebrado como símbolo nacional e sinônimo de assimilacionismo étnico e de convivência pacífica entre as raças, construiu uma aura de falsa tolerância e igualdade que raramente permitiu ou permite que o racismo seja discutido em âmbito público, diferentemente do que ocorreu nos EUA, onde houve uma realidade de embate explícito entre raças e de segregação explicitamente normativada (SILVA; PIRES, 2015, p. 67).

A mestiçagem, também destacada por Lelia Gonzalez como sintoma do racismo brasileiro, foi o modelo de relações raciais adotado no Brasil, primando pela miscigenação de raças, com o fim de embranquecer a população. Sueli Carneiro ressalta que:

Vem dos tempos da escravidão a manipulação da identidade do negro de pele clara como paradigma de um estágio mais avançado de ideal estético humano; acreditavase que todo negro de pele escura devia perseguir diferentes mecanismos de embranquecimento. (…) Temos sido ensinados a usar a miscigenação ou mestiçagem como carta de alforria do estigma da negritude (CARNEIRO, 2011, p. 64).

Mas a mestiçagem e a busca pelo embranquecimento não são um problema do negro,

27 Para Joel Rufino dos Santos “o mito da democracia racial não aparece isolado, mas constitui um dos fios da elástica malha em que repousa a consciência de ser brasileiro. Ele se prende aos resistentes mitos da cordialidade, da história incruenta, da natureza privilegiada, da unidade fundamental do povo brasileiro, da morenidade e outros” (SANTOS, 2015, p. 25).

“que, descontente e desconfortável com sua condição de negro, procura identificar-se como branco, miscigenar-se com ele para diluir suas características raciais” (BENTO, 2002, p. 25). A mestiçagem foi um processo de subjugação criado pelo branco na neurose de embranquecer nossa sociedade e apagar a presença do negro. “Na verdade, quando se estuda o branqueamento constata-se que foi um processo inventado e mantido pela elite branca brasileira, embora apontado por essa mesma elite como um problema do negro brasileiro” (BENTO, 2002, p. 25). Todos esses processos culturais – o racismo científico, a mestiçagem, o mito da democracia racial – são processos culturais reguladores para a manutenção do racismo, se perpetuando na sociedade e nos seus produtos culturais. Ainda que eles já tenha sido desmaracarados, questionados e que exista ampla obra acadêmica sobre o assunto, de tão enraizados que estão na sociedade brasileira, eles vão se reinventando. Por isso, para Kebengele Munanga, “além da essencialização somático-biológica, o estudo sobre o racismo hoje deve integrar outros tipos de essencialização, em especial a essencialização histórico cultural” (MUNANGA, 2003, p. 10); ou seja, o racismo passa a atuar também nas concepções culturais, como percebemos com o hip hop e o funk, que são estigmatizados enquanto músicas periféricas negras – como já ocorreu com o próprio samba. Compreender o racismo é necessário para pensarmos essas outras maneiras de entendermos o mundo, já que ele estrutura esse modelo entendido como único, universal e neutro, quando, na verdade, esse é um modelo que se baseia na desigualdade, exploração e opressão. No samba, assim como em quase todas a expressões culturais negras, as discussões de raça estão constantemente presentes. Uma das canções do disco ÉPreta que fala sobre a resistência, cultura e raça é a música “Vou cantar até o fim”, descrita abaixo:

VOU CANTAR ATÉ O FIM (Celso Lima e Marina Iris)

1 Quando eu nasci 2 Uma voz entoou 3 Foi minha madrinha rezadeira 4 Em tom nagô 5 No seu canto ensinou 6 O samba toca a alma brasileira

7 Me inspirei 8 Ao me entregar de coração 9 Soube de mim, virei canção 10 Da mais simples, verdadeira 11 Pelos caminhos, ao batuque do tambor 12 Juntei meus versos de amor 13 Cerzi a minha bandeira

14 Herdei a estrada 15 Hoje o samba é fundamento 16 Da alegria ao sofrimento 17 Hoje o samba é fundamento 18 Da alegria ao sofrimento 19 Só eu sei o que é cantar pra mim 20 E a minha vida sempre sincopada 21 É uma história musicada 22 Vou cantá-la até o fim

A presença de expressões como “madrinha rezadeira” (linha 3), “nagô” (linha 4), “batuque do tambor” (linha 11) podem ser compreendidas como marcas das culturas negras que são herdadas, assim como o samba que toca a alma brasileira (linha 6), como inspiração de resistência (linhas 14, 15 e 16), nessa “história musicada” (linha 21) que é a história da resistência negra na América Latina. Lelia Gonzalez considera que somos uma Améfrica Ladina, pois se olharmos para a construção histórico-cultural do Brasil, ele não é o que afirma ser – um país branco de formação basicamente europeia –, mas sim, “uma América Africana cuja latinidade, por inexistente, teve trocado o t pelo d para, aí sim, ter o seu nome assumido com todas as letras” e que “não é por acaso que a neurose cultural brasileira tem no racismo seu sintoma por excelência” (GONZALEZ, 1988a, p. 69). A partir disso a autora propõe a criação de uma categoria político-cultural que proporcione espaços de união e identidade de grupo, dentro das estruturas da sociedade amefricana que o reprime:

As implicações políticas e culturais da categoria de Amefricanidade (“Amefricanity”) são, de fato, democráticas; exatamente porque o próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, lingüístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A AMÉRICA e como um todo (Sul, Central, Norte e Insular). Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o Brasil e seus modelos yorubá, banto e ewe-fon. Em conseqüência, ela nos encaminha no sentido da construção de toda uma identidade étnica (GONZALEZ, 1988a, p. 76).

