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i.1 Prólogo: situando-me no mundo do samba

i.1. Prólogo: situando-me no mundo do samba

A música brasileira sempre esteve presente na minha vida – primeiro, pelos vinis da minha mãe, depois ao subir no palco – e fez com que eu enxergasse na arte um potencial de engajar e de instigar um agir político. Durante os anos de graduação, participei do projeto “Direito em Canto & Verso: Memória e Verdade”, em que, com o roteiro da querida professora Maria Beatriz Oliveira da Silva e uma trupe de colegas da Universidade Federal de Santa Maria, cantávamos e declamávamos as dores dos 21 anos de Ditadura Civil Militar que arrasaram o Brasil entre 1964 e 1985.

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O samba, ritmo criado a partir das culturas negras, também reflete a destruição provocada pelas violações de direito, assim como as músicas de protesto do período da ditadura militar. O samba conta parte da história da formação cultural do Brasil que, fundado sobre um sistema escravocrata que durou mais de 300 anos, através da resistência e luta de mulheres e homens negros, nega sua identidade preta. A dor que a escravidão causou, o racismo e a exclusão que mulheres e homens negros ainda sofrem no Brasil, nunca serão sentidos por mim, o que deve fazer com que eu questione os meus privilégios e busque compreender qual é o meu lugar de fala. Falar sobre o samba e a luta por direitos humanos no Rio de Janeiro, passa sim pela cor da minha pele, que é branca. O racismo é um problema branco, e ser branca é justamente não sentir as dores da exclusão e da violência que estruturam essa cidade, tão marcada pela desigualdade social. As culturas negras da quais o samba faz parte é uma cultura de diáspora. Conforme Werneck, a diáspora é um “processo heterogêneo de dispersão e reagrupamento vivido pelos africanos escravizados e seus descendentes, nas diferentes partes do mundo, especialmente no ocidente” (WERNECK, 2007, p. 05). Ou seja, a diáspora africana – forçada pelo tráfico de escravos desde o século XV – trouxe milhares de pessoas negras de diversos povos africanos durante anos para o Brasil, e com eles suas diferentes culturas, suas religiões e seus valores, que passam a se rearranjar nesse novo espaço organizado a partir da égide do colonialismo que se delineia desde aquele momento histórico. Nesse contexto, os primeiros registros do vocábulo “samba” no Brasil se dão a partir do final do século XIX. Contudo, a expressão é homônima de outras em línguas de origem angolana e congolesa, e antes de significar o ritmo aqui estudado era sinônimo de “festa”. No quimbundo há o registro do verbo “semba”, que significa “agradar” (CENTRO CULTURAL CARTOLA, 2006, p. 14; LOPES, 2008, p. 24; LIRA NETO, 2017, p. 52). Em outras palavras, o samba não surge como ritmo musical, mas como festa da união dos descendentes dessas

diferentes nações africanas que no Rio de Janeiro passaram a se encontrar desde um pouco antes da abolição da escravidão. Conforme o Dossiê das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro, realizado pelo Centro Cultural Cartola com a supervisão e financiamento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, são três os diferentes tipos de samba que surgiram na capital carioca: (1) o samba-de-terreiro que, como o próprio nome diz, surgiu nos terreiros de candomblé da cidade e tem como características a contação de uma história; (2) o partido-alto, ritmo mais nobre, por exigir uma rapidez de pensar, já que as estrofes são, geralmente, improvisadas, tendo um refrão repetido intercaladamente; e, (3) o samba-enredo que surge da confluência dos dois anteriores e é o ritmo que acompanha as escolas de samba nos desfiles de carnaval. Esse trabalho, todavia, não se pretende voltar a um ritmo em específico dentre os três surgidos no Rio (ou os trinta e cinco elencados por Nei Lopes), mas analisar o samba como processo cultural. O samba carioca é uma modalidade de resistência à imposição da branquitude e sua história se confunde com a história da formação da cidade do Rio de Janeiro. As mulheres sambistas, sujeitos de estudo neste trabalho, usam o samba, que tem uma história de resistência, como vocalizador de uma agenda democrática, feminista e antirracista, movimentando essas questões no espaço público e privado. Assim, esse trabalho busca falar sobre o samba como possível ferramenta de direitos humanos a partir da voz destas mulheres sambistas, pois são elas as personagens principais dessa história. As mulheres tiveram um papel fundamental na produção da identidade e enraizamento das culturas negras no Brasil, bem como na resistência e continuidade da religiosidade africana, tão essencial na história do surgimento do samba: as tias baianas3