A amefricanidade que Gonzalez define diz respeito à criação dessa categoria políticocultural de unicidade amefricana. Podemos, entretanto, entender também a amefricanidade como uma identidade, a partir da identificação dessas resistências desenvolvidas no continente americano à imposição da branquitude. Em outras palavras, Lelia propõe olharmos para a realidade a partir das dinâmicas culturais centradas no que nos veio da África e que

somado ao que se tem aqui, constrói essas identidades próprias e que se distinguem do modelo colonialista imposto pelos europeus fundamentado no racismo. Entendo a possibilidade da amefricanidade como categoria de identidade a partir das dinâmicas culturais que Lelia ressalta, pois não é essencialista; na verdade, a autora destaca as correlações entre os modelos afroncentrados, que ao se conectarem, constroem outra identidade étnica, uma identidade amefricana.

Essa identidade é marcada na música pelo sujeito em primeira pessoa nas frases “Quando eu nasci” (linha 1) e “Só eu sei o que é cantar pra mim” (linha 19), e na conjugação dos verbos da música, a maioria na primeira pessoa do singular. Esse sujeito, como já vimos, é a mulher negra que perpassa por outros fatores de produção social que marcam sua existência, o contexto em que se insere e como se expressa. Somada às questões de raça e classe, a divisão sexual do trabalho determinou às mulheres negras, que nunca pertenceram ao espaço doméstico, a não ser como prestadoras de serviço às patroas brancas, o lugar mais inferior na pirâmide social. Seus corpos sempre foram públicos – tanto no sentido de sempre terem pertencido ao ambiente público, quanto à distorcida visão de que o corpo das mulheres negras é de todos, menos delas. Diante disso, seus discursos são mercados por um posicionamento político de resistência. Por isso, Lelia Gonzalez afirma, sobre o feminismo, que “(...) apesar das suas contribuições fundamentais para a discussão da discriminação pela orientação sexual, não aconteceu o mesmo com outros tipos de discriminação, tão grave como a sofrida pela mulher: a de caráter racial” (GONZALEZ, 1988b, p. 13). Nessa perspectiva, desde a década de 1980, feministas socialistas e negras criticam esse feminismo burguês, que ignora as questões de raça e classe com relação às questões de gênero. Hoje ainda buscamos a consolidação de um debate em que essas questões seja consideradas com a mesma relevância, buscando pensar políticas públicas que visem as mulheres negras e mudar, epistemologicamente, a base do que é o feminismo, inserindo a intersecção entre gênero-raça-classe28. Superar o patriarcalismo e, logo, o racismo, exige além de um comprometimento olítico, um comprometimento epistemológico, pois estruturam o pensamento colonial que fundamenta hegemonicamente nossa sociedade. A proposta de uma interculturalidade crítica “(...) requer transgredir, interromper e desmontar a matriz colonial ainda presente e criar outras condições de poder, saber, ser, estar e viver que se distanciam do capitalismo e sua

28 Diversas são as autoras que, como referido, desde a década de 1980, têm levantado esse debate, podendo citar, além das brasileiras Lelia Gonzalez e Sueli Carneiro, as norte-americanas Patricia Hill Collins, Angela

Davis, bell hooks, Kimberlé Williams Crenshaw, entres outras.

única razão” (WALSH, 2009, p. 12). E a partir disso, podemos buscar no samba, e nas formas de resistência das culturas negras, outras maneiras de ver o mundo. Afirma Helena Theodoro

que:

Se faz mister usar uma nova ideologia que promova a libertação das pessoas e que permita ao livro e à mídia evidenciar valores pluriculturais que coexistam, juntando as diversidades sem atritos e sem ódios, num aprendizado que produza o viver com harmonia. A esta maneira de ver a realidade chamei ideologia do axé. (THEODORO, 1996, p. 19, grifos no original)

Seja nomeada de “ideologia do axé” ou não, essa outra maneira de ver o mundo não pode, não obstante, buscar por uma pré-racionalidade e repetir uma premissa de busca de origens excêntricas, de uma etnicidade, já que “as premissas estéticas etnocêntricas da modernidade consignaram essas criações musicais a uma noção do primitivo que era intrínseca à consolidação do racismo científico” (GILROY, 2012, p. 164). Isto é, quer-se demonstrar que “(…) a história e a prática da música negra apontam para outras possibilidades e geram outros modelos plausíveis” (GILROY, 2012, p. 166), modelos que são construídos nas disputas, nas tensões entre popular e dominante, na resistência, a partir de uma dialética. Nessa perspectiva, ressalto:

Os direitos humanos no mundo contemporâneo necessitam dessa visão complexa, dessa racionalidade de resistência e dessas práticas interculturais, nômades e híbridas para superar os obstáculos universalistas e particularistas que impedem sua análise comprometida há décadas. Os direitos humanos não são unicamente declarações textuais. Também não são produtos unívocos de uma cultura determinada. Os direitos humanos são os meios discursivos, expressivos e normativos que pugnam por reinserir os seres humanos no circuito de reprodução e manutenção da vida, nos permitindo abrir espaços de luta e de reivindicação. São processos dinâmicos que permitem a abertura e a conseguinte consolidação e garantia de espaços de luta pela dignidade humana (HERRERA FLORES, 2009, p. 163).

Os direitos humanos, tidos estão a partir dessa visão complexa, devem ser compreendidos como esses processos de luta, questionando a ordem hegemônica vigente baseada na exploração e subjugação e buscando outras maneiras de ser e estar no mundo. Por isso as letras de músicas do ÉPreta são sim expressões de direitos humanos, e até então, se apresentam como possíveis ferramentas para a emancipação em direitos humanos, pois questionam a ordem vigente e propõe a união de forças, inspiradas na ancestralidade, a partir da liderança das mulheres negras.

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