proporcionavam os locais onde as festas aconteciam. Os “sambas”, que nesse contexto eram sinônimo de “festa”, através dos ritmos desconhecidos tocados pelos tambores, soavam para as autoridades responsáveis pelo controle social como festividades ingênuas, quando na verdade eram rituais religiosos. Ainda que não acontecessem nas ruas, mas justamente nas casas, contudo, o espaço não impossibilitava a atuação do controle por parte do Estado.

3 A expressão “tias baianas” se popularizou em função de um grupo de mulheres negras que vieram da Bahia para o Rio de Janeiro no final século XIX e início do século XX e acabaram criando um núcleo de resistência cultural negra nas proximidades da Cidade Nova, mas que com o tempo se espalharam pela cidade. Elas eram conhecidas, além das festas, pelos quitutes que vendiam no centro da cidade. Antes da legalização do carnaval, quando não havia horário ou percurso fixo, o indispensável era que os grupos passassem pela Praça

Onze, pelas casas das “tias”. Elas eram consideradas mães do samba e do carnaval dos pobres. A casa de Tia

Ciata era parada obrigatória, pois era a mais famosa e muito respeitada pela comunidade. Até hoje, as tias são representadas e homenageadas nos desfiles, pela ala das baianas das escolas de samba (LIRA NETO, 2017).

Com a normatização do samba, sua captura pelas instituições e inserção no modo de produção capitalista, vão-se modificar suas naturezas ritualística, cultural e social, relendo esse papel protagonista das mulheres e das culturas negras, a partir da lente do patriarcalismo e do racismo. O direito, usado para o controle social dos corpos negros, passa a regular também os interesses do capital no que se refere ao samba, mitigando a presença negra na história da música popular do país. A participação das mulheres negras, em todos os aspectos da produção cultural e musical, passa a ser questionada a partir dos papéis de gênero determinados pela divisão sexual do trabalho que impõe o patriarcalismo. Entretanto, não busco colocar neste trabalho o negro como exótico, como a origem perdida que vai salvar a nossa nação do caos social em que vivemos. O que pretendo é questionar a maneira como pensamos os direitos humanos desde outra perspectiva sobre a cultura, tomando como base o que as mulheres sambistas pensam e cantam. Nesse sentido, destaco que o viés dado a esse trabalho será acerca da imposição da branquitude contra a qual o samba resiste, já que não poderia ser diferente, sendo esse o meu lugar de fala, não ignorando, contudo, a reflexão das culturas negras na diáspora. Liv Sovik conceitua a branquitude como um:

(…) atributo de quem ocupa um lugar social no alto da pirâmide, é uma prática social e o exercício de uma função que reforça e reproduz instituições, é um lugar de fala para o qual uma certa aparência é condição suficiente. A branquitude mantém uma relação complexa com a cor da pele, formato de nariz e tipo de cabelo. Complexa porque ser mais ou menos branco não depende simplesmente da genética, mas do estatuto social. Brancos brasileiros são brancos nas relações sociais cotidianas: é na prática — é a prática que conta — que são brancos. A branquitude é um ideal estético herdado do passado e faz parte do teatro de fantasias da cultura de entretenimento (SOVIK, 2009, p. 50).

A partir do reconhecimento da minha branquitude, e meus privilégios por ser branca, me insiro no mundo do samba como ouvinte e admiradora. Me proponho, como pesquisadora, buscar no conhecimento produzido através do samba, composto e cantado por elas, outras lentes epistemológicas para analisar o que são os direitos humanos. Esse reconhecimento é importante tendo em vista o que Herrera Flores fala sobre as condições e os deveres básicos para a construção de uma nova teoria dos direitos humanos e de práticas emancipadoras, principalmente no que diz respeito a “assumirmos a nossa responsabilidade na subordinação dos outros e, segundo, a nossa responsabilidade de exigir responsabilidades aos que cometeram o saqueio e a destruição das condições de vida dos demais” (2009, p. 62). Além disso, o autor aponta que:

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